Revista Casa Marx

[Tribuna aberta] Em que sentido os marxistas são materialistas?

Gabriel Kaspary de Moraes

Nour Ali Loeblein

O presente texto investiga o caráter materialista da teoria marxista da história, também conhecida como materialismo histórico. É comum opor o materialismo histórico de Marx e Engels ao idealismo histórico de Hegel por meio da afirmação de que, para os materialistas históricos, as ideias são secundárias e as condições materiais são primárias no curso da história. Questionaremos essa afirmação e, no lugar dela, tentaremos propor um novo traço distintivo entre materialismo histórico e idealismo histórico que, contudo, também está ancorado na primazia das condições materiais sobre outros tipos de condições. Para tanto, o texto se divide em duas partes. A primeira parte afirmará sem rodeios (e de modo descuidado) que Marx discordava de Hegel (e dos hegelianos) no tocante à primazia explicativo-causal das ideias. A segunda parte surgirá mostrando como a primeira parte foi descuidada. Algumas ideias (a saber, o conhecimento científico) serão apresentadas como tão fundamentais ao materialismo histórico quanto qualquer fator material, o que nos obrigará a interpretar o materialismo marxista de um modo peculiar. Contudo, apresentaremos uma proposta sobre como diferenciar as teorias da história de Marx e de Hegel ainda por meio da concessão de um papel especial às condições materiais.

1 – Para o materialismo histórico, as ideias são secundárias

Marx desenvolveu o materialismo histórico como uma resposta crítica ao idealismo histórico hegeliano1. A crítica materialista de Marx se destinava não apenas a Hegel, mas também aos jovens hegelianos que, assim como Hegel, acreditavam na primazia das ideias sobre as condições materiais no curso da história. Existem muitos modos de idealismo histórico. O modo mais radical é o hegeliano, segundo o qual a história é o desenvolvimento do espírito, do conceito absoluto. As condições materiais, econômicas, sociais, políticas seriam como que consequências do desenvolvimento das ideias ou da autoconsciência:

segundo a visão hegeliana, as características essenciais da vida material e econômica somente são compreendidas quando são assimiladas enquanto manifestações da autoconsciência (humana?) em um determinado estágio do seu desenvolvimento progressivo (COHEN, 2013, p. 438).

As ideias, portanto, teriam prioridade quanto às condições materiais, determinando e explicando essas. Para o idealismo histórico, a história seria, portanto, o desenvolvimento do espírito: “a história universal representa a evolução da consciência do espírito no tocante à sua liberdade e à realização efetiva de tal consciência” (HEGEL, 1995, p. 56). Para Hegel, o espírito

tem a história universal como o seu palco, propriedade e campo de sua realização. Ele não se sujeita ao vaivém do jogo exterior das contingências; antes, é o determinante absoluto, impassível ante as contingências, que domina e emprega em seu proveito (HEGEL, 1995, p. 53).

A evolução do espírito é o conteúdo principal da história: “A história universal representa, pois, a marcha gradual da evolução do princípio cujo conteúdo é a consciência da liberdade” (HEGEL, 1995, p. 55), sendo que a essência do espírito é “o conceito de liberdade” (HEGEL, 1995, p. 54). Marx se opõe a isso, ironizando diz que “para Hegel a história é uma história de espíritos” (MARX; ENGELS, 2007, p. 171).

Podemos afirmar que o materialismo de Marx era uma resposta a dois tipos diferentes de idealismo – idealismo metafísico e idealismo histórico. Thomas B. Bottomore identifica a oposição de Marx a essas duas formas de idealismo e também à forma ética do idealismo:

Marx se opôs ao idealismo em suas formas metafísica, histórica e ética. O idealismo metafísico vê a realidade como constituída, ou dependente, do espírito (finito ou infinito) ou de ideias (particulares ou transcendentes); o idealismo histórico entende as ideias ou a consciência como os agentes fundamentais ou únicos da transformação histórica; o idealismo ético projeta um estado empiricamente infundado (“superior” ou “melhor”) como uma maneira de julgar ou racionalizar a ação (BOTTOMORE, 2001, p. 183).

Em nossa pesquisa, no entanto, focaremos apenas no materialismo de Marx em sua forma histórica – então, a única forma de idealismo que nos interessa aqui é o idealismo histórico. Precisamos, no entanto, traçar uma linha divisória entre o idealismo histórico e o materialismo histórico sem jamais menosprezar a ação das ideias no curso da história. A teoria da história de Marx não anula a eficácia causal das ideias2 . A ideologia, por exemplo, tem uma função a desempenhar no todo social; se fosse nula a ação das ideias na história, a ideologia não executaria qualquer função. As ideias não são meramente passivas em relação aos fatores econômicos ou materiais, mas agem sobre eles também. Como Bottomore explica:

O antiidealismo ou “materialismo” de Marx não pretendia negar a existência e/ou a eficácia causal das ideias (pelo contrário, por oposição ao materialismo reducionista, insistia nisso), mas apenas a autonomia e/ou o primado explicativo a elas atribuído (BOTTOMORE, 2001, p. 183).

O que o materialismo histórico nega às ideias, portanto, é certa autonomia e certa primazia explicativa. As ideias não se desenvolvem autonomamente e não possuem primazia sobre as condições materiais e econômicas. Essa confusão sobre a postura do materialismo histórico em relação às ideias é tão comum que Engels se viu necessitado de defender Marx e ele:

porque nós negamos um desenvolvimento histórico independente às várias esferas ideológicas que desempenham um papel na história, não significa que nós também negamos a elas qualquer eficácia histórica. (…) um elemento histórico, tendo sido introduzido no mundo por outras causas, em última instância econômicas, reagirá por sua vez, e poderá exercer uma influência recíproca em seu ambiente e até mesmo em suas próprias causas (MARX; ENGELS, 2010b, p. 165).

O que Engels e Marx rejeitam é a tese de que “a história material seja produzida pela história ideal”, pois afirmar isso “coloca os fatos de cabeça para baixo” (MARX; ENGELS, 2007, p. 141). No entanto, não podemos exagerar essa afirmação. Do enunciado “a história ideal não pode produzir a história material” não se segue que o ideal não pode jamais “produzir” o material, isto é, gerar estados de coisas (ou auxiliar em sua geração). Marx acreditava que o ideal não poderia produzir o material em sentido forte: ideias não podem produzir um sistema econômico como o capitalismo. O espírito capitalista não produz o capitalismo, nem o desenvolve de maneira autônoma, isto é, independentemente de causas econômicas. Mas Marx certamente acreditava, assim como Weber, que o espírito capitalista causou diversos fatos materiais. Marx não concordaria com Weber, contudo, no caráter autônomo desse espírito capitalista em relação aos fatos materiais e econômicos. Se o calvinismo ajudou o capitalismo a progredir, isso deve ser explicado não apenas em referência a fatores psicológicos, morais e religiosos, mas também, já de início, em referência a fatores econômicos. Como Marx e Engels afirmam:

Se Stirner tivesse olhado para a história real da Idade Média, ele poderia ter encontrado a razão pela qual a representação cristã do mundo na Idade Média assumiu precisamente aquela forma, e como pôde acontecer que ela tenha passado a uma forma diferente; ele poderia ter descoberto que ‘o cristianismo’ não tem absolutamente história alguma e que todas as diferentes formas nas quais foi concebido em diferentes épocas não eram ‘autodeterminações’ e ‘desenvolvimentos ulteriores’ ‘do espírito religioso’, mas sim efeitos de causas inteiramente empíricas, livres de qualquer influência do espírito religioso (MARX; ENGELS, 2007, p. 156).

As diferentes formas assumidas pelo cristianismo – o que inclui a Reforma Protestante – não são autodeterminações do espírito religioso, isto é, não são causadas por fatores relacionados ao pensamento religioso, pois essas mudanças religiosas se devem a causas reais, o que, no contexto, denota causas relacionadas a condições materiais e econômicas. A religião não se desenvolve por conta própria, livre das influências econômicas. Pelo contrário, a religião não tem história, isto é, não tem uma história autônoma3. A religião, assim como qualquer ideologia, tem seu desenvolvimento condicionado pelo desenvolvimento econômico e material: é como seu o desenvolvimento das formas religiosas estivesse apenas acompanhando o desenvolvimento material e econômico e, por isso mesmo, não tem história própria.

Pois bem, Marx e Engels criticam a capacidade explicativa das ideias. Se o desenvolvimento das ideias não é autônomo, mas condicionado pelo desenvolvimento material, então não podemos explicar esse em referência àquele. Novamente: a história material não é produzida pela história ideal, mas o contrário. Marx critica o poder explicativo do idealismo histórico na seguinte passagem:

Admitamos, com o sr. Proudhon, que a história real, a história segundo a ordem temporal, é a sucessão histórica na qual as ideias, as categorias e os princípios se manifestam.

Cada princípio teve seu século para nele manifestar-se: o princípio da autoridade, por exemplo, teve o século XI, assim como o individualismo teve o século XVIII. De consequência em consequência, era o século que pertencia ao princípio, e não o princípio ao século. Em outros termos, era o princípio que fazia história, não era a história que fazia o princípio. Quando, em seguida, para salvar tanto os princípios quanto a história, indaga-se por que tal princípio se manifestou no século XI ou no XVIII e não em outro qualquer, é-se necessariamente obrigado a examinar com minúcia quem eram os homens dos séculos XI e XVIII, quais eram suas necessidades, suas forças produtivas, seu modo de produção, as matérias-primas de sua produção – enfim, quais eram as relações de homem para homem que resultavam de todas essas condições de existência (MARX, 2017, p. 105-106).

Ou seja, o idealismo histórico é incapaz de oferecer uma explicação completa dos fenômenos históricos. Quando questionamos sobre por que as ideias predominantes de tal século eram precisamente aquelas ideias, torna-se inevitável recorrer a considerações materiais. E isso torna manifesto que as considerações materiais têm, no curso da história, certa primazia e anterioridade sobre o ideal. O que Marx defende é que as ideias produzidas historicamente como que acompanham a produção material, tal qual um reflexo, e não o contrário. As ideias predominantes estão de acordo com a produção material e as relações sociais de determinada época, ajustando-se a elas, e não vice-versa. Como explica Marx:

Os mesmos homens que estabeleceram as relações sociais de acordo com sua produtividade material produzem também os princípios, as ideias, as categorias, de acordo com suas relações sociais.
Assim, essas ideias, essas categorias, são tão pouco eternas quanto as relações que elas exprimem. Elas são produtos históricos e transitórios.
Há um movimento contínuo de crescimento nas forças produtivas, de destruição nas relações sociais, de formação nas ideias (MARX, 2017, p, 102).

A produção intelectual é uma produção histórica – de certa forma, as ideias têm “validade histórica” – que acompanha a produção material. A produção intelectual tem como base a produção material e sua relações econômicas, sendo determinada por essas últimas:

os homens, ao desenvolverem sua produção e seu intercâmbio materiais, transformam também, com esta sua realidade, seu pensar e os produtos de seu pensar. Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência (MARX; ENGELS, 2007, p. 94).

Ocorre, portanto, o oposto do que o idealismo histórico afirma, por isso que este “coloca os fatos de cabeça para baixo”. As ideias, por conseguinte, como que chegam sempre com um atraso, chegam refletindo ou como consequência do desenvolvimento material, desenvolvimento este que elas acompanham. Por isso, quando as relações sociais mudam em decorrência de mudanças na produção material, as ideias acompanham a mudança e mudam também:

Será preciso grande inteligência para compreender que, ao mudarem as relações de vida dos homens, as suas relações sociais, a sua existência social, mudam também as suas representações, as suas concepções e conceitos, numa palavra, muda a sua consciência? Que demonstra a história das ideias senão que a produção intelectual se transforma com a produção material? (MARX; ENGELS, 2010, p. 56).

Em termos históricos, o idealismo inverte a realidade: não é o desenvolvimento das ideias que determina e explica o desenvolvimento material; não é a história material que está subordinada à história das ideias, mas o contrário. No entanto, isso se dá em termos históricos amplos. Não se segue disso que as ideias não podem influenciar o curso histórico ou que ideias não podem gerar condições materiais. É fato que as obras de Marx e Engels, por exemplo, influenciaram revoluções socialistas e diversos movimentos proletários. Contudo, mesmo quando as ideias influenciam a história, quando elas são capazes de gerar estados de coisas, podemos subordiná-las às condições materiais e econômicas. O socialismo científico de Marx e Engels foi, assim como o socialismo utópico anterior a eles, uma consequência do desenvolvimento do capitalismo até momentos de indignação popular, antagonismos de classes e crises econômicas4 . Uma teoria social que pode impulsionar os atores sociais a agir de determinado modo, criando novos estados de coisas, mas que, por sua vez, é efeito de um desenvolvimento histórico específico.

2 – Na verdade, algumas ideias não são secundárias

Muito bem, as passagens citadas acima tornam manifesto que Marx e Engels julgam que as ideias possuem uma relevância secundária quando o assunto é o desenvolvimento histórico. Agora, não obstante, uma dificuldade: para eles, o conhecimento científico não desempenhava um papel de coadjuvante na história, mas sim de protagonista. G. A. Cohen afirma que, para Marx, o conhecimento científico produtivamente aplicável era uma força produtiva. E já que o materialismo histórico concede primazia explicativa às forças produtivas5 , segue-se que o conhecimento científico capaz de ser aplicado à produção material também desfruta dessa primazia. Com efeito, o desenvolvimento do conhecimento científico é o centro do desenvolvimento das forças produtivas6 :

Marx afirma, e eu concordo, que esta dimensão subjetiva das forças produtivas é mais importante que a dimensão objetiva dos meios de produção; e no interior da dimensão mais importante, a parte mais capaz de desenvolvimento é o conhecimento. Portanto, nos seus estágios mais avançados, o desenvolvimento das forças produtivas é em grande medida uma função do desenvolvimento da ciência produtivamente útil. Se desejamos transformar uma sociedade produtivamente avançada numa sociedade atrasada, não conseguiremos muito ao destruir os seus instrumentos físicos de produção. Enquanto seu conhecimento produtivo prático [productive know-how] permanecer intacto, a sociedade em breve se restaurará, como a Alemanha fez quando, segundo uma visão certa vez prevalecente, sua indústria havia sido destruída pela Segunda Guerra Mundial. (…) não há (…) nenhuma barreira inerente à reconstrução do lado físico da força produtiva, desde que seu lado cognitivo não esteja danificado. Se, pelo contrário, removemos de algum modo o conhecimento produtivo prático [productive know-how] das cabeças dos produtores, mas poupamos suas instalações materiais, então, a menos que eles importem de novo conhecimento do estrangeiro, suas instalações avançadas decairão e eles necessitarão de séculos para recuperá-las (COHEN, 1988, p. 4).

O problema consiste na dificuldade de conciliar o caráter materialista do materialismo histórico com o fato de que certas ideias compartilham da primazia dos fatores materiais sobre os demais fatores. Cohen soluciona esse problema rejeitando que, para Marx, a oposição relevante seria entre material e ideal (ou mental), mas antes entre material e social7 . Assim, quando o materialismo histórico concede primazia às condições materiais, temos de ter em mente duas coisas: (i) as condições materiais aqui não designam condições físicas, podendo compreender também certas condições mentais, como o conhecimento científico8 ; (ii) afirma-se, sobretudo, que as condições materiais possuem primazia sobre as condições sociais. Desse modo, as forças produtivas não são compreendidas somente como forças físicas, mas também como forças mentais, como o conhecimento técnico e científico – as quais, Marx defende, possui primazia explicativa sobre certas condições sociais, como parte da realidade política, ideológica etc.

Dessa maneira, parece que não há como defender uma primazia do material sobre o ideal presente no materialismo histórico. Como assevera Elster:

não há qualquer sentido em que a teoria da história de Marx conceda um privilégio ao material em oposição ao mental. Marx invoca forças produtivas “espirituais”, como a ciência e a linguagem, em pé de igualdade com a tecnologia, e afirma sua importância para o processo de mudança social. Como G. A. Cohen argumentou, o antônimo relevante a “material” é “social”, e não “mental”. Se as forças produtivas são consideradas en bloc materiais, o são em oposição às relações sociais de produção, e não em contraste aos produtos e atividades da mente (ELSTER, 1985, p. 56).

Pode-se tentar argumentar que Marx era um materialista no sentido filosófico, atribuindo exclusividade ou prioridade ontológica à matéria. No entanto, isso não possui apoio textual e, mesmo se tivesse, não está claro como o materialismo filosófico deveria se relacionar com o materialismo histórico. Sobre essa questão, Elster afirma que

Marx não tinha uma visão materialista coerente e que, se tivesse tido uma, tal visão não teria nenhuma relação interessante com o materialismo histórico. Claramente, Marx foi um materialista no sentido de acreditar que o mundo externo possuía uma existência independente e anterior à existência do homem. Não conheço qualquer passagem onde Marx argumenta em favor de uma teoria materialista da consciência, em qualquer uma das versões possíveis dessa teoria. Isso inclui o epifenomenalismo, isto é, a visão de que a mente é ontologicamente independente da matéria, porém causalmente dependente dela, e a teoria da identidade, a qual afirma que a mente é matéria sob uma descrição diferente. Quando Marx, ocasionalmente, afirma a primazia do ser sobre a consciência, não está claro se ele está se referindo ao fato da consciência ou ao conteúdo da consciência, assim como não está claro que tipo de prioridade seria essa. Simplesmente não acredito que qualquer doutrina coerente possa ser extraída das considerações de Marx sobre o materialismo em A sagrada família ou de suas discussões sobre o que ele variadamente chama de realismo, naturalismo e humanismo nos Manuscritos econômico-filosóficos (ELSTER, 1985, p. 55-56).

Ou seja, embora diversos marxistas julguem que o corpo filosófico das obras de Marx está necessariamente vinculado ao materialismo filosófico, isso não parece ser o caso. Marx pode muito bem ter sido um materialista no sentido filosófico, acreditando que a realidade se reduz à matéria ou, ao menos, ter sido um dualista de propriedades, acreditando que a matéria é substância e os entes não materiais são propriedades dependentes da matéria (ou outra forma de materialismo, como o epifenomenalismo etc.) – mas essas são questões metafísicas que, por assim dizer, não são implicadas pelas teses marxistas, nem podemos extraí-las de maneira coerente das obras de Marx. O que queremos dizer é que Marx pode se considerar um materialista histórico sem precisar ser um materialista filosófico, pois ambos os tipos de materialismo são logicamente independentes. O materialismo histórico com certeza não precisa do materialismo filosófico para ser verdadeiro. A teoria materialista da história concede primazia causal e/ou explicativa às condições materiais de uma sociedade, em detrimento de outras condições sociais, para explicar o curso da história humana. Essa primazia das condições materiais não implica o materialismo filosófico. Marx poderia muito bem admitir que existem outros tipos de entes além da matéria e mesmo assim defender que a produção material, por exemplo, tem primazia sobre as condições políticas. Não estamos afirmando que Marx era um dualista, mas somente que o dualismo é compatível com o materialismo histórico, na medida em que esse último não implica o reducionismo materialista ou qualquer forma de materialismo filosófico, mas tão somente algum tipo de primazia explicativa e/ou causal das condições vinculadas à produção material sobre as demais condições sociais.

O ponto geral aqui é que o marxismo não precisa estar vinculado a considerações sobre a disputa metafísica entre monistas e dualistas. Marx certamente se posicionava contra o idealismo metafísico, argumentando que a realidade não era constituída por ideias9 , mas isso não significa que as teorias marxianas dependem de um monismo materialista ou de um posicionamento detalhado sobre a relação alma/corpo. Pelo contrário, estamos argumentando aqui que o materialista histórico, por mais que contraste, numa relação assimétrica, as condições materiais e as condições não materiais, não deveria se apoiar sobre questões de ordem metafísica referentes à disputa entre monistas e dualistas10 . Essas são questões extrínsecas aos interesses do materialismo histórico – daí não ser surpreendente que Marx jamais tenha tratado delas de modo coerente e contínuo.

Mediante o exposto, então, pode-se afirmar que o “materialismo” do materialismo histórico não deve ser interpretado como uma oposição radical ao “idealismo” do idealismo histórico. Não deve ser uma oposição radical porque não exclui completamente as ideias dos fatores causais e explicativos mais fundamentais. Cohen e Elster defendem que a primazia do material deve ser compreendido como uma primazia sobre condições sociais e econômicas, e não sobre ideias. Mas, gostaríamos de perguntar se existe, ainda assim, alguma oposição relevante entre a teoria da história de Marx e a teoria da história de Hegel que esteja ancorada na oposição entre condições materiais e ideias? Com certeza. As passagens citadas na primeira parte desta seção nos mostram como Marx sentia a necessidade de se situar do lado oposto dos hegelianos. No nosso entendimento, ainda que aceitasse elementos não físicos nos aspectos fundamentais de sua teoria, Marx desejava sobretudo enfatizar os elementos não ideais menosprezados pelos hegelianos. E, mais importante, devemos enfatizar que o conjunto de ideias consideradas fundamentais por Marx e Engels é restrito: somente o conhecimento científico que pode ser aplicado à produção material é considerado uma força produtiva. Quando Marx, portanto, ataca o idealismo de Proudhon, Max Stirner, Bruno Bauer e do próprio Hegel, vale lembrar que esses idealistas enfatizavam frequentemente a primazia causal-explicativa de ideias não científicas e não aplicáveis à produção material, como as ideias da filosofia especulativa ou da moral.

Ou seja, o materialismo histórico confere primazia às condições materiais, mas como as condições materiais incluem ideias, como o conhecimento científico, então não podemos opor o material ao ideal. A oposição correta seria entre material e social. Mas queremos defender aqui que, mesmo quando as ideias entram no conjunto das condições materiais ao qual a teoria marxista confere prioridade explicativa, essas ideias precisam estar associadas a determinadas condições materiais. O conhecimento cinetífico-tecnico é uma força produtiva, mas somente quando pode ser aplicado à produção material, ocasionando um desenvolvimento das forças produtivas. Conhecimentos técnicos sobre agricultura ou tecnologia produtiva podem ser incluídos no conjunto das forças produtivas, mas conhecimentos sobre metafísica, política, moral, arte, ou mesmo conhecimento científico sobre áreas não relacionadas à produção material, não devem ser considerados como forças produtivas, uma vez que não contribuem materialmente11 para a produção ou para o progresso das forças produtivas. Desse modo, argumentamos que mesmo sendo verdade que as forças produtivas materiais não denotam forças físicas, pois incluem ideias também, podemos condicionar a participação das ideias nos aspectos fundamentais do materialismo histórico por meio de sua relação com condições materiais como as forças produtivas e a atividade produtiva. Numa palavra, as ideias que contam como forças produtivas são forças produtivas somente na medida em que se relacionam com condições materiais delimitadas.

Assim, podemos traçar uma linha divisória entre Marx e Hegel com base no tipo de ideias consideradas fundamentais ao processo histórico. Marx enfatiza a produção material e o desenvolvimento das forças produtivas, sendo que as ideias que são forças motrizes da história devem estar relacionadas a essas condições materiais, ao passo que Hegel enfatiza o conhecimento especulativo, distancionado-se das condições materiais. O materialismo histórico é, portanto, materialista no sentido de que dá uma ênfase maior à esfera da produção material e ao que está relacionado a essa atividade material. Como explica Cohen, a teoria marxista da história “enfatiza principalmente (…) a atividade da produção”, o que, “em parte por esse motivo”, a faz ser “uma doutrina materialista” (COHEN, 2013, p. 398). As ideias, por seu turno, só se tornam fundamentais quando e porque recebem o uso de força produtiva. Ou seja, pode-se dizer que o materialismo histórico é materialista no sentido específico que confere uma ênfase ao processo de produção material e ao que está relacionado a este, sendo de natureza física ou ideal. Visto assim, discordamos completamente da seguinte passagem de Schumpeter:

a interpretação econômica da história é frequentemente chamada de interpretação materialista. O próprio Marx lhe deu esse nome. (…) Mas isso não tem o menor sentido. A filosofia de Marx não é mais materialista que a de Hegel, e a sua teoria da história não é mais materialista que qualquer outra tentativa de explicar o processo histórico pelos meios à disposição da ciência empírica (SCHUMPETER, 2016, p. 28).

Deixemos de lado a afirmação incorreta de que a filosofia de Marx não era mais materialista do que a filosofia de Hegel (sobre isso, ver nota 9 acima), e nos concentremos no fato de que a teoria da história de Marx é mais materialista que outras tentativas de “explicar o processo histórico pelos meios à disposição da ciência empírica” na medida em que concede prioridade explicativa à esfera da produção material e ao desenvolvimento das forças produtivas, enquanto que outras teorias da história podem muito bem conceder prioridade explicativa a outras esferas da ação humana, como a política, a ciência não produtivamente aplicável, as guerras etc. Resumindo, o que queremos dizer é que o caráter mais materialista da teoria marxista da história em comparação com as outras tantas teorias empíricas da história reside em sua ênfase na esfera da produção material e nas forças produtivas. Por exemplo, a teoria do poder de Dühring, criticada por Engels12 , é uma teoria da história que estabelece que as condições políticas são prioritárias, ao passo que as condições econômicas e materiais são secundárias e subalternas das condições políticas13 . Essa é uma teoria da história que seria menos materialista que a teoria marxista, mesmo se explicasse “o processo histórico pelos meios à disposição da ciência empírica”, uma vez que o materialismo histórico concede prioridade explicativa às condições materiais, ao passo que a teoria do poder concede às condições políticas. Como explica Elster:

Marx defendia que a mudança técnica – o desenvolvimento das forças produtivas – era o motor principal da história. A sua concepção da história não era somente uma concepção econômica, mas também tecnológica. (…) Certamente não há outro grande sociólogo que tenha atribuído uma importância comparável à mudança técnica (ELSTER, 1983, p. 158).

É justamente essa ênfase nas condições materiais ligadas à produção material, como o desenvolvimento das forças produtivas, que nos permite dizer que a teoria da história de Marx era uma teoria materialista, mesmo a despeito do fato de que algumas ideias integram o conjunto das forças produtivas, visto que as ideias que são consideradas forças produtivas somente o são na medida em que estão associadas à produção material.

Conclusão

Começamos este artigo com a distinção entre o materialismo histórico e o idealismo histórico, esperando que o traço distintivo entre ambos pudesse nos indicar em que sentido o materialismo histórico é materialista. A primeira parte do texto se ocupou de expor e analisar as passagens em que Marx e Engels rebaixavam o papel histórico das ideias a um segundo plano. A partir disso, concluímos rapidamente que as ideias eram secundárias ao materialismo histórico, enquanto as condições materiais eram primárias, sendo esse o traço distintivo entre a teoria da história de Marx e a teoria da história de Hegel. No entanto, na segunda parte, recorremos às obras de G. A. Cohen e Jon Elster para demonstrar que, para Marx, algumas ideias eram consideradas forças primárias do desenvolvimento histórico, assim como para acabar com confusões referentes à relação entre materialismo histórico e materialismo filosófico. A inclusão de certas ideias no conjunto das forças produtivas, cujo desenvolvimento é uma força motriz da história, prejudica a distinção entre materialismo histórico e idealismo histórico pelo recurso à distinção entre a primazia material e a primazia das ideias.

Concordamos com Cohen e Elster que a oposição central para o materialismo histórico está entre as condições materiais e as condições sociais. No entanto, defendemos que o caráter materialista da teoria da história de Marx não reside apenas na oposição entre material e social, mas também numa oposição enfraquecida entre material e ideal. Na medida em que somente um conjunto restrito de ideias é incluído no conjunto das forças produtivas, as quais devem estar relacionadas à produção material, o materialismo histórico continua opondo certos fatos materiais a certas ideias. Para a teoria de Marx, a prioridade explicativa reside na produção material ou em fatores relacionados a essa atividade, como o desenvolvimento das forças produtivas. As ideias consideradas forças produtivas adquirem esse status quando e porque são produtivamente aplicáveis, de modo que podemos opor um certo conjunto de ideias (produtivamente aplicáveis) a outro conjunto de ideias (não relacionados à produção material). Assim, mesmo quando as ideias devem ser consideradas primárias, sua prioridade está ancorada em fatos materiais como a aplicação à produção material.

Conteúdo obrigatório:
Agradecemos à CAPES pela bolsa de doutorado concedida ao primeiro autor e à bolsa de PIBID concedida à segunda autora.

 

NOTAS

1. COHEN, 2013, p. 437-438.

2. Como bem expressou Schumpeter: “Mas, se para Marx as ideias ou valores não eram as forças motrizes primárias, tampouco eram mera fumaça. Se me é permitido usar a analogia, elas tinham no motor social o papel das correias de transmissão” (SCHUMPETER, 2016, p. 28). As ideias não são mera fumaça – ou seja, as ideias não estão apenas anunciando a existência do fogo, como seu mero efeito; não são meros sintomas do desenvolvimento material.

3. MARX; ENGELS, 2007, p. 94.

4. “Por seu conteúdo, o socialismo moderno é, acima de tudo, produto da percepção dos antagonismos de classe reinantes na sociedade moderna entre possuidores e despossuídos, assalariados e burgueses, de um lado, e da noção da anarquia que governa a produção, de outro” (ENGELS, 2015, p. 45). 

5. MARX, 2024, p. 25.

6. COHEN, 2013, p. 79.

7. COHEN, 2013, p. 79 ss.

8. COHEN, 2013, p. 80 ss.

9. “Para Hegel, o processo de pensamento, que ele, sob o nome de Ideia, chega mesmo a transformar num sujeito autônomo, é o demiurgo do processo efetivo, o qual constitui apenas a manifestação externa do primeiro. Para mim, ao contrário, o ideal não é mais do que o material, transposto e traduzido na cabeça do homem” (MARX, 2013. p. 90).

10. No nosso entendimento, seria um argumento demasiado fraco para o estabelecimento do materialismo histórico afirmar que as condições materiais têm primazia sobre as condições ideias porque as ideias dependem da matéria. Se o marxismo deseja se apoiar em algum tipo de dualismo de propriedades no qual as propriedades ideais dependem da matéria substancial, isso seria falacioso, pois o que a teoria materialista da história deseja é explicar a história de esferas sociais como a política, a estrutura econômica etc. por referência à produção material, ao desenvolvimento das forças produtivas e a outras condições materiais, mas essa primazia explicativa não pode ser estabelecida através de uma dependência existencial dos seres não materiais em relação à matéria. Por exemplo, mesmo se as ideias que temos em nossas cabeças são ontologicamente dependentes do nosso corpo físico, disso não se segue que o nosso corpo físico explica o caráter e o conteúdo de nossas ideias. A dependência existencial não implica a determinação do conteúdo. Isto é, do fato de que x depende de y para existir não se segue que y explique o caráter de x, já que y é tão somente uma condição da existência de x. Do fato de que preciso do meu corpo para pensar não se segue que meus pensamentos filosóficos possam ser explicados em referência ao meu corpo físico. As alegações explicativas do materialismo histórico, portanto, não podem se basear no dualismo de propriedades ou em outra forma de materialismo filosófico. Para mais detalhes a respeito da falácia argumentativa mencionada acima, ver COHEN, 1988, Cap. VII. 

11. Uma atividade necessária à produção a torna uma atividade produtiva apenas se a sua necessidade estiver fundamentada nos fatos físicos da situação (…) Apenas o que contribui materialmente à (e no interior da) atividade produtiva, como Marx circunscreve, pode ser considerado uma força produtiva” (COHEN, 2013, p. 67, grifos nossos).

12. ENGELS, 2015, p. 189 ss.

13. A teoria do poder é a teoria de Dühring de acordo com a qual “todos os fenômenos econômicos devem ser explicados a partir de causas políticas, a saber, a partir do poder” (ENGELS, 2015, p. 188). Essa teoria estabelece que as ações políticas são a força motriz da história: é a “concepção de que as ações políticas dos príncipes e Estados seriam o elemento decisivo na história” (ENGELS, 2015, p. 188). Obviamente, essa é uma teoria anti-marxista na medida em que coloca as superestruturas políticas como sendo mais fundamentais que as estruturas econômicas. Marx sempre contrariou a prioridade da política em relação à economia: “De fato, é preciso ser desprovido de qualquer conhecimento histórico para ignorar que os soberanos, em todos os tempos, submeteram-se às condições econômicas, sem jamais lhes impor sua lei. A legislação, tanto política quanto civil, apenas enuncia, verbaliza o poder das relações econômicas. (…) o comércio é mais soberano que o soberano” (MARX, 2017, p. 82-84, grifo nosso). O ponto aqui, contudo, é que a teoria do poder seria uma teoria da história menos materialista que o materialismo histórico, uma vez que se concentraria nas ciências políticas em vez das ciências econômicas.

Referências Bibliográficas

BOTTOMORE, Tom. Dicionário do Pensamento Marxista. Editora Zahar, 2001.
COHEN, G. A. History, Labour, and Freedom: Themes from Marx. Oxford University Press, 1988.
_____________ A Teoria da História de Karl Marx: Uma defesa. Unicamp, 2013.
ELSTER, Jon. . Explaining Technical Change. Cambridge University Press, 1983
____________ Making Sense of Marx. Cambridge University Press, 1985.
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HEGEL, G. W. F. Filosofia da História. Editora UnB, 1995.
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___________ Para a Crítica da Economia Política. Boitempo, 2024.
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