Revista Casa Marx

Resenha de Escritos Políticos de Frantz Fanon

Igor Delgado

O livro Escritos Políticos reúne uma série de textos de Frantz Fanon publicados no jornal El Moudjahid durante a Guerra de Independência da Argélia (1954–1962), apresentamos uma resenha do livro publicado pela Boitempo em 2021.

O livro Escritos Políticos reúne uma série de textos de Frantz Fanon publicados no jornal El Moudjahid durante a Guerra de Independência da Argélia (1954–1962). Nesses artigos, Fanon não apenas acompanha os desdobramentos da luta anticolonial argelina, mas também articula reflexões profundas sobre temas como o racismo, o colonialismo, a violência revolucionária e a necessidade de solidariedade internacionalista. Escritos em um contexto de intensa mobilização política e militar, esses textos revelam o engajamento prático e teórico de Fanon, oferecendo insights valiosos sobre seu pensamento em ação. Ao analisar essa coleção, é possível perceber como suas ideias, desenvolvidas posteriormente em obras como Os Condenados da Terra, já estavam em gestação, mostrando a coerência e a urgência de sua visão revolucionária. No livro, é possível perceber claramente o Fanon marxista e internacionalista, uma dimensão frequentemente negada por leituras liberais que buscam esvaziar o caráter revolucionário de seu pensamento. Essas interpretações, muitas vezes intencionais, procuram diluir o potencial transformador de suas ideias, ignorando seu engajamento com a luta anticolonial e sua crítica radical ao capitalismo, ao racismo e às estruturas de dominação global. Fanon, em sua obra, não apenas denuncia as opressões, mas também aponta para a necessidade de uma emancipação coletiva e universal, algo que vai muito além das leituras superficiais e despolitizadas que tentam domesticar seu legado.

Alguns desafios enfrentados por Fanon continuam a nos perseguir: a dificuldade das esquerdas, sejam elas institucionais ou revolucionárias, em compreender a intrincada relação entre capitalismo, colonialismo e racismo; as permanências e transformações do (neo)colonialismo, que se manifestam de diversas formas na colonialidade do ser, do saber e do poder; e a complexidade teórica e política de estabelecer uma relação dialética que integre a diferença em um projeto verdadeiramente anti-imperialista e emancipatório.

Fanon nos ensina que a luta anticolonial implica em resgatar o que foi perdido ou negado, mas não se trata de um simples retorno ao passado pré-colonial, que é objetivamente irrecuperável. Também não se confunde com a defesa de uma identidade a-histórica, que ignora as diferenças internas e o que há de universal na experiência humana. Em vez disso, é um movimento que busca reconstruir, a partir das ruínas deixadas pelo colonialismo, uma nova possibilidade de existência, que reconheça tanto as particularidades culturais quanto os valores comuns que unem a humanidade. É visível o interesse de Fanon por uma consciência que só se forja libertando-se das identidades do passado mas também revisitando-as.

Sobre o soldado francês na Argélia, Fanon descreve um processo de desumanização sistemática, sintetizado na frase: “Fazer surgir do homem uma fera”. Ele detalha como os militares franceses eram submetidos a um intenso adestramento psicológico, no qual “longas horas do dia eram dedicadas a decorar lições dos professores em que tinham que aprender a odiar o argelino, a desprezar a pessoa humana, a banir da mente todo respeito à vida”. Esse treinamento não visava apenas prepará-los para a guerra, mas transformá-los em instrumentos de violência desprovidos de empatia ou reflexão moral.

Fanon evidencia como o colonialismo não só oprime os colonizados, mas também corrompe os colonizadores, reduzindo-os a agentes de uma brutalidade desumanizante. O soldado francês, ao ser ensinado a ver o argelino como um inimigo inferior e desprezível, perde sua própria humanidade no processo. Essa dinâmica revela a dualidade da violência colonial: enquanto destrói a dignidade dos oprimidos, também degrada a consciência dos opressores, perpetuando um ciclo de desumanização mútua. Essa análise de Fanon não se limita ao contexto argelino, mas expõe um mecanismo central de qualquer sistema de dominação: a desumanização do “outro” como justificativa para a violência e a opressão. Ao destacar esse processo, Fanon nos convida a refletir sobre as consequências éticas e psicológicas da colonização, tanto para os colonizados quanto para os colonizadores, e sobre a necessidade de romper com essa lógica para alcançar uma verdadeira emancipação humana.

“Decretar a Argélia como departamento francês significa instaurar no país uma opressão total.” No entanto, essa mesma medida cria uma situação explosiva, marcada por contradições de tal profundidade que o sistema que as gerou se torna incapaz de assumi-las. A violência extrema do colonialismo na Argélia, paradoxalmente, acelerou o amadurecimento e a consciência política do povo argelino, conferindo uma dimensão revolucionária à sua luta.

Ao proporcionar ao povo uma compreensão clara de suas possibilidades de sobrevivência e de seus interesses essenciais, o colonialismo acabou por abrir espaço para um questionamento implacável do sistema. Esse questionamento não se dirige a uma ou outra forma que o colonialismo possa assumir, mas à sua essência e aos seus fundamentos objetivos. Dessa forma, a própria brutalidade do colonialismo acaba por revelar suas contradições internas e, ao mesmo tempo, alimenta a resistência que busca destruí-lo em suas raízes.

Em período de engajamento revolucionário, essa recusa…” (recusa de reformas estruturais) “…traduz uma exigência fundamental. Aceitar uma fórmula centrada em algo que não seja a independência é renunciar a derrubar o colonialismo quando se tem a possibilidade de fazê-lo.

Essa afirmação revela a intransigência necessária diante de um sistema opressor, onde concessões ou reformas parciais não apenas desviam do objetivo central, mas também fortalecem a estrutura que se busca destruir. A luta anticolonial, nesse sentido, não pode se contentar com ajustes superficiais; ela exige uma ruptura radical com o sistema vigente.

Como Fanon destaca, “a revolução é inimiga das meias-medidas.” Essa ideia reforça a necessidade de um compromisso total com a transformação, pois qualquer tentativa de conciliação ou compromisso com o colonialismo acaba por perpetuar suas lógicas de dominação. A revolução, portanto, não admite hesitações: ela exige clareza de propósitos e a disposição de confrontar o sistema em sua totalidade, sem recuar diante da magnitude do desafio. Essa postura intransigente não é apenas uma escolha estratégica, mas uma condição essencial para alcançar a verdadeira emancipação.

A opressão colonial provoca a atomização e a despersonalização de um povo, levando-o à beira da aniquilação. Diante dessa realidade, o argelino reage com uma violenta tomada de consciência, impulsionado pela necessidade vital de se perpetuar. Essa reação tem como efeito, por um lado, um retraimento obstinado em seu “Eu” ameaçado, e, por outro, um aprimoramento de suas capacidades de adaptação aos valores modernos.

A necessidade de se perpetuar gera no argelino — e, quando falo de argelino, é possível ler “colonizado” — o desejo de ser ele mesmo, de compreender o Outro e de assimilar a experiência moderna sem se deixar assimilar por ele. Essa dinâmica revela uma luta constante: a busca por preservar a identidade e a autonomia diante de um sistema que busca aniquilá-las, ao mesmo tempo em que se apropria criticamente dos elementos da modernidade para fortalecer sua resistência. Assim, o colonizado não apenas resiste à dominação, mas também se reinventa, construindo uma nova subjetividade que desafia as lógicas opressivas do colonialismo.

Fanon afirma que “o despertar dos magrebinos para a consciência da impossibilidade absoluta de assimilar seus interesses aos do imperialismo obriga-os a uma resistência inclemente, uma luta desesperada em que são mobilizados todos os recursos da violência e do maquiavelismo”, já é possível identificar os fundamentos do que ele desenvolveria de forma mais ampla e sistemática três anos depois, em Os Condenados da Terra. Aqui, Fanon captura a essência de um processo crucial: o momento em que os colonizados tomam consciência de que não há reconciliação possível entre seus interesses e os do sistema colonial. Essa consciência não é apenas intelectual, mas visceral, e dela emerge uma resistência radical e implacável.

… cada africano deve saber-se engajado na luta de libertação do continente e deve, de maneira concreta, ser capaz de responder fisicamente ao apelo deste ou daquele território. Cada partido africano deve desenvolver a consciência africana de seu povo.

Esse trecho revela a urgência de um compromisso coletivo e prático com a libertação, no qual cada indivíduo e cada organização política assumem um papel ativo na resistência ao colonialismo. Para Fanon, esse engajamento não é apenas uma questão de ação, mas também de conscientização: é necessário criar uma consciência africana unificada, capaz de reconhecer os interesses comuns e reivindicá-los de forma organizada e combativa. Essa tomada de consciência, portanto, não se limita a uma reflexão passiva, mas se traduz em um esforço contínuo para fortalecer a identidade e a autonomia dos povos africanos, opondo-se de maneira firme e estratégica ao domínio do colonizador. Como Fanon escreveu três anos depois em Condenados da Terra, “Cada geração deve descobrir sua missão, cumprí-la ou traí-la em relativa opacidade.”.

a vontade nacional na África deve ser concomitante à vontade de libertação da África. […] Não é possível um argelino ser verdadeiramente um argelino se não sente no mais profundo de si mesmo o drama inominável que acontece na Rodésia ou em Angola

Fanon nessa citação evidencia claramente seu internacionalismo marxista, frequentemente negado ou ignorado por leituras liberais que buscam esvaziar o caráter revolucionário de seu pensamento. Para Fanon, a luta anticolonial não pode ser reduzida a fronteiras nacionais ou a interesses localizados; ela é, por essência, uma luta universal e interconectada. Ao vincular a identidade argelina à solidariedade com os povos oprimidos da Rodésia e de Angola, ele demonstra que a verdadeira libertação só pode ser alcançada por meio de uma consciência coletiva que transcende as divisões geográficas e culturais, unindo os colonizados em um projeto comum de emancipação. Essa visão profundamente internacionalista e anti-imperialista contrasta com as apropriações liberais que tentam domesticar Fanon, diluindo seu compromisso radical com a transformação global e sua crítica incisiva ao capitalismo e ao colonialismo como sistemas interligados de opressão.

Fanon alerta que “os países africanos devem se unir, pois o imperialismo, por seu lado, vem consolidando suas posições e está descobrindo novas configurações, novas formas de se perpetuar.” Essa afirmação reforça a necessidade de uma solidariedade continental e internacional diante de um sistema imperialista que se reinventa constantemente para manter seu domínio. A união dos povos africanos, portanto, não é apenas uma estratégia, mas uma condição essencial para enfrentar as novas formas de opressão e garantir uma libertação verdadeira e duradoura.

Como bem observa o Prof. Deivison Faustino na introdução do livro:

a crítica intransigente de Fanon à esquerda é sempre uma crítica que exige o melhor dela, e não a recusa

Essa reflexão sintetiza o espírito do pensamento fanoniano: uma chamada ao engajamento radical, à autocrítica e à superação das limitações que impedem a realização de um projeto verdadeiramente emancipatório. Fanon não rejeita a esquerda, mas desafia-a a ir além de suas contradições, a reconhecer as complexidades da luta anticolonial e a abraçar uma solidariedade internacionalista que una os povos oprimidos em um movimento transformador. Sua obra, portanto, permanece como um convite urgente à reflexão e à ação, exigindo que enfrentemos, com coragem e clareza, as estruturas de dominação que ainda nos assombram.

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