André Barbieri
Nesta entrevista exclusiva ao Instituto Casa Marx do Brasil, Daniel Bell (Universidade de Hong Kong) analisa a relação entre confucionismo, legalismo e marxismo na China. Professor catedrático de Teoria Política na Faculdade de Direito da Universidade de Hong Kong, Bell foi decano da Faculdade de Ciências Políticas e Administração Pública da Universidade de Shandong (Qingdao) entre 2017 e 2022. Entre seus livros mais destacados estão The Dean of Shandong (2023), Just Hierarchy (em coautoria com Wang Pei, 2020), The China Model (2015), The Spirit of Cities (com Avner de-Shalit, 2012), China’s New Confucianism (2008), Beyond Liberal Democracy (2007) e East Meets West (2000), todos publicados pela Princeton University Press. Também é autor de Communitarianism and Its Critics (Oxford University Press, 1993) e editor-fundador da série Princeton-China (Princeton University Press), que traduz e publica trabalhos acadêmicos originais e influentes da China. A entrevista foi conduzida pelo cientista político André Barbieri, autor do livro China: Onde os Extremos se Encontram (Iskra Edições).
Obrigado, Professor Bell, por estar conosco para conversar sobre questões chinesas, filosofia chinesa e sobre a relação entre política e filosofia da cultura, que é um tema muito interessante. Aqui no Brasil todo mundo está discutindo as relações entre Brasil e China, e acredito que essa será uma conversa muito boa.
— É uma honra, obrigado.
Tenho visto que o senhor vem refletindo e escrevendo sobre o confucionismo, que foi uma parte fundamental da rica tradição filosófica da China, tanto antes como depois da unificação do império no ano 221 a.C., por Qin Shi Huang. Gostaria que o senhor explorasse as principais características do pensamento confucionista e como essa tradição foi recuperada na China após o legado da Revolução Cultural.
— A primeira coisa a destacar é que essa tradição, como o liberalismo ou o cristianismo, é enormemente diversa e mudou bastante ao longo do tempo. Esteve constantemente em contato com outras tradições, incluindo o legalismo, o taoismo, o budismo — e, mais recentemente, o cristianismo, o liberalismo, a democracia, o feminismo e também uma tradição socialista. Se eu tivesse que identificar alguns princípios básicos fundamentais para a tradição confucionista — e sem os quais, se você os negar, não poderia se chamar confucionista — um deles seria que a boa vida envolve relações sociais saudáveis, harmoniosas e compassivas, começando pela família e se expandindo para fora. Quem discordaria de que precisamos de boas famílias e boas comunidades? Mas há outras tradições que valorizam, por exemplo, formas de vida mais voltadas para o além, dizendo que a boa vida está no paraíso ou vem após a morte. O confucionismo quase não diz nada sobre a vida após a morte. Você também tem outras tradições, como a da República de Platão, que afirmam que a melhor vida está na contemplação e na filosofia. Para os confucionistas, isso só é válido como um estágio intermediário, antes de voltar à “Caverna” e servir à comunidade. É na caverna onde está a ação. Eles não são ateus, mas dizem: “esta vida já é complicada o suficiente, vamos focar em resolver os problemas desta vida” — todos os tipos de problemas sociais. O ponto de partida é ter relações familiares compassivas, harmoniosas e amorosas. Se as relações familiares forem assim, podem se expandir para além da família — e é por isso que os confucionistas dão tanta ênfase à família. Há também uma visão sobre a melhor forma de vida. Ou, pelo menos, uma forma de vida pela qual é difícil lutar e que apenas uma minoria pode realmente alcançar. Mas essa forma de vida está em servir à comunidade — especialmente à comunidade política. Isso já existia antes da unificação da China. É por isso que, a partir do confucionista Xunzi, temos exemplos de sábios que vagavam de estado em estado tentando convencer os governantes a governarem de forma moral. E não conseguiam. Como segunda opção, acabavam se contentando com a vida de mestre. No fundo, queriam servir à comunidade — e esse tem sido o fio condutor da tradição confucionista. E se houver governantes dispostos a ouvir a persuasão moral, então o ideal é se colocar no papel de conselheiro, pois é exercendo o poder político que se pode causar o maior impacto positivo. De novo: nem todas as tradições pensam assim. Algumas tradições religiosas ou filosóficas dizem que a boa vida não é a vida política. Mas, para os confucionistas, a melhor vida de todas é, de fato, a vida política.
Relacionando com várias coisas muito interessantes que o senhor disse, lembro que Maquiavel é um pensador que veio muito tempo depois de Confúcio, de outra tradição, mas quando fala sobre as reformas que deveriam ser feitas em Florença para que a cidade fosse bem governada, ele dizia que as leis tinham um papel muito importante no aspecto de “freios e contrapesos” aos instintos individuais. Assim, cada pessoa poderia usufruir das possibilidades de ação sem ser freada pela tirania. Ele não falava sobre moralidade, sobre a capacidade “moral” de um pensador ou agente político. Como o senhor estabeleceria algumas analogias entre essas tradições? Afinal, Confúcio não se interessava por boas leis.
— A tradição republicana — e talvez possamos situar Maquiavel dentro dela — também dá ênfase ao serviço à comunidade e à vida política. Mas há mais ênfase nas leis e nas instituições. Para os confucionistas, o mais importante é ter servidores públicos com uma capacidade acima da média e, sobretudo, com virtude — ou seja, que estejam dispostos a servir à comunidade. Sem isso, mesmo com leis maravilhosas, elas não serão sustentáveis. Ou, no mínimo, as pessoas encontrarão formas de burlar as leis. Portanto, os confucionistas não são necessariamente contra as leis. Eles afirmam que, para resolver os problemas, o mais importante é confiar na virtude, e só quando ela falha — como último recurso — devemos recorrer às leis e punições legais. Na China, existe uma tradição oposta, quase como uma tradição antagônica, que talvez tenha sido tão influente quanto (ou até mais do que) o confucionismo: o legalismo. Ao longo da história chinesa, os legalistas defenderam que a única maneira de estabelecer a ordem social é por meio de leis rigorosas que controlem as pessoas e as façam temer fazer o mal, com instituições previsíveis que não dependam tanto da moralidade dos governantes. Assim, temos essas duas tradições — o confucionismo e o legalismo — que estiveram constantemente em tensão ao longo da história chinesa.
Vamos falar sobre o legalismo, mas antes, sobre o confucionismo. O Partido Comunista Chinês (PCCh) representa uma espécie de corrente de renascimento do confucionismo. O próprio Xi Jinping fez uma visita ao túmulo de Confúcio para prestar-lhe homenagem ao assumir o cargo. Mas Confúcio e seus discípulos são famosos por percorrerem longas distâncias, de estado em estado, antes da unificação da China, para criticar governantes que não agiam segundo valores morais adequados. Como o senhor descreveria as tensões nesse enfoque ou nesse tipo de renascimento confucionista promovido pelo PCCh?
— Suponho que isso deve ser pensado de duas formas. Primeiro: por que ocorreu esse renascimento? E segundo: por que existe uma tradição crítica confucionista que se opõe à apropriação do confucionismo por parte do PCCh — ou, ao menos, há uma tensão. Na maior parte da história imperial chinesa, o confucionismo foi o sistema de valores dominante. Quando o império ruiu, no início do século XX, surgiu uma tradição de forte antitradicionalismo. Isso já acontecia antes de 1949, quando o Partido Comunista chegou ao poder. Mas, uma vez no poder, o PCCh levou essa postura antitradicionalista a um nível ainda mais extremo, culminando na Revolução Cultural (1966–1976), que foi explicitamente anticofuncionista. Do ponto de vista confucionista, talvez o primeiro grande trauma tenha sido a unificação da China sob Qin Shi Huang, cerca de 2.000 anos atrás, quando muitos estudiosos confucionistas foram enterrados vivos junto com seus livros. A Revolução Cultural foi um evento em que se decidiu eliminar os “quatro antigos” sistemas de pensamento, entre eles o confucionismo — culpado por atrasar a China, por seu feudalismo, patriarcado e por tudo o que era considerado antiprogressista. O que ocorreu desde então foi o reconhecimento geral de que a Revolução Cultural foi, em grande parte, um desastre. O esforço para apagar a história tradicional revelou-se infrutífero e apenas gerou caos, violência e anti-intelectualismo. Nas últimas quatro décadas, vimos um surpreendente renascimento das tradições na China — com o confucionismo no centro. Também houve renascimentos do budismo e do taoismo; não foi apenas o confucionismo. Por que isso aconteceu? Há uma razão política: o partido governante não quer apenas se legitimar com base nos valores da tradição marxista. Ele busca se apropriar de uma história muito mais longa, pois o confucionismo foi o sistema de valores dominante durante a maior parte da história chinesa. Portanto, faz sentido reforçar ou complementar a legitimidade do regime com valores confucionistas. Mas há também outras razões. Não foi por acaso que vários países do Leste Asiático (não só a China, mas também Coreia do Sul, Japão e Singapura) — todos com alguma influência confucionista — se modernizaram com rapidez e relativa paz. Por quê? Porque os mesmos valores confucionistas antes acusados de terem atrasado a China — como a visão voltada para este mundo, o desejo constante de autossuperação, o forte ênfase na educação e a preocupação com as gerações futuras — na verdade contribuíram para essa modernização pacífica. Por outro lado, essa modernização de estilo capitalista também tornou as pessoas mais atomizadas e individualistas. Portanto, era necessário recuperar uma tradição que valorizasse a responsabilidade social, e o confucionismo foi um recurso importante nesse sentido. Também existe uma razão acadêmica. Quando se estuda a tradição confucionista, percebe-se que ela é fascinante, profunda e rica. Eu mesmo fui treinado em tradições ocidentais até o final da pós-graduação e praticamente não havia estudado confucionismo. Mas muitos dos temas presentes na tradição comunitarista ocidental também estão no confucionismo — como a importância da comunidade e da política. Só que, na verdade, o comunitarismo ocidental é uma vertente do liberalismo. A tradição confucionista trata de alguns desses temas, mas também de outros que o comunitarismo ocidental praticamente não aborda — como a importância da harmonia social, dos ritos, do sentido de comunidade e da meritocracia política. Esses valores estão quase ausentes no comunitarismo ocidental. Por isso, fazia sentido que, dentro e fora da China, as pessoas começassem a olhar para a tradição confucionista de forma mais rica e profunda. Essa foi a primeira parte da resposta. A segunda é que os primeiros confucionistas eram críticos sociais. Não apenas Confúcio, mas também Mêncio e Xunzi — os três grandes nomes do confucionismo anterior à unificação da China — estavam profundamente insatisfeitos com o sistema político de seu tempo. Eles vagavam de estado em estado, criticando os governantes, na maior parte das vezes sem sucesso. Mêncio, por exemplo, confrontou um rei diretamente por conduzir guerras sangrentas e injustas para conquistar novos territórios. É impressionante o que aconteceu depois da unificação da China. O primeiro imperador era contra o confucionismo, mas seu regime durou apenas 15 anos. A dinastia seguinte, a dinastia Han, que durou quatro séculos, tornou o confucionismo o sistema de valores oficial, fundindo-o com a ortodoxia política do Estado. Mesmo assim, a tradição da crítica social confucionista permaneceu viva, com pensadores apelando à moralidade, ao Tao, para criticar o status quo. Mas também houve, desde cedo, uma corrente confucionista que defendia a ordem vigente. Essas duas linhas — a crítica e a conservadora — coexistem há mais de dois mil anos, e essa tensão continua até hoje.
Quando você menciona a importância das relações harmoniosas e da estabilidade, posso imaginar como o Partido Comunista Chinês utiliza isso internamente, especialmente considerando o tamanho gigantesco da classe trabalhadora chinesa. Sabemos que há tensões sociais e luta de classes, como em qualquer outro lugar do mundo. O governo, diante desses desafios, enfatiza valores confucionistas como unidade, harmonia nas relações e estabilidade — estou certo?
— Sim, acho que está certo. Mas também vale a pena notar que muitos dos valores confucionistas são vulgarizados e distorcidos na prática. Claro, isso também acontece com outras tradições — como democracia, direitos humanos, liberalismo ou cristianismo — que muitas vezes são mal interpretadas e manipuladas. A harmonia é, sim, um valor central do confucionismo. Mas, para o ouvido anglófono, por exemplo, “harmonia” soa como “ordem e uniformidade”. Isso é uma distorção grosseira do conceito. Uma das linhas mais famosas dos Analectos confucionistas afirma que os indivíduos exemplares valorizam a proximidade com diversidade e harmonia (he), em oposição à uniformidade (tong), que é valorizada por pessoas mesquinhas. A ideia confucionista de harmonia reconhece a diversidade da sociedade, o pluralismo. O ponto é lidar com essa diversidade de maneira pacífica e transformá-la em algo mais belo e harmonioso do que a simples soma das partes. Gosto de usar a metáfora de uma sopa. Se tiver só sal, será sem graça. Mas, ao misturar vários ingredientes, ela se torna saborosa. Ou uma metáfora musical: harmonia significa várias notas tocadas em conjunto, produzindo algo belo. No contexto político, antes da unificação da China, isso implicava que o governante devia ouvir diferentes pontos de vista. Se só existe uma opinião e ninguém a contesta, isso levará a erros inevitáveis. Mas, na prática, a ideia de “harmonia” tem sido usada de forma distorcida — especialmente desde que foi reintroduzida como valor oficial na era Hu Jintao e mantida sob Xi Jinping. Às vezes, ela é utilizada para justificar a repressão à dissidência e aos protestos sociais em nome da ordem, o que está muito mais alinhado com o legalismo do que com o confucionismo. As ideias confucionistas, nesse caso, são invocadas de forma deturpada para legitimar medidas que, na verdade, contrariam seus princípios mais fundamentais.
É muito interessante conhecer essa interpretação da harmonia — com elementos diversos que convergem…
— E essa nem é uma interpretação obscura. É a interpretação dominante. Todo chinês educado conhece essa passagem dos Analectos que acabei de mencionar: que devemos valorizar a diversidade e a harmonia (he), e não a uniformidade (tong). Na cerimônia de abertura das Olimpíadas de 2008 em Pequim, escolheram uma figura que representasse o melhor da cultura chinesa — justamente essa ideia de he. Mas lembro de um jornalista americano dizendo: “Olhe essa harmonia — todos esses soldados marchando em sincronia!”. Isso é o que entendem por harmonia? Uma distorção completa! Qualquer chinês que ouvisse isso diria: “Do que você está falando? Isso é tong, uniformidade, não he, harmonia.” A própria linguagem, nesse caso, leva facilmente a más interpretações e mal-entendidos.
O que você disse sobre Mêncio é interessante, porque ele também era confucionista. Valorizava essa interpretação da harmonia, mas também dizia que, se um governo não atendesse aos interesses do povo, deveria ser derrubado.
— Essa tradição crítica do confucionismo é muitas vezes bastante indireta, mas, basicamente, se você, como governante, não está servindo ao povo, então você é um tirano. E um tirano não é um verdadeiro governante, e implicitamente as pessoas têm o direito de — não sei se exatamente de se rebelar — mas têm o direito de matar esse governante. Era uma forma de crítica social radical, embora frequentemente expressa de maneira velada.
Vamos explorar essa relação com o legalismo, porque acho muito interessante o que você disse sobre Xunzi. Talvez ele tenha uma visão mais realista do confucionismo — que valoriza a harmonia e a moralidade, mas não exclui o uso da força. A escola legalista se destaca na questão das leis. Quando precisamos de leis e de preservar a estabilidade do governo com regulamentos, como você colocaria isso em perspectiva, pensando na escola legalista? Talvez Han Fei seja um importante expoente dessa filosofia — e também da atual forma de governo na China.
— Como você disse, Xunzi foi o mais realista dos primeiros confucionistas, antes da unificação da China. Pessoalmente, acredito que ele foi o melhor teórico político da história chinesa — talvez até do mundo. Acho que sua obra é grandiosa: ele escrevia de forma clara, sistemática, e extraía o melhor de várias tradições — incluindo o taoismo, o legalismo e outras correntes confucionistas — para criar algo novo. Mas ele escrevia numa das épocas mais sombrias, caóticas e sangrentas da China, durante o Período dos Estados Combatentes — quando os estados estavam constantemente em guerra, com batalhas que resultavam na decapitação de centenas de milhares de soldados e massacres de civis. É difícil ser otimista em um ambiente assim. Contra Mêncio — que argumentava que o ser humano tem uma tendência natural para o bem, e que tudo o que se precisa é de um ambiente adequado —, Xunzi respondia que temos uma tendência natural ao mal, mas que podemos melhorar, o que exige esforço consciente. Ele usava a imagem do carpinteiro que molda a madeira. Requer esforço consciente do indivíduo, do sistema educacional e do Estado para transformar as pessoas. Seu aluno mais famoso, Han Fei, partiu do princípio de que nascemos maus e continuamos maus — não podemos melhorar. Assim, a única forma de manter a ordem social seria por meio de leis rigorosas, que controlassem praticamente todas as ações e não deixassem margem para interpretações. Segundo ele, o foco deveria estar na agricultura e na guerra — todo o resto era supérfluo e inútil se o objetivo era construir um Estado forte o suficiente para sobreviver num mundo brutal. Era esse o sistema ideal: leis claras, punições severas. Ele também absorveu de Shang Yang a ideia de um sistema de promoções no exército baseado em métricas objetivas — não em reputação ou virtude. A quantidade de cabeças de inimigos decapitadas era o critério para ascensão na hierarquia militar. Foi com esse método que o Estado de Qin, sob Qin Shi Huang, conseguiu unificar a China. Mas esse regime durou apenas 15 anos, em parte porque em tempos de paz, métodos tão cruéis não são sustentáveis. A dinastia Han, que veio em seguida e durou muito mais, recorreu com frequência a métodos legalistas, mas se esforçou para lhes atribuir uma base moral confucionista. Essa foi a tensão permanente ao longo de boa parte da história da China. Há uma grande questão, por exemplo, sobre o sistema de exames imperiais para selecionar os funcionários públicos, que durou 1.300 anos — talvez o mais famoso e influente sistema de seleção de servidores da história mundial. Esse sistema seria legalista ou confucionista? Do lado legalista, havia o apoio a normas objetivas e claras, com igualdade de oportunidades para todos — e o sistema de exames reflete isso. Por outro lado, o conteúdo dos exames, especialmente durante as dinastias Ming e Qing, baseava-se exclusivamente em textos confucionistas, o que o tornaria confucionista. Essa tensão está presente até hoje. A atual campanha anticorrupção na China — que, para ser franco, já dura bem mais do que a maioria esperava (mais de 10 anos) — parece ter inspiração legalista, porque se baseia sobretudo no medo da punição para controlar o comportamento, e não na virtude. Os confucionistas diriam: “Devemos nos basear em exemplos morais, persuasão, rituais que unifiquem a sociedade, deixando a punição como último recurso”. Mas essa campanha parece ser impulsionada prioritariamente pelo medo da punição, o que tem efeitos colaterais negativos, como os confucionistas já previam: funcionários públicos que mantêm a cabeça baixa, evitam tomar decisões ousadas — o que os legalistas talvez considerassem positivo. Mas parte do sucesso da China nas últimas décadas veio do fato de que seus funcionários públicos experimentavam, arriscavam, tropeçavam e, por vezes, encontravam boas soluções que não surgiriam de outro modo. Não acho que se deva culpar tudo no legalismo, porque há algo importante: os legalistas defendem leis claras, abertas e compreensíveis. Se as leis forem obscuras, complexas e difíceis de entender, então elas não são eficazes. Para que funcionem, as leis precisam ser simples, fáceis de entender e aplicáveis a todos, independentemente de status social — o que, de certo modo, se aproxima da noção moderna de Estado de Direito. Mas o modo como a atual campanha anticorrupção está sendo conduzida não é exatamente legalista. Talvez seja mais justo chamá-la de “quase legalista”.
Vemos elementos de diferentes escolas ou tendências filosóficas sendo aplicados, de uma forma ou de outra, pelo governo chinês. Além disso, a China passa agora por um processo de avanço tecnológico acelerado, dando passos gigantescos para se tornar uma superpotência tecnológica. Está passando de uma economia voltada à exportação de baixo valor agregado para uma que incorpora inteligência artificial, computação quântica, robótica e outras tecnologias avançadas — para competir em nichos de acumulação capitalista. Como você vê esse momento tecnológico da China em relação aos valores confucionistas? O que pensa sobre isso?
— Acho que existe um mal-entendido comum: o de que os confucionistas são conservadores e opõem-se à mudança. Isso não é verdade. Na verdade, se olharmos para os confucionistas ao longo do século XX, não há uma tradição antimodernização ou um tipo de fundamentalismo contra o progresso. A questão central para o confucionismo é: quais valores norteiam a modernização e o avanço tecnológico? Para que fim eles servem? E, a partir de uma perspectiva confucionista, se essas inovações ajudam a promover relações sociais mais compassivas e harmoniosas, então são bem-vindas. Mas, se a tecnologia enfraquece ou envenena nossas relações sociais, aí sim surge um problema para os confucionistas. Eles não são contra a tecnologia. Eles julgam a tecnologia com base em seu impacto sobre os valores confucionistas — e esse é, de fato, o critério fundamental.
Se adotarmos uma perspectiva marxista de antagonismos de classe, o problema fundamental seria: quem é o dono dessa tecnologia? Se essa tecnologia pertencesse à sociedade como um todo — com as pessoas se associando livremente para produzir o que precisam — ela poderia realmente ajudar a humanidade a melhorar suas condições de vida. Mas na ordem atual, quando Elon Musk controla essa enorme tecnologia da Starlink e da Tesla, há grandes problemas. Nesse sentido, a perspectiva da luta de classes é essencial para entender como o marxismo e o pensamento socialista em geral abordariam essa questão. Porque se tirarmos essa tecnologia das mãos do capital privado, a controlarmos em benefício da humanidade, podemos construir um novo e excelente sistema. Gostaria de saber, da sua perspectiva, quais são as convergências e divergências entre o marxismo e o confucionismo nessa visão.
— Há fortes afinidades entre a tradição socialista ou marxista e a tradição confuciana — e isso ajuda a explicar por que o socialismo se tornou dominante na China do século XX. Uma das principais afinidades é o compromisso com o alívio da pobreza, que está presente muito cedo na história chinesa, tanto como ideal quanto como prática. No Ocidente, por exemplo, só nos últimos 400 anos o governo passou a assumir a obrigação de aliviar a pobreza. Para os confucionistas, isso sempre foi claro — Mêncio, por exemplo, afirmava claramente que, se o povo não tem suas necessidades materiais básicas atendidas, como pode ser moral? Isso soa a marxismo: pessoas gastando todo o tempo lutando para satisfazer suas necessidades físicas antes de sequer pensar em moralidade ou compaixão. Por isso, para Mêncio e Confúcio, a tarefa inicial é alívio material da pobreza — o que se fazia por meio de distribuição justa da terra, como o sistema well-field, onde cada família tinha seu lote e existia terra comunal cultivada para atender à população não agrícola. Essa preocupação com a distribuição da terra e propriedade socialmente benéfica remonta ao confucionismo, constituindo um ponto de convergência com a tradição socialista, que também enfatiza fortemente o combate à pobreza. Mas há diferenças. Na visão marxista da forma comunista superior, os meios de produção seriam de propriedade coletiva, usados para realizar trabalhos socialmente necessários — muitas vezes repetitivos e indesejáveis — permitindo às pessoas exercerem sua criatividade nas áreas que desejarem (arte, ciência, culinária, arquitetura etc.). Já para os confucionistas, a realização da essência humana ocorre mais por meio de relações sociais compassivas e solidárias. São visões distintas sobre o ideal humano, mas concordam que a meta é libertar as pessoas da necessidade material. Nesse ponto, concordam; divergem nos métodos. Os marxistas frequentemente defendem a luta social — às vezes violenta e revolucionária. Os confucionistas são muito mais cautelosos: preferem abordagens pacíficas, rituais e educacionais — métodos que podem parecer ingênuos ou menos eficazes, mas são inerentes à tradição confuciana de transformação.
É fascinante ver como conseguimos encontrar pontos de convergência filosófica entre duas tradições tão distintas, ambas aspirando à abolição das diferenças de classe e à criação de uma sociedade não opressiva.
— Antes de continuar, o que temos que dizer aqui é que os marxistas são ingênuos. Os confucionistas afirmam que, mesmo em uma sociedade ideal, é necessário um Estado e é preciso ter funcionários públicos com capacidade e virtude acima da média. Acredito que, hoje em dia, até mesmo os marxistas contemporâneos reconheceriam que não podemos abolir o Estado. Há coisas que Marx não poderia prever: as mudanças climáticas, a necessidade de regular as armas nucleares e a necessidade de enfrentar pandemias. Sempre haverá uma necessidade de Estado, ele não vai desaparecer. Isso é algo que os confucionistas reconhecem, enquanto Marx foi excessivamente otimista ao pensar sobre o Estado.
Acredito que este é um ponto de debate porque, pelo que entendo, o “otimismo” estaria em considerar que o Estado tem uma função precisa na sociedade — é um órgão de submissão de uma parte específica da sociedade e de benefício para outra. Se compreendermos o Estado dessa forma, não vejo exatamente por que seria ruim não tê-lo, para que os seres humanos pudessem organizar sua sociedade de outra maneira, de forma harmoniosa, sem um organismo de repressão. Mas eu entendo o marxismo justamente dessa maneira: a ideia da abolição do Estado não significa o fim da história ou das organizações sociais — não se trata disso. Trata-se de pensar em formas de associação e produção criativa entre os seres humanos. E claro que acredito que essa é uma ideia muito interessante para ser debatida nos dias de hoje, sobretudo quando vemos o que os Estados estão fazendo ao redor do mundo — nos Estados Unidos, no Brasil, e na própria China. Penso que há convergências e divergências entre essas duas visões.
— Se falamos do Estado, estamos nos referindo a um órgão de coerção, que existe para assegurar os interesses da classe dominante — e, obviamente, os confucionistas também seriam contrários a isso. No entanto, os confucionistas são, nesse sentido, um pouco otimistas ao acreditar que o Estado pode ser utilizado para fins socialmente desejáveis, e é por isso que consideram tão importante a seleção e promoção de funcionários públicos com capacidade e virtude superiores à média. Em questões como a mudança climática, nós precisamos disso. A China, para o bem ou para o mal, ainda tem um longo caminho pela frente, mas está fazendo um planejamento muito mais avançado — e isso se deve ao fato de possuírem um Estado eficaz, que consegue pensar em questões de longo prazo, como o clima e a energia verde. Existe, sim, um elemento de coerção, mas essa coerção não está ali apenas para servir à classe dominante, pelo que pude observar.
Apenas para acrescentar, Marx realmente tinha essas preocupações ambientais em seus escritos. Temos alguns autores marxistas como Bellamy Foster e Kohei Saito que apresentam pontos de vista muito interessantes nesse debate — um problema atual ao qual está sendo dada a devida importância. Podemos vislumbrar a perspectiva de uma nova sociedade e a harmonia não apenas entre os seres humanos, mas também com a natureza. Gostaria de fazer uma pergunta relacionada a essa questão ambiental, porque se trata de como o confucionismo entenderia as relações internacionais. Claro, precisamos interpretá-lo, pois essa questão não se colocava da mesma forma na época dos confucionistas. Mas agora, com Washington e Pequim e suas disputas, como o senhor as situaria a partir de uma perspectiva confucionista?
— Os confucionistas não são cristãos no sentido de que, se alguém te agride, você simplesmente oferece a outra face. Eles dizem que, se alguém usa métodos maus ou vis atitudes, não se deve responder com virtude, mas com retidão. Porque, se alguém te trata com virtude, aí sim você responde com virtude. Mas… você também deveria responder com virtude a alguém que te agride? Claro que não — você deve responder de forma justa. Esse parece ser o caso agora, com esse bullying descarado por parte dos Estados Unidos. Os confucionistas não diriam que devemos simplesmente ceder e fazer o que eles querem. Devemos manter nossa posição. Essa também seria uma resposta confucionista. Os confucionistas estão comprometidos com a paz internacional como ideal, e é necessário haver formas justas de lidar com os conflitos. Mas os confucionistas não são pacifistas nem mesmo no contexto de guerra. Como já mencionamos, Mêncio criticava os governantes que travavam guerras injustas, mas não dizia que a guerra em si era inaceitável. Ele dizia especificamente que, se um Estado pequeno é atacado por um maior, é preciso lutar com o povo para se defender — e chegou até a justificar o que chamou de “expedições punitivas”. Se houver um governante verdadeiramente malvado em sua terra e for possível libertar o povo, então que seja feito. Mas: o povo precisa acolher isso, esse acolhimento tem que ser duradouro, e é necessário haver apoio internacional. Existem todas essas condições. Ou seja, os confucionistas não são pacifistas ingênuos nas relações internacionais — de forma alguma.
Quais eram as relações entre a China e os demais Estados vizinhos nessa época, incluindo o período anterior aos Estados Combatentes?
— Isso mudou ao longo do tempo. Nesse período, havia guerra — mas não era ainda o tempo de Confúcio, e tampouco era uma guerra total. Ainda existiam formas rituais de lidar com os conflitos, tentativas de evitar mortes em massa de civis… mas tudo isso foi se quebrando até virar uma guerra total, especialmente no fim. Depois que a China foi unificada, há um grande debate sobre se ela foi uma potência imperial e sobre como se comportou — invadiu o Vietnã em alguns momentos, travou guerras contra a Coreia do Sul. Por outro lado, não realizou guerras genocidas da forma como fizeram as potências imperiais ocidentais. Não praticou escravidão sistemática. Não ocupou terras por longos períodos contra a vontade dos povos locais. David Wong, professor da Universidade do Sul da Califórnia, tem um excelente livro mostrando que, ao longo das dinastias Ming e Qing, manteve-se um sistema tributário que garantiu uma era relativamente pacífica — especialmente se comparada ao que ocorria no Ocidente. E isso se deveu, em parte, ao fato de que potências menores, como a Coreia, ofereciam um tributo simbólico à China em troca de benefícios econômicos. Para a China, manter esses laços era caro, mas tratava-se de um acordo mutuamente benéfico que preservou a paz por cerca de 400 a 500 anos. É uma questão complexa, mas, em linhas gerais, podemos dizer que, mesmo que concordemos que a China foi uma potência imperial, ela não foi tão destrutiva quanto o imperialismo europeu ou o praticado pelas potências europeias no resto do mundo.
Gostaria de perguntar sobre os protestos de trabalhadores ao redor do mundo — especialmente nos Estados Unidos e Europa — contra os ataques econômicos neoliberais dos governos cada vez mais autoritários. Também vimos esse tipo de protesto na China, como a greve dos trabalhadores da Foxconn em Zhengzhou, em 2022, contra a empresa, durante um período muito difícil da pandemia. Esse é um cenário interessante para refletir no contexto das incertezas causadas pela desaceleração econômica na China. Como o senhor acredita que essas lutas podem influenciar o horizonte político da China e do mundo?
— Na China, existem protestos sociais — mas geralmente são locais, motivados por questões locais. Quando estive na Universidade de Shandong, vimos protestos de agricultores reclamando sobre os preços ou ofertas por terras que seriam expropriadas. E esses conflitos costumam ser resolvidos localmente. Acho que o risco de surgirem movimentos de protesto em escala nacional é muito baixo, a menos que ocorra algo muito excepcional. Estive na China durante toda a pandemia de COVID, por dois anos. No início, o governo encobriu a situação, mas no geral demonstrou ser competente. Após o lockdown de Wuhan, o país ficou quase dois anos isolado do mundo, mas dentro da China continental estávamos totalmente livres — podíamos viajar por todo o país. Viajei mais nesses dois anos do que nos quinze anteriores. Mas, a partir do bloqueio em Xangai, quando os métodos antigos de “COVID zero” foram intensificados, forçando as pessoas a permanecerem em casa — muitas sem acesso a alimentos —, a situação mudou radicalmente. Literalmente da noite para o dia, a China passou de “melhor lugar do mundo” para “o pior”. Então, surgiram protestos em todo o país, com implicações políticas muito significativas. No fim, o governo cedeu e eliminou quase todos os controles. Acredito que esse foi o maior desafio à legitimidade do sistema político desde 1989. A menos que ocorram situações como essa, não espero que os protestos sociais ameacem seriamente o sistema como um todo. Existem muitos protestos locais dos quais nem sequer se noticia.
O que realmente me interessava era isso: li alguns relatos e entrevistas com jovens chineses insatisfeitos com o ritmo de trabalho intenso que existe hoje na China — como o sistema “9-9-6” que Jack Ma, da Alibaba, tentou promover como “o futuro da humanidade”. Os jovens chineses não parecem muito entusiasmados com essa perspectiva de trabalhar tanto sem poder desfrutar a vida. O que o senhor diria sobre essa nova geração, que não olha mais para essa tradição do trabalho e busca novas perspectivas?
— A China é um país muito diverso. Esse fenômeno está bastante difundido, mas também há muitos chineses extremamente ambiciosos e trabalhadores. Estive em universidades de Qingdao, Pequim e Shandong. Lá, os estudantes trabalhavam com afinco, e não percebi esse fenômeno de forma muito evidente. No entanto, há, sim, uma espécie de rebelião contra a ideia de que todos devem passar a vida inteira trabalhando intensamente. Existe uma tendência oposta: pessoas buscando formas não-materiais de satisfação. Existe uma cultura onde se valoriza viver com gatos fofos (de inspiração taoísta), um estilo de vida mais leve, com mais harmonia com a natureza. Acho que, neste momento, o governo ainda pressiona demais as pessoas — inclusive os jovens — para que levem vidas cheias de energia e ambição. Mas isso não serve para todo mundo, e é preciso reconhecer que há pessoas que não querem fazer parte desse modelo.
Muito bem, Daniel. Agradeço muito essa conversa. Falamos bastante sobre filosofia chinesa e política ao longo dos últimos dois milênios. Fizemos aqui uma excelente síntese. Muito obrigado pelo seu tempo!
— Espero que China e Brasil possam ter laços positivos no futuro.