Revista Casa Marx

Sobreviverão os regimes árabes a Gaza?

Philippe Alcoy

Quanto mais se prolonga o genocídio em Gaza, mais se espalham a indignação e a revolta entre a população do Oriente Médio, e mais os regimes da região percebem o perigo. Serão eles capazes de canalizar a fúria popular diante do martírio do povo palestino, ou terão de enfrentar explosões sociais, ou até mesmo uma nova onda de revoluções?

Esta nota foi publicada originalmente em Révolution Permanente: https://www.revolutionpermanente.fr/Les-regimes-arabes-vont-ils-survivre-a-Gaza

Lenin estava convencido de que a Primeira Guerra Mundial marcaria o início de um período de revoluções na Europa. Mas, para ele, isso não significava que as revoluções aconteceriam necessariamente durante a própria guerra: poderiam ocorrer depois dela, ou até mesmo durante guerras futuras. O que parecia certo, no entanto, era que a febre nacionalista, as monstruosidades e o sofrimento da guerra criariam um profundo sentimento de revolta entre as massas contra a classe capitalista e seus governantes, particularmente entre a classe trabalhadora.

Assim, em novembro de 1914, ele escreveu que “se não for hoje, será amanhã; se não for durante esta guerra, será no período que a seguir; se não for durante esta guerra, será durante a próxima — a bandeira da guerra civil do proletariado se tornará o ponto de encontro não apenas de centenas de milhares de operários conscientes, mas também de milhões de semiproletários e pequenos-burgueses, hoje enganados pelo chauvinismo, e a quem os horrores da guerra, em vez de apenas assustar e aturdir, irão esclarecer, instruir, despertar, organizar, impregnar e preparar para a guerra contra a burguesia em ‘seu’ próprio país e em países ‘estrangeiros’.”

A história deu razão ao líder bolchevique, ainda que apenas a Rússia tenha levado a revolução socialista até o fim. Outros processos revolucionários na Europa (especialmente na Hungria e na Alemanha) fracassaram no período posterior ao fim da guerra. De todo modo, é inegável que a Primeira Guerra Mundial abriu um período de processos revolucionários e contrarrevolucionários na Europa e em todo o mundo. Esse período continuaria ao longo das décadas de 1920, 1930 e além, durante e depois da Segunda Guerra Mundial: as revoluções de 1925–1927 e de 1949 na China, a guerra civil na Espanha, junho-julho de 1936 na França, as guerras de libertação nacional durante a Segunda Guerra Mundial na Grécia, Iugoslávia e Albânia, a revolução no Vietnã e as revoluções anticoloniais na África e na Ásia.

Com essas reflexões em mente, é interessante considerar os efeitos que a guerra de extermínio que Israel vem travando em Gaza desde outubro de 2023 pode ter sobre a população do Oriente Médio, especialmente sobre os trabalhadores e os jovens. Apesar da magnitude histórica da barbárie que o exército israelense está infligindo ao povo palestino em Gaza, ela ainda é incomparável ao nível de destruição da vida humana, material e até mesmo cultural causado pelas duas guerras mundiais. A natureza global dessas guerras, nas quais se enfrentaram blocos de potências imperialistas, é também uma diferença notável. No entanto, a atual guerra genocida em Gaza é qualitativamente diferente das agressões coloniais anteriores de Israel contra os palestinos.

De fato, Gaza tornou-se inabitável por causa do exército israelense, com cerca de 80% das infraestruturas civis destruídas: moradias, escolas, hospitais, comércios e indústrias, e serviços públicos como água e eletricidade. Apesar da retórica oficial sobre seus objetivos militares, Israel colocou em prática um plano sistemático para atacar a população civil de Gaza, com o objetivo semi-confessado de realizar uma limpeza étnica da região. É impossível calcular o número exato de mortos: às vezes fala-se em quase 60.000, e alguns estudos elevam ainda mais esse número. O número de feridos e mutilados para o resto da vida é ainda mais assustador: até agora, mais de 130.000 pessoas foram feridas desde outubro de 2023 em Gaza, e essas cifras são, sem dúvida, uma estimativa baixa. Praticamente todos os mais de dois milhões de habitantes de Gaza foram deslocados diversas vezes. A tudo isso soma-se a total impunidade das autoridades israelenses e de seu exército. Pior ainda, as potências ocidentais — começando pelos Estados Unidos, mas também os países europeus — são cúmplices de crimes filmados, fotografados e confessados pelo próprio governo israelense. Esse último aspecto confere a essa guerra brutal um caráter quase único em termos de impunidade.

Todos esses elementos são o combustível de uma profunda raiva que cresce entre as classes populares, especialmente entre os jovens, na região e até mesmo fora dela. O ódio popular frente ao cinismo e à hipocrisia das classes dominantes locais e imperialistas coloca a questão da possibilidade de um levante revolucionário das massas no Oriente Médio, semelhante ao que Lenin previu no início da Primeira Guerra Mundial.

Os regimes árabes: entre a cumplicidade e a pressão popular

A esse quadro de situação deve-se acrescentar outro elemento decisivo: a cumplicidade dos regimes árabes e muçulmanos com Israel e com o imperialismo. Para os dirigentes burgueses árabes e muçulmanos, a causa palestina sempre foi uma moeda de troca com Israel e com as potências imperialistas. Eles traem a causa palestina há muito tempo (expulsão da OLP do Líbano, normalização das relações com Israel a partir dos anos 1970, etc.). Mas a natureza genocida da guerra atual os coloca na defensiva e sob enorme pressão popular, pois, enquanto os autocratas deram as costas aos palestinos durante décadas, os povos da região não o fizeram.

Nem todos os regimes da região — nem os regimes árabes em geral — têm a mesma postura em relação à Palestina ou ao imperialismo. Alguns estão mais estreitamente ligados (historicamente, militarmente, comercialmente) a Israel e ao imperialismo, como Jordânia e Egito (podemos acrescentar o Azerbaijão de Aliyev e a nova Síria de al-Charaa como exemplos de regimes favoráveis a Israel em países muçulmanos).

Outros assinaram os Acordos de Abraão (2020), promovidos por Donald Trump, normalizando suas relações com Israel: Emirados Árabes Unidos (EAU), Bahrein, Marrocos e Sudão. A Arábia Saudita estava em vias de normalizar suas relações justamente antes de 7 de outubro. Esse processo está agora suspenso. Alguns regimes, como Turquia e Catar, adotam uma postura mais ambígua em relação ao assentamento israelense. Outros têm uma postura mais hostil a Israel, expressando oficialmente sua solidariedade com a causa palestina, mas sem constituírem uma alternativa política progressista. Esse apoio também não exclui uma postura instrumental em relação à causa palestina, em prol de seus próprios interesses, como no caso do Irã e do Iêmen, mas também dos regimes argelino e tunisiano.

Nesse contexto, os regimes que se encontram em posição mais desconfortável são os que mantêm relações estreitas de cooperação com Israel: precisam fazer um verdadeiro ato de equilíbrio. A esse respeito, em um artigo publicado no ano passado, o analista Giorgio Cafiero afirmava que “nenhum Estado árabe quer confrontar Israel. Para muitos deles, isso tem muito a ver com suas relações com os Estados Unidos, dos quais dependem para sua segurança e, em alguns casos, como fonte vital de ajuda financeira. A cada dia que passa da guerra em Gaza, aumentam as pressões internas sobre esses regimes, sendo essa a principal razão pela qual esses governos pedem unanimemente um cessar-fogo em Gaza. Não se trata tanto do bem-estar dos próprios palestinos, mas da manutenção da estabilidade, da legitimidade e até da sobrevivência dos regimes árabes.”

Em outras palavras, a estratégia de dependência do imperialismo e de amizade com a potência colonial israelense, adotada pelas burguesias desses Estados, os coloca hoje em profunda contradição com suas populações, a ponto de alguns temerem pela sobrevivência de seu poder.

No último mês de maio, em uma cúpula de líderes árabes, o ditador egípcio Abdel Fattah Al-Sissi denunciou que “a máquina de guerra israelense reduziu tudo a escombros, sem poupar nem crianças nem idosos em seu avanço impiedoso. Usou a fome e a privação de assistência médica essencial como armas de guerra, empregando a destruição como estratégia deliberada. Isso provocou o deslocamento interno de quase dois milhões de palestinos na Faixa de Gaza, um ato de flagrante desprezo por todas as leis e normas internacionais”.

O tom desse discurso pode surpreender, dado que o Egito foi o primeiro Estado árabe a reconhecer o Estado de Israel em 1979 e participou ativamente da colonização e opressão do povo palestino, inclusive do bloqueio a Gaza desde 2007. De fato, o país continua mantendo laços muito estreitos em matéria de segurança, diplomacia e economia com Tel Aviv.

O jornalista libanês Abdullah Bakr declarou recentemente: “O discurso do presidente ocorreu enquanto o Egito continua importando quantidades recordes de gás israelense, alcançando 981 milhões de pés cúbicos diários em 2024, um aumento de 18,2% em relação ao ano anterior. Somente em dezembro registrou-se um aumento sem precedentes, alcançando 1.065 milhões de pés cúbicos diários. Além disso, o Ministério do Petróleo egípcio revelou planos para aumentar as importações de gás de Israel em mais 17% a partir de janeiro de 2025, chegando a 1.150 milhões de pés cúbicos diários.”

Deve-se compreender que o discurso de Al-Sissi não foi dirigido ao governo israelense, mas ao seu próprio povo, que é esmagadora e profundamente solidário com os palestinos. No entanto, isso não significa que os dirigentes egípcios não estejam sinceramente preocupados com os perigos que a guerra de Israel em Gaza representa para seu regime, o que tem gerado tensões com Netanyahu e seu governo, em particular pela militarização do Sinai.

O regime jordaniano encontra-se em uma situação especialmente complicada e perigosa. Sua estrutura econômica é ainda mais frágil do que a do Egito e, do ponto de vista político e social, o país é extremamente sensível aos acontecimentos nos territórios palestinos. Os dirigentes jordanianos estão plenamente conscientes de que seu país é visto como um “lar” potencial para os palestinos expulsos de Gaza e até da Cisjordânia. Esses temores foram intensificados pelo plano criminoso (e delirante) de Trump de transformar Gaza em uma “Riviera” e pelo papel que atribuiu à Jordânia nesse plano.

Como explica Curtis Ryan, professor de Ciência Política e autor de Jordan and the Arab Uprisings: Regime Survival and Politics Beyond the State (2018), “a ameaça de uma transferência em massa de refugiados palestinos para a Jordânia guarda uma semelhança impressionante com o que temiam há décadas: a ‘opção jordaniana’ defendida pela extrema direita israelense, segundo a qual Israel tenta ‘resolver’ a questão palestina às custas da Jordânia, forçando-a a se tornar o Estado palestino de fato. Na Jordânia, esse projeto é conhecido como o cenário da ‘pátria alternativa’. Os dirigentes jordanianos o consideram, há muito tempo, uma linha vermelha”.

No entanto, a margem de manobra que o regime fantoche jordaniano teria diante da pressão do imperialismo estadunidense e de Israel continua sendo uma grande incógnita. Caso se concretizasse um projeto de transferência populacional tão massivo, a Jordânia, cuja população é composta por 50% de palestinos, poderia ver seu equilíbrio demográfico completamente alterado — o que preocupa as classes dirigentes do país. Contudo, o regime foi duramente contestado pela população durante a guerra genocida em Gaza por sua colaboração com Israel, com manifestantes exigindo a ruptura do acordo de 1994 com Tel Aviv.

A expulsão, mesmo que parcial, dos palestinos de Gaza para a Jordânia seria vista como uma traição imperdoável à causa palestina. Sem dúvida, reacenderia a mobilização popular e poderia até pôr o regime em risco. Uma medida desse tipo constituiria uma grande contradição para o imperialismo, pois a Jordânia é um de seus aliados centrais no Oriente Médio.

Embora alguns dirigentes imperialistas — em particular da administração Trump — pareçam subestimar as possíveis respostas vindas das ruas, da mobilização dos jovens e dos trabalhadores, o instinto de sobrevivência de certos regimes não diz o mesmo e nos convida a prestar atenção a determinados discursos críticos que exigem o fim da guerra em Gaza.

Em um artigo publicado em abril de 2024, o professor de ciência política Marc Lynch descreveu o instinto de sobrevivência dos ditadores do Oriente Médio nos seguintes termos:
“O príncipe Mohammed [bin Salman, da Arábia Saudita] e outros líderes árabes se preocupam com o que poderia derrubá-los. Em sua maioria, preocupam-se com uma coisa acima de tudo: permanecer no poder. Isso significa não apenas evitar manifestações em massa que ameacem abertamente o regime, mas também estar atentos a possíveis fontes de descontentamento e reagir adequadamente para eliminá-las. Como quase todos os países árabes fora do Golfo enfrentam problemas econômicos extremos e, portanto, exercem repressão máxima, os regimes precisam ser ainda mais cautelosos ao reagir a questões como o conflito palestino-israelense.”

Ele continua: “Quase todos os regimes veem hoje suas populações extraordinariamente mobilizadas pelo que consideram a campanha genocida de Israel contra Gaza e um novo programa de deslocamento e ocupação. O nível resultante de mobilização e indignação pública supera a fúria gerada em 2003 pela invasão americana ao Iraque, e está influenciando claramente o comportamento dos regimes da região.”

As guerras fazem parte do DNA do capitalismo — e mais ainda do imperialismo. Mas as classes dominantes, ou pelo menos seus setores mais lúcidos, não se entusiasmam com a ideia de embarcar em tais aventuras bélicas. Elas sempre implicam riscos em termos de luta de classes, dada a dor e as perdas humanas e materiais que causam. Em geral, os capitalistas preferem uma forma de estabilidade muito mais favorável aos negócios e à manutenção de sua hegemonia política, razão pela qual as guerras tendem a ser o último recurso.

No caso do genocídio em Gaza, as atrocidades que chegam diariamente às telas de milhões de pessoas, somadas a uma impunidade sem precedentes, estão se tornando insuportáveis para as massas da região. É inegável que estão acumulando um ódio crescente contra Israel e o Ocidente, mas também contra os regimes árabes e muçulmanos, vistos como cúmplices ou, na melhor das hipóteses, como omissos diante do genocídio. O sofrimento do povo de Gaza pode se transformar, e certamente se transformará mais cedo ou mais tarde, em combustível para revoltas. Os regimes árabes estão sob pressão, conscientes de que a Palestina está se tornando uma “causa comum” que pode acabar sendo a faísca que acenda o fogo do protesto contra causas econômicas, sociais e políticas em toda a região — e até além.

Palestina, uma causa comum e uma faísca?

Alguns governos árabes estão “se aproveitando” da mobilização contra o genocídio em Gaza para desviar a atenção da população das dificuldades econômicas ou mesmo da repressão interna. Mas a maioria observa tudo com desconfiança, consciente de que o que está acontecendo em Gaza pode ter consequências muito graves para seu próprio poder.

Os autocratas são alérgicos a qualquer mobilização popular, a qualquer ação das massas que possa escapar ao seu controle, mesmo nos países onde as autoridades denunciam o genocídio e se posicionam contra Israel. De fato, o genocídio em Gaza, as mobilizações que ele provoca e a ira popular diante desse crime e de seus cúmplices podem se tornar um catalisador de movimentos de protesto que ultrapassem as fronteiras nacionais, como ocorreu durante a Primavera Árabe. Em outras palavras, Gaza tem potencial para se tornar uma “causa comum” capaz de unificar e colocar em primeiro plano a situação política e econômica da região.

A jornalista Sania Mahyou escreveu no The New Arab que “mais de 13 anos após a autoimolação de Mohamed Bouazizi, vendedor de peixes de 26 anos, cuja morte desencadeou clamores por justiça social, oportunidades econômicas e a derrubada de governantes autoritários, a região volta a se mobilizar para enfrentar a opressão em torno de uma causa comum: a Palestina. Ao longo das décadas, as injustiças infligidas aos palestinos por Israel tornaram-se o que os árabes consideram injustiças pessoais. Ao ver os palestinos sofrerem massacres indiscriminados, apartheid, deslocamentos, expropriação de terras e discriminação pelas mãos de Israel, os árabes passaram a se identificar com essas humilhações profundas, sentindo-se como se estivessem diretamente afetados.”

Essa situação é ainda mais perigosa para as classes dominantes da região porque a situação socioeconômica de alguns países vem se deteriorando há anos. No caso da Jordânia, o crescimento tem sido relativamente fraco na última década, e o país enfrenta um problema estrutural potencialmente explosivo: o desemprego em massa. Em 2023, a taxa de desemprego era de 23,3%, com um desemprego juvenil de 46,1%. Soma-se a isso o fato de que o país foi duramente atingido pela política de cortes na ajuda internacional promovida pelo governo Trump.

Nesse contexto, o governo precisa agir com extrema cautela em relação ao genocídio em Gaza e às guerras regionais. Recentemente, foi lembrado que “a monarquia proibiu a bandeira palestina e reprimiu ferozmente as manifestações em solidariedade à Palestina, especialmente em frente à embaixada israelense em Amã (…) Abdullah II chegou a trabalhar ativamente na construção de uma ponte terrestre através da Jordânia para fornecer armas e mercadorias a Israel, e colocou o exército jordaniano a serviço de Israel para interceptar mísseis e drones enviados pelo Irã.”

Não devemos esquecer que é na Jordânia que ocorreu o maior movimento de protesto contra o regime na região desde o início da guerra em Gaza. É inegável que o país é um dos que correm maior risco de desestabilização social no próximo período, e a política da monarquia em relação a Gaza pode ser a faísca que incendiará todo o país.

O Egito é outro país da região submetido a uma grande pressão social. Foi um dos epicentros da Primavera Árabe, mas também onde a contrarrevolução foi mais brutal. Após a queda de Hosni Mubarak (2011), o presidente eleito, Mohamed Morsi, pertencente à Irmandade Muçulmana, iniciou ações especialmente impopulares e repressivas. O exército egípcio e Abdel Al-Sissi, aproveitando-se da impopularidade de Morsi e da mobilização massiva contra seu governo, deram um golpe de Estado apoiado de forma mais ou menos direta pelos Estados Unidos e por Israel. Desde então, Al-Sissi instaurou aquele que provavelmente é o regime mais repressivo da história do Egito, acompanhado de uma política econômica extremamente austera.

Em um artigo recente, a pesquisadora sobre o Oriente Médio Molly Hickey descreve a política econômica de Al-Sissi da seguinte forma: “as sucessivas desvalorizações da libra desde 2016 reduziram o poder de compra dos egípcios, deixando muitos mais pobres e mais famintos. Em 2021, quase 70% dos egípcios afirmaram sofrer com insegurança alimentar, uma crise agravada pelos drásticos cortes no sistema de subsídios alimentares. Em 2019, o governo retirou quase 6 milhões de beneficiários do sistema de cadernetas de racionamento de alimentos e 11 milhões do sistema de subsídios ao pão. Em 2024, foi ainda mais longe ao cortar os subsídios ao pão — uma política historicamente intocável — e aumentar os preços de um alimento básico essencial na dieta de 70 milhões de egípcios”.

Trata-se de uma política antioperária e antipopular, combinada com uma política que favorece os setores mais concentrados do capital, em particular o exército. De fato, no Egito o exército não é apenas uma instituição militar, mas controla uma parte muito importante da economia e, para muitos capitalistas, é um meio de enriquecer. As políticas econômicas de Al-Sissi a favor do exército também têm um sentido político: conquistar o apoio dos militares para se manter no poder. Mas o descompasso com a situação de milhões de trabalhadores e pobres urbanos pode tornar-se explosivo.

É nesse sentido que o pesquisador de Harvard Shady ElGhazaly Harb prevê uma nova revolução no país, embora algo diferente da de 2011: “O Egito está prestes a viver um novo acontecimento mundial, mas desta vez não será um episódio mais ou menos ordenado, dirigido por jovens revolucionários e líderes experientes da sociedade civil. Após uma década de repressão e prisões em massa, já não restam grupos de ativistas organizados nem líderes da sociedade civil dignos de menção. Estão presos, exilados ou silenciados à força. Em vez disso, serão os setores mais pobres da população, que estão à beira da fome, que se revoltarão nas ruas desesperadamente, sem qualquer organismo organizador que os coaja ou oriente. O regime aposta no fato de que os egípcios desconfiam da revolução e preferem a sombria estabilidade de Sissi à incerteza que uma revolução traria consigo. Isso é um erro. Os egípcios estão esmagados pela situação econômica, oprimidos pelo pesado aparato de segurança e frustrados pela falta de perspectivas de mudança”.

Não apenas a feroz repressão, mas também o espectro da situação na Síria — mergulhada numa sangrenta guerra civil — ou o colapso da Líbia, permitiram às classes dominantes de toda a região conter qualquer desejo de mobilização dos trabalhadores e das massas. Paradoxalmente, a destruição de Gaza e o genocídio podem estar eliminando esse medo.

Nesse sentido, Michael Robbins e Amaney A. Jamal, analistas do Arab Barometer, explicam em um artigo publicado em junho passado que “nas pesquisas do Arab Barometer realizadas entre 2023 e 2024, pelo menos 10% dos adultos entrevistados em cada país afirmaram ter participado de um protesto no último ano — uma proporção comparável à dos adultos norte-americanos que participaram dos protestos contra a brutalidade policial na primavera e no verão de 2020, segundo pesquisas realizadas pela Kaiser Family Foundation e Civis Analytics. Em abril e maio deste ano, ocorreram protestos locais relacionados com Gaza na Argélia, Bahrein, Egito, Iraque, Jordânia, Líbano, Líbia, Marrocos, Mauritânia, Omã, Síria, Tunísia e Iêmen (…) Os protestos provavelmente teriam sido maiores e teriam envolvido segmentos mais amplos das sociedades árabes — e teriam sido mais visíveis para os observadores externos — se não fossem pelas práticas repressivas dos governos da região.”

Será esse impulso suficiente para reacender a chama revolucionária dos povos do Oriente Médio e do Norte da África? É difícil dizer, mas muito dependerá de como terminará o genocídio em Gaza. Se a mobilização de massas conseguir pôr fim a ele e fazer os responsáveis e cúmplices pagarem, não há dúvida de que o terreno será mais favorável à mobilização operária e popular na região, ao ampliar os motivos de indignação para as realidades socioeconômicas locais. Mas mesmo uma derrota dos palestinos poderá se transformar em fator de mobilização, talvez num contexto menos favorável e mais contraditório.

No entanto, uma explosão social, ou mesmo um processo revolucionário, não significa automaticamente um desenvolvimento progressista. A repressão dos regimes ditatoriais também afeta os movimentos reacionários de oposição, que podem tentar se aproveitar da mobilização popular. O Egito viveu essa configuração com a Irmandade Muçulmana, que capitalizou as mobilizações de 2011 para chegar ao poder e, no fim das contas, aplicar um programa burguês e repressivo.

Em outros países, correntes reacionárias ainda mais radicais se aproveitaram da situação (em particular o Daesh e a Al-Qaeda, em parte na Síria e indiretamente no Sahel). As forças burguesas e imperialistas da região estão fazendo todo o possível para impedir o desenvolvimento de perspectivas progressistas e de classe, capazes de oferecer um futuro além do capitalismo e de todos os sistemas opressivos. Por isso, se necessário, não hesitarão em apoiar forças reacionárias, como vimos com al-Charaa, o antigo líder da Al-Qaeda na Síria, que se tornou um presidente respeitável para todas as potências imperialistas.

O imperialismo e Israel preparam novas catástrofes — respondamos com uma perspectiva operária e socialista

O imperialismo não é apenas cúmplice direto do genocídio em Gaza, como toda a sua política está preparando catástrofes para os povos dos países submetidos a essas poucas potências. Toda a política dos imperialistas em relação a Israel e à Palestina está agravando a situação do Oriente Médio como um todo. Os Acordos de Abraão, por exemplo, representaram o reconhecimento, por parte dos Estados Unidos (seguido de outras potências europeias como a França), da soberania marroquina sobre o Saara Ocidental. A consequência direta foi o crescimento do nacionalismo reacionário marroquino, que reivindica o controle colonial sobre o Saara Ocidental. Como contraponto, houve um aumento do nacionalismo argelino, cujo governo afirma defender os direitos do povo saaraui, ao mesmo tempo que persegue sua própria agenda por trás dessa retórica. Como resultado, estamos hoje testemunhando o aumento das tensões entre os dois países, e não se pode descartar um conflito num futuro não muito distante.

Trump tenta jogar hoje a mesma carta com o Egito: comprar apoio político preparando-se para conflitos futuros. O presidente norte-americano (com apoio de Israel) tenta convencer o governo egípcio a acolher os refugiados palestinos expulsos de Gaza, em troca do apoio dos EUA ao Egito contra a Etiópia, que construiu uma barragem no Nilo afetando os recursos hídricos egípcios. Robert Springborg, professor da Escola de Estudos Internacionais da Universidade Simon Fraser do Canadá e do Instituto de Assuntos Internacionais de Roma, afirma: “É possível imaginar um cenário em que o deslocamento/transferência de ao menos alguns palestinos de Gaza para o Egito possa fazer parte de um acordo mais amplo para encerrar a atual ofensiva israelense em Gaza. Nesse caso, Sissi obteria o apoio dos Estados Unidos contra a Etiópia e a manutenção da ajuda externa de Washington, o que poderia levar o exército egípcio a considerar mais favoravelmente um acordo desse tipo.”

Essa proposta não apenas pretende apoiar o plano de limpeza étnica de Israel em Gaza, como também poderia ajudar o regime egípcio a canalizar a ira popular, desviando-a para uma “causa nacionalista” contra a Etiópia, que estaria monopolizando a “água egípcia”. O Egito é fundamental para os interesses das potências imperialistas na região — e também para Israel. Como mencionado anteriormente, o regime de Al-Sissi é um ator-chave na opressão dos palestinos: recebe grande volume de ajuda financeira e militar dos imperialistas e, apesar de uma economia fragilizada, é um dos principais clientes da indústria militar europeia. O imperialismo ocidental e Israel não podem se dar ao luxo de abandoná-lo.

Springborg explica que “o FMI, a União Europeia e praticamente todos os seus Estados-membros desistiram de fomentar reformas no Egito, sejam políticas ou mesmo econômicas, como demonstra a massiva ajuda financeira oferecida na primavera de 2024. O motor desse apoio é o medo — o medo do colapso do regime ditatorial, que acarretaria uma série de desafios, como migração transmediterrânea, terrorismo, antagonismo com Israel e vínculos com forças desestabilizadoras em países vizinhos como Líbia e Sudão, entre outros.”

Uma simples mudança de governo no país poderia, por exemplo, ter consequências importantes para o domínio de Israel sobre os palestinos, ou até mesmo levar o Egito a adotar uma postura hostil em relação a Tel Aviv. Para ilustrar a importância do Egito para o Ocidente e seus aliados, citemos o jornalista Mohannad Sabry, que em um artigo publicado pelo Instituto Italiano de Estudos Políticos Internacionais no final de 2023, explicou a diferença de postura do governo de Mohamed Morsi diante de uma ofensiva militar israelense contra Gaza em 2012, em comparação com a de Al-Sissi: “Assim que Israel lançou a ofensiva militar na Faixa de Gaza, o então presidente egípcio Mohamed Morsi enviou pessoalmente o primeiro-ministro Hisham Qandil a Gaza e convocou o embaixador egípcio em Tel Aviv. Ao mesmo tempo, as autoridades egípcias autorizaram e facilitaram a entrada de uma delegação popular com centenas de egípcios na Faixa de Gaza, em sinal de solidariedade com a população local sob fogo israelense, mantendo completamente aberta a passagem de Rafah.”

Já mencionamos o caráter reacionário do governo de Morsi, mas não podemos compreender essa política sem levar em conta a onda de solidariedade que emergiu do levante revolucionário de 2011.

É fácil entender o temor das potências imperialistas diante de uma possível desestabilização revolucionária da ditadura de Al-Sissi — especialmente em um contexto em que a ira popular contra Israel, seus cúmplices ocidentais e os regimes árabes e muçulmanos (omissos, na melhor das hipóteses) cresce entre a classe trabalhadora e a juventude da região.

A memória da Primavera Árabe de 2011 continua muito viva, apesar do sucesso da contrarrevolução em muitos países. Após anos de paralisia e medo da repressão feroz, o genocídio em Gaza pode se tornar um fator de mobilização. Caso ocorra uma explosão social no Oriente Médio, é mais do que provável que ela tenha repercussões no restante do mundo — inclusive (e talvez principalmente) nos próprios países imperialistas, onde a cumplicidade com Israel é política de Estado. Em 2011, foi a Primavera Árabe que inspirou o movimento dos Indignados na Espanha, o movimento das Praças na Grécia, o Occupy Wall Street e muitas outras mobilizações na Europa e nos países imperialistas, diante das dificuldades sociais e econômicas.

Uma nova onda revolucionária nos países árabes e no Oriente Médio não pode parar pela metade — sob o risco de ser esmagada de forma ainda mais brutal do que durante a “Primavera Árabe” de 2011. Os milhões de trabalhadores e setores populares da região enfrentam inúmeros obstáculos. Nenhuma das opções políticas dominantes hoje representa uma alternativa de libertação. Ainda há muito a ser feito em termos de organização e de construção de perspectivas. O papel dos revolucionários na região — mas também nos Estados imperialistas — será decisivo para que os trabalhadores e as massas populares do Oriente Médio encontrem o caminho da sua emancipação.

Não podemos saber com exatidão quando essa nova onda revolucionária vai eclodir — embora o genocídio em Gaza coloque as condições objetivas para tal desdobramento. Mas, nas palavras de Lênin em outro texto de 1915:

“Não podemos saber se será por ocasião da primeira ou da segunda guerra imperialista das grandes potências, se será durante ou após esta guerra, que irromperá um poderoso movimento revolucionário. Mas, em qualquer caso, nosso dever imperativo é trabalhar metodicamente e de forma implacável nessa direção.”

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