Javo Ferreira, La Paz
A profunda crise que se desencadeou há algum tempo dentro do Movimento ao Socialismo – Instrumento Político pela Soberania dos Povos (MAS-IPSP) está dando lugar à elaboração e reflexão de diversos balanços que tentam explicar o ocorrido durante o governo de Evo Morales e depois com Luis Arce. A torpe tentativa de golpe de 26J e o crescente protagonismo militar na política boliviana incentivam reflexões e debates, que buscam explicar como terminou esse ciclo político. O golpe de Estado de 2019 destacou que o Estado Plurinacional, que prometia avançar na descolonização e democratização da sociedade, avançando para um Estado mais “integral”, se mostra tão gelatinoso, fraco e excludente quanto as formas estatais anteriores.
Mas esses debates também estão sendo incentivados pelas violentas disputas no seio do MAS, onde evistas e renovadores parecem dispostos a “fazer o sangue chegar ao rio” para se manterem à frente da administração do Estado, mesmo que isso seja apenas para aplicar os planos de ajuste que economistas neoliberais recomendam. A decepção, o ceticismo e a desmoralização em amplas faixas dos movimentos sociais e dos setores populares impõem a necessidade de um balanço que explique o ocorrido e, a partir disso, possa estabelecer um horizonte de ação contra o imperialismo, as classes dominantes e uma direita cada vez mais encorajada, para daí preparar a contraofensiva operária e popular pelo socialismo e por uma sociedade sem classes.
Nas linhas seguintes, pretendemos nos concentrar em um dos balanços que está ganhando aceitação por setores da esquerda, que, enquanto veem com preocupação como terminou o ciclo político passado e como está terminando o MAS, cada vez mais direitizado em suas diversas alas, tentam reivindicar o primeiro momento do governo de Evo Morales qualificando-o como uma “Revolução Política” ou “Revolução Política parcial”.
Essa visão, expressa em alguns artigos de Jorge Viaña, Hugo Moldiz ou no livro recentemente publicado de José Daniel Llorenti 1 , se apoia no suposto cumprimento da agenda de outubro, como a convocação de uma Assembleia Constituinte, a nacionalização dos hidrocarbonetos, entre outras. Esses esforços buscam encontrar uma explicação para a situação atual do MAS evitando as explicações baseadas na suposta traição dos renovadores, ou a suposta traição e covardia durante 2019 dos evistas, ou simplesmente reduzindo os graves problemas estruturais a uma disputa entre pessoas boas vs pessoas más.
Esse esforço de tentar estabelecer uma explicação para o ocorrido, na verdade, busca justificar o que foi realizado por Evo Morales e pelo MAS até o momento da aprovação da Constituição, evitando questionar esse primeiro momento do progressismo andino e, portanto, se privando de uma compreensão e explicação que abordem os problemas estratégicos e programáticos que o MAS sofreu e que acabaram conduzindo o país ao ponto onde estamos hoje. Referimo-nos à questão de “classe” que diversos setores do MAS, evistas e renovadores, se recusam a abordar e analisar. Há uma forte tendência em estabelecer o balanço do ciclo político passado tomando como ponto central de análise as políticas sustentadas pelo MAS, dando, dependendo do analista, pouca ou nenhuma importância ao ciclo de levantes populares que ocorreram de abril de 2000 a maio-junho de 2005. As diversas etapas ou periodizações que se constroem desde 2000 até 2019 se concentram especialmente no que aconteceu desde 2006 com o início do governo de Evo Morales.
Em geral, todos os analistas tendem a concordar que, neste momento, estaríamos atravessando uma etapa “administrativista-burocrática”, caracterizada pela priorização da gestão, onde o momento “transformador e heroico” do processo de mudança já teria concluído, pelo menos até uma segunda etapa, na visão de Álvaro García Linera.
Em uma recente entrevista à BBC 2 , Álvaro García Linera (AGL), que se mantém à margem das disputas entre os caudilhos do MAS por sua “incompetência” para esses momentos, afirma que:
“A lógica administrativa de transição das grandes hegemonias que emergem da ação coletiva, para as hegemonias fragmentadas e divididas que emergem desses momentos administrativos, requer outro tipo de conhecimentos e saberes políticos que eu não possuo. Admito minha incompetência para este momento.”
Com essas palavras, AGL evita explicar como e graças a que política se chegou das ‘grandes hegemonias’ até as atuais ‘hegemonias fragmentadas’, quase como se buscasse naturalizar essas diferentes “fases” ou “etapas”, evadindo sua própria responsabilidade política nesses resultados. Praticamente todos os analistas do MAS repetem essas afirmações de maneira despreocupada, sem compreender que esses resultados são produto de uma política não revolucionária. Por essa razão, começaremos este debate remontando ao ciclo dos grandes levantes nacionais de 2000-2005.
Origem do chamado “processo de mudança”: Abril de 2000 ou janeiro de 2006?
A chegada de Evo Morales e do MAS à presidência em janeiro de 2006 e seus 14 anos de governo, até o golpe de estado de 2019, são absolutamente incompreensíveis sem dar um lugar central ao ciclo de luta de classes que se abriu com a Guerra da Água em Cochabamba em abril de 2000 e a série de levantes nacionais que se prolongaram até maio-junho de 2005, quando caíram Carlos Mesa, presidente do Estado, Orlando Vaca Díez, presidente da câmara de senadores, e Mario Cossío, presidente da câmara de deputados. A ascensão, após essa última crise, de Rodríguez Veltzé, presidente da Suprema Corte de Justiça, à presidência do Estado, marcou o colapso final do regime político neoliberal conhecido como “Democracia pactuada”, em alusão aos acordos obrigatórios que as diversas representações burguesas realizavam para garantir governabilidade. Esses pactos, claro, estavam finamente lubrificados com a distribuição de cargos públicos e diversos negócios que garantiam o compromisso de todas as forças políticas na aplicação do modelo neoliberal.
Os ataques neoliberais aos trabalhadores e ao povo no final de 1999 e início de 2000 avançaram sobre a água. Pretendiam expropriar os poços de água de propriedade das comunidades camponesas conhecidas como “regantes” para entregá-los às empresas transnacionais distribuidoras do líquido vital nas áreas urbanas. Chegaram a privatizar até mesmo a água da chuva e, finalmente, elevar os preços de maneira que provocaram a formação de um poderoso movimento social que, com barricadas, generalização dos bloqueios camponeses e uma valente resistência nas ruas contra as instituições armadas da polícia e das Forças Armadas, iniciaram o fim do ciclo neoliberal e prepararam o terreno para um novo ciclo político caracterizado por uma nova relação de forças entre as classes.
A intensidade da Guerra da Água se expressou no surgimento de uma Frente Única 3 de massas que se materializou na Coordenadora da Água, integrada por todas as organizações sindicais e sociais do departamento de Cochabamba que, finalmente, dirigiu o levante. Por outro lado, em Achacachi, cidade aymara do altiplano, constituiu-se um segundo epicentro do conflito, organizando dezenas de milhares de comunitários nos bloqueios de estradas.
Após a Guerra da Água, seguiu-se, no mesmo ano, o levante aymara de setembro de 2000, que, dirigido por Felipe Quispe, o Mallku, impôs ao governo do General Banzer uma pauta de mais de 70 pontos de demandas agrárias e políticas, deixando o regime político mortalmente ferido. Este levante colocou sobre a mesa o conjunto de reivindicações indígenas, onde o mais destacado era a reivindicação da identidade e do caráter nacional do povo aymara.
Os anos de 2001 e 2002 foram caracterizados por conflitos setoriais e corporativos muito duros, a ponto de, durante esses dois anos, vários desses conflitos terminarem com mortos e feridos. Em 2002 também se desenvolveram as eleições nacionais, onde, por uma margem muito estreita frente a Evo Morales, saiu vitorioso, pela última vez, o MNR (Movimento Nacionalista Revolucionário) com Gonzalo Sánchez de Lozada (Goni) à frente do governo. A extrema fraqueza do governo incentivou todos os partidos do regime neoliberal a construir um grande acordo que garantisse a governabilidade, conhecida como a mega coalizão, que, apesar desse compromisso, estava longe de alcançar algum tipo de legitimidade social, obrigando o governo a apoiar-se na polícia e a sustentar uma gestão altamente repressiva.
O fim se acelerou quando o governo, pressionado por um enorme déficit fiscal e sem mecanismos para obter receitas devido à massiva privatização realizada anos antes, impôs um imposto sobre os salários, que, em fevereiro de 2003, desencadeou uma enorme crise nacional que terminou com mais de 35 mortos após os confrontos entre policiais e militares. O motim policial, nos dias 12 e 13 de fevereiro, ocorreu alguns dias antes da convocação da COB para uma Greve Geral com bloqueio de estradas, abrindo uma descomunal crise política que obrigou a retirar o impuestazo. Ressurgia assim, uma fissura que se arrastava desde a revolução de 1952, e era a disputa entre policiais e militares, disputa que em diversas ocasiões se traduzira em confrontos armados.
A magnitude da crise aberta em fevereiro empurrou todos os partidos do regime a assumirem um novo compromisso de governabilidade, somando-se ao governo com redobrado empenho. Parecia que aquele grande acordo nacional firmado em torno de Sánchez de Lozada vinha blindar o governo, o qual gozou de alguns poucos meses de calma até 19 de setembro daquele mesmo ano.
A insurreição popular de outubro, a chamada Guerra do Gás, na cidade de El Alto como epicentro, começou em 19 de setembro após policiais e militares quebrarem um bloqueio de estradas na localidade de Warisata, deixando 7 mortos, entre eles uma menina de 7 anos. Imediatamente conhecida a ação militar e seus resultados, centenas de bloqueios se generalizaram por todo o altiplano, enquanto Felipe Quispe e vários dirigentes da CSUTCB (Confederação Sindical Única dos Trabalhadores Camponeses da Bolívia) entravam em greve de fome na rádio San Gabriel.
O enorme bloqueio de estradas camponês foi seguido por uma assembleia da COB realizada em Huanuni, onde se declarou a Greve Geral por tempo indeterminado e se organizou a mobilização de mineiros para a cidade de La Paz nos primeiros dias de outubro. Quando a mobilização de mineiros e da UNSXX (Universidade Nacional Siglo XX), após superar diversos bloqueios policiais e militares, chegou à localidade de Ventilla, às portas da cidade de El Alto, foram recebidos por um cordão policial e militar que emulava aquela derrota sofrida pela classe operária em 1986 e que abriu caminho ao D.S. 21060 4 e a todas as políticas neoliberais. Após uma profunda deliberação, a marcha decidiu romper o cerco e continuar em direção à cidade de La Paz. A repressão foi feroz e ali perdeu a vida o mineiro de Huanuni, Atahuichi. A notícia, que correu como um rastilho de pólvora, incentivou as juntas de vizinhos de El Alto a começarem um vigoroso e massivo levante popular, generalizando as barricadas e a perda de controle da cidade por parte do governo. Começava a grande insurreição popular de El Alto que expulsaria definitivamente do governo Goni e o MNR, em 17 de outubro de 2003.
Com o MNR em fuga, todos os partidos políticos e personagens que formavam o regime da “democracia pactuada” neoliberal o acompanharam. O início do governo de Carlos Mesa, coberto de certas expectativas populares, devido ao fato de não ser um membro formal do MNR e por seu trabalho como jornalista, foi relativamente “tranquilo”, já que sua política foi canalizar as diversas demandas sociais para o terreno eleitoral, tentando esquivar-se da profunda polarização social e política que, desde a Guerra da Água, não havia deixado de se aprofundar.
Mesa convocou a um referendo nacional para estabelecer, por sim ou por não, uma Assembleia Constituinte (AC), assim como para a exigência de autonomias departamentais, demanda antiga das burguesias regionais e faixas da sociedade civil em luta por uma melhor distribuição da renda nacional diante do duro centralismo paceño. Agora, ao histórico conteúdo da demanda autonômica, adicionava-se o fato de que poderia servir como uma barreira às tendências revolucionárias que se expressavam fundamentalmente no oeste do país e, por isso, se tornou a bandeira de toda a direita nacional que se refugiava em um regionalismo oligárquico, conservador e racista.
No entanto, chegado 2005, a situação se deteriorou rapidamente ao tratar-se no parlamento a lei dos hidrocarbonetos, impulsionada pela bancada do MAS, que impunha um aumento substancial dos impostos à produção e comercialização de hidrocarbonetos, aumento que colocava a Bolívia no mesmo nível de impostos que, por exemplo, o Estado francês cobra da Total francesa. Essa lei, que, embora não estatizasse as empresas de hidrocarbonetos, lhes impunha uma severa redução de suas utilidades, recebeu no parlamento uma firme negativa, com Carlos Mesa ameaçando renunciar antes de promulgar uma lei que, segundo suas palavras, significava o afundamento da Bolívia. A lei, hoje vigente, desencadeou em sua tramitação um novo e último levante nacional, em maio-junho de 2005, até a assunção do governo de Evo Morales em janeiro de 2006, após obter 55% dos votos nas eleições de dezembro de 2005.
Esse enorme primeiro ciclo de luta de classes se caracterizou pelo despertar das massas, por um aprendizado acelerado sobre os mecanismos traiçoeiros da democracia neoliberal. Realizou-se uma vasta experiência em diversos métodos de luta, onde cada grande conflito sindical ou setorial emulava os planos militares de organização, criando simbolicamente expressões de seu próprio poder de mobilização e resistência nas ruas, como foi o Quartel General Aymara de Kalachaca, o plano pulga do movimento camponês, o plano aranha, etc., e diversas formas de organizar os bloqueios de estradas e ruas, assim como os pontos de apoio e concentração em caso de confrontos com a polícia.
Ao longo desses anos, realizaram-se diversas experiências de unidade das organizações sindicais e sociais, sendo o Pacto de Unidade uma das últimas e rapidamente cooptada pelo governo do MAS. Durante esses anos, também se realizaram múltiplas experiências de auto-organização operária, camponesa e popular, desde o poder das juntas de vizinhos de El Alto em 2003, poder que se manteve disperso e não chegou a coordenar-se como um organismo alternativo à decadente democracia representativa, até experiências como os múltiplos comitês e formas de autodefesa durante as mobilizações. Talvez a forma mais avançada de auto-organização operária, camponesa e popular tenha sido a Coordenadora da Água em Cochabamba, organismo democrático e estruturado a partir de todos os sindicatos, aos quais se somaram todos os tipos de organizações. Surgiu a partir da iniciativa de uma ONG como um espaço semi-institucional que poderiam controlar e acabou transformando-se, produto da pressão popular, de baixo para cima, em um organismo de frente única de massas, com alguns traços sovietistas ou de conselhos operários e populares.
Durante esses anos, o regime político que surgiu com o D.S. 21060 e as eleições de 1985 afundou definitivamente. Foi demolido em cada mobilização, greve e bloqueio de estradas. Em cada ocupação de fábrica ou centro mineiro, em cada levante nacional. Paralelamente ao caminho que se abria para a ascensão do MAS ao governo, surgiam formações políticas indianistas como o MIP (Movimento Indígena Pachakuti) de Felipe Quispe, com fortes raízes no mundo aymara e limitadas a este, assim como organizações populares de esquerda em Potosí, etc. Ou seja, a luta de classes descrita anteriormente abriu um momento para o ressurgimento das organizações que se reivindicavam do campo operário, camponês e popular. A pressão da mobilização popular arrancou ao ainda neoliberal governo de Carlos Mesa o mandato imperativo para a convocação de uma Assembleia Constituinte, demanda que foi satisfeita de maneira negociada no parlamento posterior entre a situação do MAS e a oposição direitista recentemente aglutinada em PODEMOS, com Tuto Quiroga à frente.
A demanda por uma Assembleia Constituinte emergiu com força em cada um dos grandes levantes nacionais e estava estreitamente associada com a ideia de realmente refundar o país sobre novas bases. No imaginário popular, desaparecida a ideia do socialismo, entendia-se que a forma democrática de acabar com o saque dos bens comuns naturais, iniciar sua industrialização, terminar com o latifúndio, etc., era com a demanda por uma Assembleia Constituinte que aos olhos do povo estava intimamente ligada às demandas econômico-sociais, que, se satisfeitas na sua integridade, tendiam a afetar os interesses das classes dominantes. Isso é importante ter em conta para compreender o desenvolvimento posterior da AC, e como prevaleceu o caráter de desvio da mobilização, e a paulatina passivização da ação de massas do período anterior.
Se houve uma mudança na Bolívia contemporânea, foi a que se desenvolveu nesses primeiros 5 anos do milênio, que estabeleceram uma nova relação de forças entre as classes sociais e que vão se cristalizar na forma de leis e normas democráticas e inclusivas durante o governo de Evo Morales. Isso acontecerá, no entanto, de uma maneira distorcida, degradando seu conteúdo, e negociando com as classes dominantes os limites de seus alcances e profundidade.
A Assembleia Constituinte e o Estado Plurinacional: Revolução política ou passivização das massas?
Aqui entramos em um problema nodal do como e porquê chegamos a esta situação, por isso a discussão de como entender e interpretar todo o ciclo político é de uma importância estratégica para os próximos combates que a luta de classes está cozinhando a fogo lento.
Como já mencionamos, a ideia de uma revolução política para explicar o primeiro governo de Morales não é apenas errônea, mas também perigosa, se for adotada por amplos setores da vanguarda e dos trabalhadores e trabalhadoras avançados, uma vez que induz a seguir os mesmos passos que conduziram a essa “Revolução Política”, repetindo assim novamente os erros – se é que podem ser chamados assim – que reconstruíram o Estado e a ordem capitalista burguesa que havia sido demolida nos anos precedentes. Contiveram o movimento de massas para que depositassem suas expectativas na AC pactada e no governo para a gestão dos conflitos com a direita regionalizada.
Consideramos que para abordar uma análise integral de todo este período histórico é necessário, no entanto, estabelecer alguns conceitos e definições que serão fundamentais para a análise marxista deste período.
a) A natureza social do Estado. Para os ideólogos e políticos do MAS, o Estado tem sido compreendido em geral como um campo em disputa, como uma ferramenta ou instrumento que, dependendo de quem possui o poder, pode ser um veículo de transformação social. Esta concepção rompe com as formulações clássicas de Marx e Engels, bem como com Lenin, que buscou aprofundar o estudo da natureza social desta instituição central de toda sociedade dividida em classes. Nesta concepção, e tal como formulam Marx e Engels no Manifesto Comunista após a Comuna de Paris, “o Estado não pode ser reformado, deve ser destruído”. Esta importantíssima conclusão é o resultado da compreensão de como, em cada momento histórico, as formas estatais são herança e aperfeiçoamento ou refinamento das formas estatais precedentes, questão que pode ser observada, por exemplo, na evolução e desenvolvimento do ius civile romano que chega até os nossos dias, formando parte dos modernos estados capitalistas, que têm refinado este corpo normativo, regulador dos contratos.
O radical ponto de vista de Marx e Engels sobre a necessidade de destruição do Estado capitalista e sua substituição por outras formas, como as aportadas pela Comuna de Paris, obedece a que o Estado desde suas origens se coloca acima da sociedade, mas ao serviço de garantir a reprodução das relações sociais de produção estabelecidas pelas classes dominantes. É por esta razão que, em última instância, o Estado pode ser reduzido 5 aos aparelhos punitivos do Estado, ou seja, Tribunais, Polícia e Forças Armadas. Isso é importante ter em conta ao se perguntar, como fazem muitos nas fileiras do MAS após o golpe de 2019 e a recente tentativa golpista fracassada do 26J, por que as reformas descolonizadoras não chegaram às Forças Armadas e à polícia?
A Revolução operária de 1952 destruiu o exército, ou seja, o Estado Republicano, mas a burguesia, branco-mestiça, com a ajuda do MNR, sobre os restos do exército destruído e com colaboração norte-americana, reconstruíram um novo exército e colocaram em pé um novo Estado, o Estado Nacional, que evoluirá em meados dos anos 80 ao Estado do ciclo neoliberal. O Estado Plurinacional se distingue em diversos aspectos formais das formas anteriores, onde talvez as mais relevantes sejam as autonomias indígenas, muito poucas por certo, e o pluralismo jurídico ao incorporar à justiça indígena-originário-camponesa como parte do ordenamento jurídico, assim como diversos direitos coletivos, que o fazem mais moderno e teoricamente mais democrático. No entanto, se pensarmos como, nos momentos de crise, e na Bolívia são recorrentes, o papel protagônico das instituições armadas se acentua, temos que concordar que a natureza do Estado, ao serviço das classes-etnias branco-mestiças, não mudou, apesar das ampliações normativas e institucionais desenvolvidas nesses anos após a nova CPE (2009). Pedregal, Sacaba e Senkata estão aí para recordar isso.
b) O duplo caráter das demandas democrático-radicais como a Assembleia Constituinte. A demanda por uma Assembleia Constituinte, como dissemos, esteve presente em cada um dos levantes nacionais. Esta demanda foi trazida pelas marchas indígenas do oriente desde os anos 90 e, durante o governo de Carlos Mesa, foi aprovada em referendo.
Para os marxistas, tomando os ensinamentos dos quatro primeiros congressos da Internacional Comunista (IC), valorizamos o alto poder mobilizador que têm as consignas e demandas democráticas, especialmente a de uma Assembleia Constituinte Livre e Soberana (ACLS), que promete refundar o país desde a sua raiz. Mas também valorizamos o potencial desmobilizador que pode ter ao ser usada para restabelecer, sobre novas bases, a ordem burguesa. A Terceira Internacional e, posteriormente, Trotsky no Programa de Transição, propuseram a incorporação das demandas mínimas e democráticas enquanto mantêm sua força vital em um programa transicional na luta pelo socialismo.
Durante o período de 2000 a 2006, a demanda popular por uma AC desempenhou um papel poderoso de mobilização; no entanto, a forma como sua convocação foi negociada com o PODEMOS em 2006 e depois com toda a oligarquia financeira e agroindustrial entrincheirada na meia-lua em outubro de 2008, incentivou o início do desgaste e da decepção pelos resultados em partes do movimento de massas. Os latifundiários agroindustriais não perderam nem um centímetro de terra e os grandes negócios capitalistas não só se mantiveram como também obtiveram grandes lucros durante o governo de Morales. O caráter negociado da AC incentivou a desmobilização e a passividade do movimento de massas, ao mesmo tempo em que os organismos sindicais eram assimilados à estrutura estatal, enquanto reconstruíam um regime político, a serviço das classes dominantes, mais sólido e coerente do que havia entre 2005 e 2009. 6
c) A contraditória relação entre movimento de massas e superestrutura partidária e estatal. Um dos erros metodológicos na abordagem da análise do ciclo político “progressista” reside no fato de que os ideólogos do MAS tendem a compreender a relação do movimento de massas com o MAS e com o Estado de maneira linear e sem contradições. Para eles, os movimentos sociais e suas lideranças que protagonizaram os levantes são os mesmos que se incorporam à estrutura do MAS e são os mesmos que ocupam espaços na estrutura estatal. Parece que não há nenhum tipo de transformação nessa relação.
Essa compreensão linear e evolutiva dos movimentos sociais e sua relação com o MAS se traduz na ideia de que “o processo de mudança estaria atravessando uma fase administrativista”, ou seja, limitada à gestão do estatal e do existente, como se essa fase fosse expressão de uma evolução quase natural dos processos políticos e não como resultado da luta (ou da falta dela) não apenas entre as classes, partidos e organizações de classe, mas também dentro do próprio MAS e entre suas diversas tendências. Por isso, ao interpretar como uma continuidade os movimentos sociais primeiro nas ruas e depois no Estado, e centrar suas análises em se as demandas desses movimentos sociais e as disposições do governo, como a convocação de uma Assembleia Constituinte ou a nacionalização dos hidrocarbonetos, foram cumpridas ou não, reduzem a análise às disposições governamentais e não às relações que essas disposições provocam entre as massas e o Estado.
Pelo contrário, Trotsky, ao tentar explicar o papel das organizações operárias e populares após a vitória de Franco na guerra civil espanhola, nos oferece linhas valiosas para compreender a contraditória evolução das relações entre o MAS e os movimentos sociais. Trotsky polemiza com uma visão na qual a derrota da revolução espanhola teria sido o resultado “da falta de maturidade das massas” ou, pior ainda, afirmações como “O Deus dos revolucionários não trouxe para a Espanha um Lenin ou um Trotsky”. De modo geral, todas essas visões acabam naturalizando as derrotas ou, pior ainda, atribuindo a responsabilidade delas não aos líderes, seus programas e estratégias, mas às massas, ou seja, justamente àquelas que realmente fizeram de tudo para acabar com o neoliberalismo e estabeleceram as condições de possibilidade para que o MAS pudesse chegar ao governo em 2006.
Trotsky, referindo-se à Espanha dos anos 30 7 , afirma:
“Existe um velho ditado que reflete a concepção evolucionista e liberal da história: um povo tem o governo que merece. A história nos mostra, no entanto, que um mesmo povo pode ter, em um período relativamente breve, governos muito diferentes (Rússia, Itália, Alemanha, Espanha, etc.) e, além disso, que a ordem em que eles se sucedem não tem sempre o mesmo sentido, do despotismo para a liberdade, como acreditam os liberais evolucionistas. O segredo deste estado de coisas reside no fato de que um povo é composto de classes hostis e que estas mesmas classes são formadas por camadas diferentes, parcialmente opostas entre si e que têm diferentes orientações. Além disso, todos os povos sofrem a influência de outros povos, compostos por sua vez de classes. Os governos não são a expressão da “maturidade” sempre crescente de um “povo”, mas o produto da luta entre as diferentes classes e as diferentes camadas dentro de uma mesma classe e, além disso, da ação de forças exteriores – alianças, conflitos, guerras, etc. É preciso acrescentar que um governo, desde o momento em que se estabelece, pode durar muito mais tempo do que a relação de forças que o produziu. É a partir dessas contradições históricas que ocorrem as revoluções, os golpes de estado, as contrarrevoluções. O mesmo método dialético deve ser empregado para tratar a questão da liderança de uma classe. Assim como os liberais, nossos sábios admitem tacitamente o axioma segundo o qual cada classe tem a liderança que merece. Na realidade, a liderança não é, de forma alguma, o “simples reflexo” de uma classe ou o produto de sua própria potência criadora. Uma liderança se constitui no curso dos choques entre as diferentes classes ou das fricções entre as diversas camadas dentro de uma classe determinada. Mas, assim que aparece, a liderança se eleva inevitavelmente acima da classe e, por esse fato, arrisca-se a sofrer a pressão e a influência das outras classes. O proletariado pode “tolerar” durante bastante tempo uma liderança que já sofreu uma degeneração total interna, mas que não teve a oportunidade de manifestá-la no curso dos grandes acontecimentos. É necessário um grande choque histórico para revelar de forma aguda a contradição que existe entre a liderança e a classe. Os choques históricos mais potentes são as guerras e as revoluções. Por essa razão, a classe trabalhadora muitas vezes é pega de surpresa pela guerra e pela revolução. Mas, mesmo quando a antiga liderança revelou sua própria corrupção interna, a classe não pode improvisar imediatamente uma nova liderança, especialmente se não herdou do período anterior os quadros revolucionários sólidos, capazes de aproveitar o colapso do velho partido dirigente. A interpretação marxista, ou seja, dialética e não escolástica, das relações entre uma classe e sua liderança não deixa pedra sobre pedra dos sofismas legalistas de nosso autor.”
Traduzimos esta extensa citação, pois consideramos que nestas linhas há contribuições metodológicas substanciais para compreender de maneira marxista as relações entre a estrutura e a superestrutura, entre os movimentos sociais mobilizados e os partidos de esquerda dos anos anteriores.
Para os diversos analistas do MAS, parece que as fricções dentro do MAS teriam ocorrido após o golpe de estado. No entanto, isso também é uma tentativa de ignorar as disputas internas do MAS que ocorreram desde o início, mas que foram ofuscadas pela forte hegemonia expressa por Evo Morales. Assim, no início de seu governo, Evo Morales não contou com o apoio dos trabalhadores mineiros, particularmente de Huanuni, que em outubro de 2006 tiveram um violento confronto com o ministro de Mineração do MAS, o cooperativista empresário Walter Villarroel, que pretendia entregar o depósito à voracidade das empresas chinesas. Depois vieram profundas rupturas com a velha guarda do MAS, como Santos Ramírez, que passou grande parte desse ciclo atrás das grades, Román Loayza, Félix Santos, Isabel Ortega, todos ex-senadores e membros do movimento camponês, e a ex-deputada e ex-ministra Julia Ramos, por exemplo.
Depois expressaram-se nas fricções e expulsões dos chamados “livres pensadores”. Finalmente vieram as rupturas com facções do movimento camponês, como os cocaleros de Yungas de Vandiola, cocaleros do norte de La Paz, perseguição a mineiros e professores que impulsionaram o Partido dos Trabalhadores (PT) 8 e inúmeras rupturas e facções com o movimento camponês e operário que consolidavam o divórcio entre Evo Morales e a cúpula do MAS com suas próprias bases. Afirmar que o MAS-IPSP é o instrumento político dos movimentos sociais é apenas uma ficção adocicada que busca embelezar a liderança do MAS e evitar críticas profundas a uma política abertamente pró-patronal.
d) Revolução Política: mudanças no Estado ou no regime político? Voltemos agora a este conceito de Revolução Política (parcial) que nos oferecem da esquerda do MAS para explicar pelo menos o primeiro governo de Evo Morales, até a promulgação da nova Constituição. Alguns prolongam esta fase do “processo de mudança” até 2013-2014. Naquele ano, o MAS obteve, nas eleições nacionais, quase 63% do total de votos, o mais elevado de todas as disputas eleitorais, embora desde 2009 o MAS desempenhasse o papel de garantidor dos acordos constitucionais, administrando o Estado e acentuando o autoritarismo de Morales.
O fundamento para sustentar a existência de uma revolução política são as importantes incorporações normativas e institucionais na CPE, que teriam modificado o “Estado”, democratizando-o. No entanto, se nos atermos à compreensão do Estado formulada pelos marxistas clássicos (expressa no inciso a. desta mesma parte), vemos que longe de ter mudado o Estado, ele continua sendo de natureza classista e étnica. Continua sendo o mesmo estado garantidor da ordem burguesa semicolonial da Bolívia 9 . Mas se é assim, o que mudou com o nome de Estado Plurinacional da Bolívia?
Nas Ciências Políticas, é convenção entender o regime político como as formas institucionais em que diversos governos podem alternar-se seguindo regras comuns, como por exemplo um regime ditatorial pode ter em um período de tempo mais ou menos prolongado diversos governos, mesmo com orientações diferentes, ou por exemplo um regime democrático neoliberal, como o que foi estabelecido após 1985, contou com diversos governos que se moveram dentro dos marcos estabelecidos por esse regime político baseado em eleições e acordos de governabilidade com base na divisão da administração estatal.
Podemos dizer que os diversos regimes políticos são o resultado da cristalização de diversas relações de força entre as classes, relações de força que, no caso boliviano, não apenas mudaram governos (de Goni a Mesa e deste a Rodríguez Veltzé e deste a Evo Morales) mas também as formas institucionais que estabelecem o quadro e os procedimentos para acessar o governo. No entanto, também podemos dizer que, dentro do governo de Evo Morales, e no quadro do Estado Plurinacional (EPB) também houve modificações não só no governo, com a adoção de traços cada vez mais autoritários de Morales, mas dentro do próprio regime do EPB com o desenvolvimento de tendências semi bonapartistas do órgão executivo.
Pode-se argumentar, seguindo estas últimas ideias, que embora durante o ciclo político passado não se tenha questionado as relações sociais capitalistas nem o papel central das classes dominantes na sociedade, questão que só poderia ter sido modificada com o desenvolvimento da mobilização até alcançar a possibilidade de uma revolução social que terminasse com a burguesia e as relações sociais capitalistas, no entanto a mobilização popular foi suficiente para levar adiante uma transformação no regime político de tal magnitude que é o que permite a alguns chamá-la de uma “revolução política”. Com essa visão, atribui-se às massas a incapacidade de estabelecer melhores relações de força, quase como se a cúpula do MAS quisesse ir além do que as massas lhes permitiriam. Como se essas relações de força fossem algo dado e não resultado da luta de estratégias, programas e, finalmente, políticas. Ou seja, é o resultado de decisões políticas conscientemente adotadas pelos sujeitos, sociais e políticos, que intervêm na luta. A direção do MAS pôde avançar no estabelecimento de algumas reformas políticas na estrutura estatal, que eles chamam de Revolução Política, a condição de sacrificar as possibilidades de avançar em uma revolução social e, portanto, após reconstruir a ordem das classes dominantes, colocar em risco essas mesmas reformas que hoje são questionadas pelas classes dominantes.
A concepção de praticamente todas as forças políticas que se integraram e deram forma ao MAS compartilhavam a visão estalinista da necessidade de uma primeira etapa necessária de uma “Revolução democrática e cultural” que completasse as tarefas inacabadas da revolução de 52, ou seja, a questão indígena e a necessidade de alcançar o pressuposto da burguesia ilustrada sobre “igualdade perante a lei”, questão que na Bolívia não foi possível devido à formação da sociedade com base na construção das classes sociais com base na etnicidade, dando origem ao que conhecemos hoje como classes-etnias.
Esta concepção, para se efetivar, deveria, no entanto, trabalhar para obstaculizar todas as tendências operárias e populares que buscassem ir além de uma reforma política, usando as reformas, democráticas e inclusivas, para limitar e passivizar as tendências a continuar e aprofundar a mobilização. Longe de uma revolução política, temos que afirmar que se tratou de reformas políticas com o objetivo de garantir a reconstrução da ordem burguesa debilitada e sem modificar as bases materiais que a sustentam, ou seja, evitando tocar nos interesses dos grandes capitais, agroindustriais, bancários-financeiros e mineradores. Em poucas palavras, introduzir reformas políticas como parte de uma estratégia de contrarrevolução social, questão que se desenvolveu com força a partir de 2009 e que se consumou com o golpe de 2019.
Essas reflexões, no entanto, não são novas. Já Lenin em 1907, quando ainda pensava na próxima revolução russa como uma revolução democrático-burguesa, embora rejeitasse que esta fosse liderada pelos representantes da burguesia liberal, argumentava que a convocação para a Assembleia Constituinte só poderia ser realmente uma expressão da vontade de todo o povo se realizada por meios revolucionários, ou seja, a queda da monarquia de maneira revolucionária, a formação de um governo provisório revolucionário e a convocação para a assembleia constituinte por esse mesmo governo provisório revolucionário, que apoiado pelas forças armadas podia levar a revolução até o fim:
“Para a instauração da república é absolutamente necessária a assembleia dos representantes populares, assembleia que deve ser necessariamente de todo o povo (com base no sufrágio universal, igual, direto e secreto) e constituinte. (…) Para estabelecer uma nova ordem de coisas que ’expresse realmente a vontade do povo’ não basta dar à assembleia representativa a denominação de constituinte. É preciso que tal assembleia tenha poder e força para ’constituir’ (…) A resolução do Congresso diz que só um governo provisório revolucionário, com a particularidade de que seja o órgão da insurreição popular vitoriosa, é capaz de garantir a liberdade completa da agitação eleitoral e de convocar uma assembleia que expresse realmente a vontade do povo. Esta tese é justa?”
Ele argumentava isso rejeitando as recomendações dos representantes da burguesia liberal e parte do menchevismo que buscava compreender a convocação da Assembleia Constituinte com base em acordos e transações com a monarquia. Como vemos, apesar das substanciais diferenças com a Bolívia, temos que o MAS realizou precisamente o trabalho dos neoiskristas, mencheviques, e não as recomendações do líder bolchevique. Linhas acima da citação que acabamos de transcrever, Lenin retoma as ideias de Marx em relação ao falido parlamento de Frankfurt em 1848, sobre a diferença entre uma Assembleia convocada com base em uma insurreição vitoriosa, com a força para cumprir suas decisões, e uma assembleia convocada pelas organizações liberais e reformistas:
“A Conferência dos mencheviques-neoiskristas cometeu o mesmo erro que cometem constantemente os liberais, (…). Essas pessoas lançam frases sobre a Assembleia ’Constituinte’, fechando pudicamente os olhos diante da conservação da força e do Poder nas mãos do czar, esquecendo que para ’constituir’ é preciso ter a força para constituir. A Conferência também esqueceu que da ’decisão’ de quaisquer representantes, até o cumprimento dessa decisão, há um grande trecho. A Conferência também esqueceu que enquanto o Poder permanecer nas mãos do czar, qualquer decisão de quaisquer representantes não passa de charlatanismo vazio e mesquinho, como resultaram ser as ’decisões’ do parlamento de Frankfurt, famoso na história da revolução alemã de 1848. Marx, (…) fustigava precisamente com sarcasmos implacáveis (…) porque pronunciavam belos discursos, tomavam toda sorte de ’decisões’ democráticas, ’instituíam’ toda sorte de liberdades, mas, na prática, deixavam o Poder nas mãos do rei, não organizavam a luta armada contra as forças militares de que dispunha este último.” 10
Tudo isso contrasta com a política do MAS, que longe de impulsionar a mobilização revolucionária dos trabalhadores do campo e da cidade para impor uma Assembleia Constituinte verdadeiramente Livre e Soberana, optou pelo expediente da negociação e da transação com as forças burguesas cada vez mais diminuídas. Assim, aceitou o condicionamento parlamentar dos 2/3 com PODEMOS em 2006, e finalmente, diante da resistência das classes dominantes e seus partidos em 2008, o MAS preferiu ceder em mais de 100 artigos do texto constitucional ao invés de impulsionar a mobilização revolucionária contra a direita.
Nos resulta incompreensível que, ao entregar a AC à direita, Álvaro García Linera e outros intelectuais qualifiquem os meses de setembro a outubro daquele ano “como o momento heróico do processo de mudança”, quando na realidade se estava estabilizando a contrarrevolução social, momento que posteriormente qualificarão como “revolução política”.
Entre setembro e outubro daquele ano, o movimento camponês e diversos setores populares se mobilizaram intensamente contra a ofensiva direitista contra a Assembleia Constituinte, pois viam que o texto final não oferecia pontos de apoio suficientes para a defesa e continuidade dos negócios capitalistas.
A ofensiva direitista, que começou com a tomada de escritórios e repartições estaduais em Santa Cruz e outros departamentos da chamada meia lua, continuou com uma explosão de agressões racistas e violência nas ruas, até que em 11 de setembro, no departamento de Pando, dezenas de camponeses apoiadores do MAS foram selvagemente emboscados por agentes armados ligados ao governador, o banzerista Leopoldo Fernández, com mais de uma dúzia de mortos e dezenas de feridos a bala. A investida direitista, no entanto, foi imediatamente respondida com uma enorme mobilização da COB e da CSUTCB na cidade de La Paz, e com o início de mobilizações espontâneas de Cochabamba em direção à cidade de Santa Cruz. Essas mobilizações, no entanto, estavam armadas, embora improvisadas, após o massacre de El Porvenir, ninguém estava disposto a enfrentar-se com as mãos vazias. O primeiro confronto entre civis ocorreu na localidade de El Pailón, com algumas horas de confrontos, até que a mobilização entrou e continuou sua marcha em direção à capital departamental. Mais uma vez, os trabalhadores do campo e da cidade mostravam sua disposição de luta e sua vontade de fazer respeitar a vontade expressa na AC. Dirigiam-se ao covil da reação oligárquica e direitista, dispostos a acabar com a UJC (União Juvenil Cruceñista) e outros grupos paramilitares que haviam semeado o medo entre os setores populares cruceños.
Essa disposição de combate do movimento de massas, que vinha se expressando diante de cada investida direitista, como foi em Sucre no final de 2006, Cochabamba em janeiro de 2007 e finalmente agosto-outubro de 2008 e que era expressão dessa nova subjetividade construída ao calor dos levantamentos entre 2000 e 2005, no entanto, contrastava com a política da direção do MAS. Quanto mais agudo o confronto com a direita, maior era o contraste entre as bases mobilizadas e sua direção política preocupada em evitar o “transbordamento” e, por isso mesmo, preocupada em garantir os interesses das classes dominantes. O terror dos direitistas, ao verem a disposição combativa da mobilização, os empurrou rapidamente para a negociação que o MAS havia disposto como último recurso para deter os confrontos. Em 21 de outubro de 2008, em Cochabamba, finalmente foi assinado o grande acordo que viabilizou o texto constitucional, que já havia sido modificado em mais de 100 artigos, que garantiam plenamente os negócios capitalistas no país.
A partir deste momento surge um novo regime político, o do Estado Plurinacional da Bolívia, ficando o MAS com Evo Morales à frente como quase os exclusivos garantes do mesmo, desenvolvendo fortes tendências conservadoras e autoritárias. O “gasolinazo” de 2011, a repressão aos povos indígenas do TIPNIS, a repressão aos interculturais em Caranavi, ao povo Leco e outras medidas antipopulares e antioperárias foram colocadas em prática, acelerando o divórcio entre o MAS e o movimento de massas, divórcio apenas dissimulado pelo controle das organizações de massas através de uma direção sindical corrupta e cooptada.
Golpe de estado de 2019: A política do MAS abriu caminho para a direita
O período que vai desde a aprovação da CPE até a queda de Morales em 2019, será caracterizado por uma forte tendência a consolidar o novo regime político, o que se traduzirá, por um lado, numa atitude cada vez mais hostil e repressiva das demandas populares e democráticas, como foi a luta contra o “gasolinazo”, a luta do MAS contra os povos indígenas do TIPNIS, a luta do MAS contra os povos Lecos do norte de La Paz e contra a produção de coca “excedente” ou ilegal, a luta do MAS a favor das petroleiras e contra os povos de Tariquía em Tarija, a luta pela distribuição de terras dos interculturais em San Julián contra os agroindustriais e o governo do MAS, ou o uso de normativas neoliberais contra os trabalhadores assalariados, estendendo o estatuto do funcionário público, incentivando microempresas nas áreas de limpeza e reparação de estradas e rodovias, evadindo direitos trabalhistas e assinando contratos civis altamente desiguais, e um conjunto de medidas que evidenciavam como a direção do MAS se integrava cada vez mais aos interesses e à cultura política das classes dominantes.
Mas, enquanto esta era a política em relação aos setores populares que não podiam disciplinar, aprofundaram-se e estenderam-se os acordos e concessões às classes dominantes, como foi não apenas durante 2014 com a agroindústria cruceña, a que se deram novos créditos, extensão da fronteira agrícola, maior abertura e integração com o mercado chinês de carne e soja, a liberação de novas e mais áreas fiscais para os empresários-mineiros das “cooperativas”, as vantagens para o capital bancário e financeiro que durante esse período realizaram lucros inéditos em nossa história. No entanto, que as concessões e acordos com a grande burguesia nacional tivessem se potencializado geometricamente durante esse período, não impediu que a grande burguesia agroindustrial e financeira mantivesse sua profunda desconfiança não apenas em Evo Morales e o MAS, mas com diversas disposições “democráticas” que foram incluídas na CPE e na legislação.
Assim, as medidas do MAS nesse período tiveram um duplo efeito: por um lado, semeavam o ceticismo e a desmoralização nos setores populares que agora tinham que enfrentar o que acreditavam ter sido seu próprio instrumento político, enquanto que os bons negócios para as classes dominantes durante esse período não apenas as fortaleceram socialmente, como classe, mas politicamente se sentiam mais próximos ao poder do Estado graças ao trabalho conjunto que desde o governo se impulsava com agroindustriais, empresários mineiros e banqueiros.
Toda esta política teve que ser sustentada em solidão por Evo Morales e o MAS, que foram se apoiando cada vez mais no aparato judicial, na polícia e nas Forças Armadas para levar adiante essa orientação, cultivando assim as tendências autoritárias que explodiram em 21 de fevereiro de 2016 com a derrota no referendo constitucional. O desconhecimento dessa derrota por parte de Morales, que se candidatou novamente em 2019, graças a uma sentença constitucional feita “sob medida”, deu à direita política as suficientes bandeiras democráticas que conduziram à asonada direitista de outubro e finalmente ao golpe de Estado.
Mas, longe de aprender com os dramáticos acontecimentos vividos naquele ano, o estado-maior masista continuou e aprofundou ainda mais a mesma política de negociação e pactos com a direita, desta vez no âmbito da derrota. Os deputados e senadores que hoje formam parte do “evismo”, formaram parte das vergonhosas negociações nos dias do golpe patrocinadas pela igreja católica, para depois dos massacres de Pedregal e de Sacaba, terminar reconhecendo o governo de facto de Jeanine Áñez. Dois dias depois, com o massacre de Senkata, o golpe ficava consolidado.
Iniciava-se assim o governo de Jeanine Áñez no âmbito de uma profunda deslegitimidade das instituições estatais e de uma feroz perseguição política a diversos setores populares que qualificavam como “masistas”, levando a bíblia ao Palácio e fazendo gala de um profundo racismo. As tentativas de postergar indefinidamente as eleições nacionais detonaram a rebelião popular de agosto de 2020, que ameaçava iniciar um plano de luta que derrubasse o governo de Áñez e todos os golpistas. No entanto, a estratégia de negociações permanentes de Evo Morales e a cúpula do MAS encorajaram aceitar como data das eleições o dia 18 de outubro, acelerando a divisão entre os parlamentares do MAS e as organizações sociais do Pacto de Unidade. Esta política de colaboração com o golpismo foi sustentada tanto por Evo Morales quanto por Luis Arce.
O triunfo de Luis Arce nas eleições de outubro de 2020 com 55% dos votos não foi suficiente para impedir que se desenvolvessem as fortes tendências centrífugas no MAS, entre o evismo e os renovadores. Dezenas de golpistas hoje se encontram atrás das grades, incluindo Áñez, o governador de Santa Cruz, Luis Fernando Camacho e outros. A profunda crise não apenas no MAS, mas também ao nível das principais instituições estatais como o judiciario, a polícia e as próprias Forças Armadas semeiam incógnitas e dúvidas sobre o futuro do Estado Plurinacional da Bolívia, ficando os contornos do regime profundamente marcados por aqueles acontecimentos, sem os quais não se pode entender a crise atual.
NOTAS DE RODAPÉ
1. José Daniel Llorenti (2024) Limitaciones históricas y políticas del “Proceso de Cambio” ¿Fin de Ciclo?, La Paz: Subterránea Editores.
2. BBC News, Mundo, 3 de julho de 2024.
3. A III Internacional, com Lenin e Trotsky à frente, formulou a tática do FUF (Frente Única de Trabalhadores) como mecanismo de luta contra a burguesia e pelas demandas trabalhistas, apostando não apenas no fortalecimento das tendências revolucionárias ao expor a política branda e conciliadora das direções oficiais. O desenvolvimento da frente única pode avançar até se transformar em formas soviéticas ou conselhistas de organização, ou seja, formas de frente única de massas.
4. O Decreto Supremo 21060 foi um conjunto de disposições que abriram as portas para o ciclo neoliberal de forma massiva. Dispuseram as privatizações de empresas estatais, a flexibilização laboral e o início de processos de precarização do trabalho, deram um impulso decisivo a todas as políticas extrativistas e de entrega dos bens comuns naturais, etc.
5. É claro que, nos momentos de “paz social” incentivados por uma bonança econômica, o Estado se nos apresenta como algo muito mais do que um grupo de homens armados, como teorizou Althusser com os diversos “aparelhos ideológicos”; no entanto, nos momentos de extrema crise, em momentos em que revolução e contrarrevolução se veem frente a frente, o Estado se reduz a isso. Todos os outros “aparelhos ideológicos” sem isso são quase nada.
6. Durante esses anos, poderia-se definir a situação do regime político como a de um “regime partido”, já que tínhamos uma situação em que, no ocidente, o MAS gozava de legitimidade e legalidade, mas no oriente do país, na chamada meia-lua daqueles anos, a direita oligárquica contava da mesma maneira com legalidade e legitimidade regionais, incentivando as possibilidades de faíscas de guerra civil entre agosto e outubro de 2008. Essa situação de regime partido se resolveu nas negociações de 21 de outubro de 2008, que habilitaram o referendo à nova Constituição.
7. Leon Trotsky, Classe Partido e Direção. Fragmento publicado de maneira póstuma em New International de 1940.
8. Meses antes desse ataque, ocorreu a greve geral impulsionada pela COB e pela FSTMB pela lei de pensões. A greve foi respondida com uma repressão feroz, com centenas de mineiros detidos, para finalmente ser aprovada com enormes desigualdades, como foi, por exemplo, a concessão aos militares de uma aposentadoria equivalente a 100% do salário.
9. Afirmamos esse caráter semicolonial devido à dramática dependência externa do país, mantendo e até agravando um modelo primário exportador, o que incentiva diversas frações da burguesia a se apoiarem em várias potências estrangeiras diante dos EUA, que vê com preocupação seu retrocesso em influência e negócios no cone sul.
10. V. I. Lenin Duas táticas da socialdemocracia na revolução democrática, julho de 1905. Link de acesso: https://www.marxists.org/espanol/lenin/obras/1900s/1905-vii.htm