Revista Casa Marx

Contos: Liberdade adiada e Forçadamente mulher, forçosamente mãe

Dina Salústio

Dina Salustio é o pseudônimo adotado por Bernardina de Oliveira Salústio, nasceu em Cabo Verde em 1957, é jornalista, escritora e professora. Os contos "Liberdade adiada" e "Forçadamente mulher, forçosamente mãe" foram publicados em sua primeira obra, o livro de contos Mornas Eram as Noites, publicado em 1994. Em 1998 publica o romance A Louca de Serrano que é considerada a primeira obra de ficção escrita por uma mulher em Cabo Verde.

Liberdade adiada

Sentia-se cansada. A barriga, as pernas a cabeça, o corpo todo era um enorme peso que lhe caía irremediavelmente em cima. Esperava que qualquer momento o coração lhe perfurasse o peito, lhe rasgasse a blusa.

Como seria o coração?

Teria mesmo aquela forma bonita dos postais coloridos?

Seriam todos os corações do mesmo formato?

…Será que as dores deformam os corações?

Pensou em atirar a lata de água ao chão, esparramar-se no liquido, encharcar-se, fazer-se lama, confundir-se com aqueles caminhos que durante anos e mais anos lhe comiam a sola dos pés, lhe queimavam as veias, lhe roubavam as forças.

Imaginou os filhos que aguardavam e já deviam estar acordados. Os filhos que ela odiava!

Aos vinte e três anos disseram-lhe que tinha o útero descaído. Bom seria se caísse de vez! Estava farta daquele bocado de si que ano após ano, enchia, inchava, desenchia e lhe atirava para os braços e para os cuidados mais um pedacinho de gente.

Não. Não voltaria para casa.

O barranco olhava-a, boca aberta, num sorriso irresistível, convidando-a para o encontro final.

Conhecia aquele tipo de sorriso e não tinha boas recordações dos tempos que vinham depois. Mas um dia havia de o eternizar. E se fosse agora, no instante que madrugava? A lata e ela, para sempre, juntas no sorriso do barranco.

Gostava da sua lata de carregar água. Tratava-a bem. Ás vezes, em momentos de raiva ou simplesmente indefinidos, areava-a uma, dez, mil vezes, até que ficava a luzir e a cólera, ou a indefinição se perdiam no brilho prateado. Com fundo de madeira que tivera que lhe mandar colocar, quando começou a espirrar água e já não suportava uma torcida de farrapo, ficou mais pesada, mas não eram daí os seus tormentos.

Atirar-se-ía pelo barranco abaixo. Não perdia nada. Alías nunca perdeu nada. Nunca teve nada para perder.

Disseram-lhe que tinha perdido a virgindade, mas nunca chegou a saber o que aquilo era.

À borda do barranco, com lata de àgua à cabeça e a saia batida pelo vento, pensou nos filhos e levou as mãos no peito.

O que tinha a ver os filhos com o coração? Os filhos…Como ela os amava, Nossenhor!

Apressou-se a ir ao encontro deles. O mais novito devia estar a chamar por ela. Correu deixando o barranco e o sonho de liberdade para trás.

Quando a encontrei na praia, ela esperando a pesca, eu atrás de outros desejos, contou-me aquele pedaço da sua vida, em resposta ao meu comentário de como seria bom montar numa onda e partir rumo a outros destinos, a outros desertos, a outros natais.

 

*****

Forçadamente mulher, forçosamente mãe

Dina Salústio (1994)

Em Setembro fará calor, para Setembro Paula terá sue filho. Ainda há dias ela ria e dançava pelos cantos. E juntava conchinhas cor de rosa na praia. E colecionava sonhos. Que é das conchinhas? Que é dos sonhos? Hoje carrega pesadamente uma barriga enorme.

Sozinha.

E as ilusões vão-se perdendo nos vômitos da gravidez.

Aos dezasseis anos não se devia ter filhos. A Natureza não soube fazer contas. Aos dezasseis anos não se devia carregar culpas. Nem vergonhas.

Paula perdeu o olhar meigo e livre de adolescente. Agora apenas um rostinho triste e resignado, que de longe em longe se abre, quando gargalhadas de meninas como ela despertam o resto de menina que ainda existe.

E chora às escondidas. E faz contas à vida e às luas.

Queria vê-la com raiva. Revoltada. Decidida. Mas por Deus aos dezasseis anos quem pode ter essa força toda? Quem pode estar tão armado?

Queria que ela e todas elas se juntassem e calassem para sempre os latidos daqueles que perseguem manhosamente as nossas meninas na quietude das noites. Com seu ódio. E que os desfizessem com as suas mãos de mães abandonadas.E os afogassem impiedosamente nas lágrimas de todas as crianças traídas. E esfomeadas.

Mas Paula chora às escondidas. E tem esperança. Ainda. Porque a esperança dos dezasseis anos é a última coisa a deixar-se ir. Mas secará com o primeiro leite do primeiro filho. Secará como os sonhos da adolescente forçadamente mulher. Forçadamente mãe. Para Setembro haverá calor.

Notas

*Imagem do texto: Família congolesa deixa a cidade de Kimbumba para fugir da violência que se instaura gradativamente no país africano. (Foto: Agência EFE) 2012

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