Revista Casa Marx

 República Democrática do Congo: um capítulo de sangue da história do capitalismo

Marcello Pablito

Em junho de 2020 estátuas do rei belga Leopoldo II foram arrancadas por manifestantes da Antuérpia, no norte da Bélgica, como parte dos protestos internacionais que tomaram diversos países do mundo a partir do maior levante anti-racista da história dos Estados Unidos em resposta ao brutal assassinato de George Floyd por um policial. No mesmo ano, em Bristol, na Inglaterra, manifestantes derrubaram a estátua do traficante de escravos Edward Colston e a jogaram no rio da cidade. Eram sinais do impacto internacional da luta anti-racista e da revolta contra símbolos do colonialismo e do racismo que permanecem de pé na Europa. Dois anos depois, ironicamente o rei Philippe, da Bélgica, devolveria uma máscara tradicional à República Democrática do Congo (RDC) em sua primeira visita à ex-colônia belga como um suposto gesto de “pedido de desculpas” diante da indignação com o passado colonialista que deixou como marca um genocídio de mais de 10 milhões de congoleses mortos e outros milhões de pessoas amputadas e emigradas do país. Tentaremos pincelar alguns dos motivos que produziram esse capítulo de sangue da história do capitalismo que teve palco na República Democrática do Congo.

Mesmo condenado pela primeira vez na história por crimes contra a humanidade pelo Tribunal de Apelação de Bruxelas, o genocídio praticado pelo Estado belga, no reinado de Leopoldo II é bastante desconhecido. Leopoldo II foi rei da Bélgica no período de 1865 a 1909, fundador e único proprietário do chamado Estado Livre do Congo (no período de 1885 a 1908). Nesse território apenas entre 1880 e 1920, estima-se por diversas fontes que ao menos 10 milhões de congoleses foram mortos (cerca de metade da população do país na época) em nome do colonialismo capitalista que se fundamentava nas teorias racistas para uma exploração em escala inédita dos recursos naturais congoleses. Este dado, extremamente chocante por si só, revela como o racismo e o colonialismo capitalista estiveram entrelaçados a serviço de um dos capítulos mais bárbaros, repugnantes e lucrativos da história do capitalismo.

Como bem definiria Eric Willians em seu livro Capitalismo e Escravidão, a escravização moderna de milhões de africanos, teve no racismo uma base ideológica fundamental para justificar o tráfico de escravos e sua utilização em larga escala nas plantations como mão de obra compulsória, o que se transformou em um negócio altamente lucrativo e produtivo cumprindo um papel muito importante para que o capitalismo pudesse se desenvolver do período de acumulação primitiva à Revolução Industrial.

No O Capital, Marx chamaria atenção para o papel que o tráfico de escravos e o trabalho escravo nas Américas haviam desempenhado para o desenvolvimento do capitalismo:

“A descoberta de ouro e prata na América, a extirpação, a escravização e o sepultamento em minas da população indígena daquele continente, o início da conquista e do saque da Índia e a transformação da África numa reserva de caça comercial aos negros são fenômenos que caracterizam a aurora da era da produção capitalista. Estes acontecimentos idílicos são os principais momentos da acumulação primitiva.”(Marx apud Blackburn, 2003) 1

Deste modo, para o desenvolvimento capitalista da Europa a brutal espoliação das riquezas do continente africano foi um fator fundamental. A acumulação primitiva significou o afogamento de populações inteiras na barbárie e na fome, esmagando seus riquíssimos legados culturais, econômicos e sociais. Assim, a responsabilidade do subdesenvolvimento do continente africano não se explica por incapacidade da população autóctone, pelo contrário, a atual situação do continente é resultado da espoliação dos países imperialistas europeus, como aponta Walter Rodney:

“No entanto, pode-se afirmar que, sem reservas, o racismo branco que passou a permear o mundo era parte integrante do modo de produção capitalista. Não era meramente uma questão de como o indivíduo branco tratava uma pessoa negra. O racismo da Europa era um conjunto de generalizações e suposições que não tinham base científica, mas eram racionalizadas em todas as esferas, da teologia à biologia. Às vezes, afirma-se erroneamente que os europeus escravizaram os africanos por motivos racistas. Proprietários de terras e minas europeus escravizaram pessoas africanas por motivos econômicos, de modo que o trabalho delas pudesse ser explorado. Na verdade, teria sido impossível desbravar o Novo Mundo e usá-lo como constante produtor de riqueza não fosse a mão de obra africana. Não havia alternativa: a população das Américas (indígena) havia sido praticamente eliminada, e a população da Europa era muito pequena na época para povoamentos no exterior. Então, tendo se tornado completamente dependentes do trabalho africano dentro e fora da Europa, os europeus consideraram necessário racionalizar essa exploração também em termos racistas. A opressão decorre logicamente da exploração, a fim de garanti-la. A opressão dos povos africanos a partir de bases integralmente raciais acompanhou e fortaleceu a opressão por razões econômicas, dela se tornando indistinguível (…) O colonialismo tinha uma única mão – era um bandido de um braço só. (…). A verdadeira situação pode ser exposta corretamente nos seguintes termos: os trabalhadores e os camponeses africanos produziram bens e serviços de um determinado valor para o capitalismo europeu. Uma pequena proporção dos frutos dos seus esforços eram retidos por eles sob a forma de salários, pagamentos em dinheiro e serviços sociais extremamente limitados. Tais medidas eram essenciais para a manutenção do colonialismo. O resto destinava-se aos variadíssimos beneficiários do sistema colonial. Não pode haver dúvidas quanto aos dados que possuímos e que nos permitem demonstrar cabalmente que na maior parte dos casos o colonialismo teve como fim o desenvolvimento das metrópoles, deixando umas escassas migalhas nas colônias, resultantes da grande exploração do território africano.”2

Dito de outra forma, parte importante do que permitiu que vários países como França, Inglaterra, Holanda, Alemanha, a própria Bélgica entre outras se tornassem potencias econômicas (a ponto de hoje a Bélgica alcançar o 17º maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do planeta), foi justamente a exploração inédita, irrestrita de continentes inteiros, bem como a subordinação e espoliação desses territórios através de guerras e do genocídio que levou a fome e a miséria a países africanos como a República Democrática do Congo (segundo dados do Índice de Desenvolvimento Humano ( IDH ) das Nações Unidas de 2023, a República Democrática do Congo está classificada em 180º lugar entre 193 países listados.).

A terrível realidade de um país em que atualmente dos 117,8 milhões de habitantes, 31 milhões de pessoas vivem abaixo da linha de pobreza, além de taxas elevadas de mortalidade infantil com 43% das crianças com menos de cinco anos sofrendo com subnutrição e as mulheres submetidas à mais bárbara escravidão sexual. Segundo dados do Banco Mundial em 2024 a República Democrática do Congo estava entre as cinco nações mais pobres do mundo e 73,5% dos congoleses viviam com menos de US$ 2,15 por dia sendo que uma de cada seis pessoas em extrema pobreza em toda a África Subsaariana vive na República Democrática do Congo. Enquanto isso, dois terços da riqueza do mundo são acumulados por 1% da população mundial (entre eles o empresário belga Eric Wittouck3) que detém sozinhos a mesma riqueza que 95% da humanidade. A produção de alimentos atualmente é suficiente para alimentar mais de duas vezes toda a população global, mas dados da própria ONU revelam que um bilhão de toneladas de alimentos são jogados no lixo a cada ano no mundo (quase 20% dos alimentos à disposição dos habitantes do globo). Isso não é uma obra do acaso ou da “natureza dos povos africanos”, foi um legado deixado pelas potências imperialistas, pelo capitalismo e o racismo.

A Conferência de Berlim e o “Fardo do homem branco” uma história escrita com ouro e sangue

Todas as principais potências europeias arrancaram uma parte do espólio da colonização do continente africano mas o caso da Bélgica, Reino Unido e França são os mais chamativos (estas duas últimas repartiram entre si as maiores extensões de território africano com a França dominando a África Ocidental e o Reino Unido grande parte da África Oriental).

A região do Congo foi um dos centros da disputa imperialista na segunda metade do século XIX uma vez que além da Bélgica, Portugal, Espanha e França disputavam a região que já significava uma área enorme. O que hoje é reconhecido como República Democrática do Congo (também conhecido como Congo-Kinshasa ou Zaire Congo4) é um território localizado na região central da África, sendo atualmente o segundo maior país do continente africano com uma área de 2.345.409 Km², além de fazer fronteira com 9 países da região, um país de grande diversidade étnica, com mais de duzentos grupos étnicos e linguísticos. A República Democrática do Congo foi fundada a partir do que foi o Estado Livre do Congo, equivalente a 76 vezes o tamanho da Bélgica. O domínio belga sobre o Congo foi definido a partir da Conferência de Berlim de 1884-1885, quando potências europeias acordaram entre si o que ficou conhecido como partilha da África. Na Conferência de Berlim seriam definidos os acordos que iriam reger a ocupação do território africano, e que, posteriormente, configurariam as fronteiras internas do continente com base de forma totalmente arbitrária e sem levar em conta a heterogeneidade cultural e étnica entre os povos que iam sendo divididos de acordo com as determinações dos colonizadores.

A Conferência de Berlim foi organizada por Otto von Bismarck, chanceler do Império Alemão na época e contou com a participação de 13 países europeus (Alemanha, Áustria-Hungria, Bélgica, Dinamarca, Espanha, França, Grã-Bretanha, Itália, Noruega, Países Baixos, Portugal, Rússia e Suécia), mas também do Império Otomano e dos Estados Unidos. Já em 1876, o rei Leopoldo II da Bélgica organizaria a Conferência Geográfica de Bruxelas para a qual foram convidados quase quarenta especialistas renomados, formados principalmente em ciências geográficas além de figuras da filantropia de vários países europeus que fundaram a Associação Internacional Africana (AIA), uma suposta associação científica e “humanitária” presidida pelo próprio Leopoldo II e que passaria a reunir exploradores, geógrafos e missionários sob o pretexto de “civilizar” e melhorar a vida dos africanos.

Aqui vale mencionar que, se após a abolição da escravidão nas Américas, na segunda metade do século XIX, ao contrário de arrefecer, o racismo ganhou novos contornos que se propunham a justificar uma suposta inferioridade dos negros recém-libertos e, ao mesmo tempo, servir como fundamentação para a divisão da classe trabalhadora internacionalmente e seria uma fundamentação essencial para justificar a colonização do continente africano. Já no início do século XVIII se desenvolveram teorias que tentariam dar uma fundamentação “científica” para justificar uma hierarquização entre as raças e a suposta superioridade política, econômica e cultural da Europa em relação aos africanos e aos povos que habitavam regiões de climas tropicais, supostamente considerados inferiores, incapazes de evoluir no meio político, social e econômico.

O conceito de raça vai aparecer justamente como parte do vocabulário e conceitos da história das ciências naturais como um conceito usado inicialmente na Zoologia e na Botânica para classificar as espécies animais e vegetais. O naturalista sueco Carl Von Linné, usou o conceito de raça para classificar as plantas em 24 raças ou classes e, posteriormente estendendo aos seres humanos. A partir da classificação da espécie humana como Homo sapiens, estabeleceu uma diferenciação da espécie em raças, classificando os seres humanos de acordo com a origem e cor da pele. Na classificação de Linné ficaria explícito a associação intrínseca entre características físicas, biológicos e qualidades morais, psicológicas, intelectuais e culturais e uma hierarquização das chamadas raças em superiores e inferiores. Contemporâneo de Linné, Buffon também contribuiria para a afirmação da explicação das variações físicas e de costumes das diversas populações humanas a partir do clima, da Europa como o centro do mundo e a superioridade racial em relação aos povos americanos e africanos.Em 1775 Johann Friedrich Blumenbach publicaria seu livro A variedade nativa da raça humana para defender a tese de que se poderia definir as diferenças das raças humanas a partir da analise do volume do crânio. Outros autores desenvolveriam as teorias “científicas” do racismo. É marcante a elaboração de Joseph Arthur de Gobineau que publicaria em 1855 seu livro intitulado Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas que se tornaria um marco para as “teorias raciais” vigentes no século XIX onde defendia claramente a superioridade da “raça branca” (caucasoide) como tendo sido o elemento fundamental para o desenvolvimento das maiores civilizações humanas. Em sua visão, o “homem branco” era naturalmente dotado de intelecto superior, se comparado ao “homem amarelo, pardo e negro”, os quais ele os identificava como sendo fruto de outras raças humanas. Gobineau será uma base fundamental para todos os autores que defenderam a miscigenação como uma fonte de degeneração do homem e compartilharia com autores como o médico Césare Lombroso a tese da propensão natural de determinados grupos (como os negros) à criminalidade e à delinquência.

A ideia do “Fardo do Homem Branco” surge no final do século XIX como um desenvolvimento da ideia de hierarquização racial e do papel civilizador que fundamentaria o imperialismo europeu. a expressão faz menção direta ao poema de Rudyard Kipling, “The White Man’s Burden” (O Fardo do Homem Branco), uma verdadeira apologia e glorificação do colonialismo. Essa ideia justificaria o colonialismo ao defender que a raça branca tinha a missão moral de civilizar, educar e “guiar” os povos não brancos que seriam “atrasados”, “primitivos”, “selvagens”, “propensos naturalmente ao crime e à delinquência” e associados à ideia de “crianças”5. A idéia de que a missão civilizadora sobre as populações não brancas submetidas aos impérios coloniais era o fardo do homem branco se apoiava largamente nas teorias raciais que se espalharam no campo científico europeu e norte–americano na virada do século XIX para o século XX.

Um dos discursos simbólicos do olhar europeu sobre o povo africano e o processo de colonização é o de Karl Peters, colonizador alemão conhecido como (“o enforcador” e “o homem que tinha sangue nas mãos”) ao se referir aos negros africanos por volta de 1880:

“Eu tenho repetido que a população africana é dotada pela natureza de força muscular muito resistente, estando apta e exercer trabalho braçal como nenhum outro povo do mundo (…) Mas se nós temos a obrigação de servir ao Estado, porque não prever as subespécies alguns deveres, porque desaprovar isso, se elas há mil anos anos se acostumaram ao trabalho e foram predestinadas ao trabalho braçal? Como tratar os negros do jeito que os fanáticos por negros querem, se os negros mesmo se deixam tiranizar por déspotas?(…) Como aos pretos, que são moral e racialmente inferiores, sejam e eles dadas certas vantagens? (…) (…) Não é possível empregar força militar na África usando os africanos. Os negros não tem coragem moral. Sua coragem física também é fraca. Eles só se encorajam ao som de seus gritos e seus tambores. (…) São cheios de bestialidade e brutalidade, são sanguinários. Indiferença com respeito a dor do outro também (…) é característica desta raça. Ele é escravo nato que precisa de seu déspota como um viciado em ópio precisa de seu cachimbo. É mentiroso, ladrão, falso e pérfido (…).6

O racismo serviu assim como justificativa ideológica fundamental para o domínio colonialista, a conquista e subjugação de povos não-europeus tratado não como uma das maiores atrocidades já provocadas pelo capitalismo, mas como parte de uma missão civilizadora, ligada aos valores do progresso econômico, do avanço científico, da ordem política liberal e do cristianismo.

Coerentemente com esse sentido é possível ver na própria Ata Geral da Conferência de Berlim como se apresenta os objetivos da partilha da África:

Querendo regular num espírito de boa compreensão mútua as condições mais favoráveis ao desenvolvimento do comércio e da civilização em certas regiões da África, e assegurar a todos os povos as vantagens da livre navegação sobre os dois principais rios africanos que se lançam no Oceano Atlântico (…) e preocupados ao mesmo tempo com os meios de crescimentos do bem-estar moral e material das populações aborígines, resolveram sob convite que lhes enviou o Governo Imperial Alemão, em concordância com o Governo da República Francesa, reunir para este fim uma Conferência em Berlim (…) (grifo nosso).7

Mapa da África anterior à Conferência de Berlim

Mapa da África depois da Conferência de Berlim

Em um cartaz a França, é representada em uma imagem semelhante à Estátua da Liberdade norte-americana que é recebida pelas colônias francesas. Em seu escudo lê-se o escrito: “progresso”, “civilização” e “comércio”. Ilustração de G. Dasher, 1900

 

As consequências do “projeto civilizador” europeu na República Democrática do Congo

Em um de seus textos sobre a República Democrática do Congo8, o pesquisador congolês e professor emérito da USP Kabengele Munanga dá um panorama do que significou a colonização belga para essa população africana:

O efeito mais imediato dessas numerosas agressões se manifestou por uma baixa na demografia. Diversas estimativas foram feitas para avaliar o povoamento no período (…) o número mais realista seria talvez a média que pode ser calculada a partir das diversas tentativas de contagem feitas sobre esse período. Com base nessa média, estima-se que o Congo de 1880 tinha uma população global de 25 milhões de habitantes (MASSOZ, 1988:575, ap. NDAYWEL, ibid.). Qual foi o nível de povoamento no decorrer dos anos que se seguiram, mais particularmente na década seguinte? Sabe-se que por volta dos anos 1925-26, a população era um pouco mais de 10 milhões de habitantes; esse número é obtido com base nos documentos de recenseamento administrativo daqueles anos, ajustados em 1953 e corrigidos em 1987. (…) Era preciso esperar 1975 para que o Congo recuperasse o número da população que tinha por volta de 1880 (SAINT MOULIN, 1987:390-91, ap. NDAYWEL, ibid.). Isto significa que entre 1880 e 1908, cerca de 13 milhões de vidas humanas foram sacrificadas. (ver NDAYWEL, 1998) (grifo nosso).

(…) A maior hecatombe, a página mais triste e sangrenta da história do Estado Independente do Congo foi causada pela colheita da borracha. Na realidade, a colheita da borracha era apenas a consequência da lógica implacável do sistema econômico leopoldiano. O Estado havia se declarado o proprietário das terras vacantes. Ora, os produtos mais lucrativos como o marfim e principalmente a borracha se encontravam essencialmente nessas terras. Assim pertencia exclusivamente ao Estado a borracha que fosse colhida nessas terras vacantes, que aliás ocupavam a maior parte do território. A partir de 1891-92, o Estado começou a colher sua borracha usando a mão de obra autóctone a titulo de imposto pago pelo trabalho. Os agentes do Estado eram encarregados de vigiar os trabalhos de colheita. (…) Para obter as prestações desejadas, os agentes do Estado dispunham de toda uma gama de meios de constrangimento e repressão: eles podiam vigiar as aldeias por soldados colocados à disposição no local; podiam usar o chicote ou tomar como reféns os familiares dos fugitivos, ou ainda organizar expedições punitivas. O crime da administração leopoldiana foi matar e fazer matar pessoas cujo único “erro” tinha sido a incapacidade de atingir a quantia da colheita desejada. As atrocidades cometidas foram objeto de diversas testemunhas desde 1895. Os fuzilamentos, enforcamentos e mutilações de membros eram corriqueiros. Não se mutilavam apenas os mortos, mas também os vivos. O número de mãos mutiladas servia como troféu e signo de bravura. (…) (Munanga, 2007,  p.07-08. grifo nosso)

     

Saque de marfins e das riquezas naturais pelos colonizadores belgas no Congo

Mongala, Mola Ekuliti e Biasia, vítimas de amputações e mutilações do colonialismo belga. Sem ano. Sem autoria.

Congolês olha para a mão e pé de sua filha de cinco anos Nsala de Wala, morta e esquartejada pelos colonizadores belgas depois de descumprimento da meta de produção.

É possível nomear inúmeras manifestações de resistência à dominação colonial no continente africano como a resistência do povo argelino contra a dominação francesa entre os anos de 1834 e 1847, no Sudão, Egito, Somália na segunda metade do século XIX, a Rebelião Ashanti na Costa do Ouro (atual Gana) de 1890 a 1900, o levante Maji-Maji entre 1905 e 1907 na região da África Oriental contra a dominação alemã, as revoltas constantes na República Democrática do Congo (naquele momento Estado Livre do Congo9) entre muitos outros exemplos. Apesar de toda resistência, o século XIX vai marcar uma verdadeira inflexão e um salto enorme na entrada e na dominação territorial do continente africano. A própria fundação da Associação Internacional Africana, coincide com o período em que a Bélgica avançaria de forma mais decidida na exploração sistemática da região da África Central. Vale lembrar ainda que a Igreja cumpriu um papel importante ao imperialismo no continente africano de modo que as potências europeias também justificaram sua dominação ligada ao propósito de levar o cristianismo aos povos africanos. Tanto católicos quanto protestantes realizaram missões evangelizadoras que se tornaram um meio de legitimar a imposição da cultura europeia na África.

Após a Segunda Guerra Mundial, depois de muitas batalhas heroicas das massas africanas muitos países arrancaram suas independências políticas formalmente, mas mantiveram níveis enormes de desigualdade social e uma enorme subordinação econômica e política às potências capitalistas.

No caso da República Democrática do Congo, obteve sua independência política formal da Bélgica em 1960, no entanto a Bélgica seguiria impondo seu domínio sobre a RDC e ingerindo politicamente sobre o país impondo uma dívida externa altíssima já no momento do reconhecimento da independência. Um dos símbolos dessa ingerência imperialista foi a intervenção belga já em 1960 e a conspiração articulada entre Mobutu, a Bélgica com o apoio dos EUA, Reino Unido que resultou no assassinato de Patrice Lumumba, um dos maiores expoentes da luta pela independência da República Democrática do Congo em janeiro de 1961. Vale lembrar ainda que a ditadura de Mobutu que governou o país de 1965 a 1997 era apoiada diretamente por Bélgica, França, Alemanha e Estados Unidos.

 

A herança colonialista, os distintos interesses capitalistas na subordinação do continente africano e a necessidade de uma saída revolucionária

Atualmente a região da República Democrática do Congo detém reservas estimadas em 24 trilhões de dólares em ouro, diamante, cobalto, cobre e tantalita (metal utilizado nas aplicações na indústria eletrônica, de vidro e ligas metálicas). No período de dominação leopoldiana o Congo foi alvo de enorme extração de marfim, látex (destinada à produção de borracha utilizada na fabricação de pneus pela indústria automobilística) além de outras riquezas. Para aumentar os ganhos com a exploração da borracha e dos demais recursos naturais do Congo, o Leopoldo II ordenou o confisco das terras dos nativos, instituiu o uso de mão de obra escrava e autorizou o assassinato, amputação de mãos e pés dos nativos que se recusassem a realizar trabalho forçado ou não atingissem as metas de extração.

 

Imagens das mutilações provocadas pelos colonizadores belgas no Congo

 

Até 1958 a Bélgica manteve o último zoológico humano do mundo em funcionamento.

Em um cenário internacional marcado pela decadência da hegemonia norte-americana, pelo aumento das rivalidades interimperialistas, guerras como a da Ucrânia, o brutal genocídio contra o povo palestino e a sede incessante de lucros capitalista, os interesses imperialistas no continente africano seguem sendo muito importantes. De acordo com a consultoria McKinsey, o continente africano reúne 60% das áreas cultiváveis do planeta e a população que mais cresce no mundo, o que irá criar um mercado consumidor de quase 5,5 trilhões de dólares em 2030. É nesse mesmo sentido que o empresário Jorge Paulo Lemann reconhece que a África é uma das regiões que oferecerá um importante espaço para empresas do setor de consumo. Pesquisas de organismos da ONU, FMI e Banco Mundial reconhecem que a África é rica em recursos naturais renováveis e não renováveis, terras aráveis, água, petróleo, gás natural, minerais e florestas e biomas. Segundo a ONU

A África abriga cerca de 30% das reservas minerais do mundo, 8% do gás natural e 12% das reservas mundiais de petróleo. O continente possui 40% do ouro mundial e até 90% do cromo e da platina. As maiores reservas de cobalto, diamantes, platina e urânio do mundo estão na África. O continente detém 65% das terras aráveis do mundo e 10% das fontes internas de água doce renovável do planeta.Na maioria dos países africanos, o capital natural representa entre 30% e 50% da riqueza total.10

Em 2023 o Diretor-Geral Adjunto do Banco Africano de Desenvolvimento para a África Central, Solomane Koné ressaltava a importância dos recursos naturais em países como a República Democrática do Congo e do solo congolês para a extração de minerais como ouro e diamante e minerais de alto valor para a indústria tecnológica como é o caso do cobalto e coltan, utilizados na produção de smartphones e carros elétricos. A República Democrática do Congo é conhecida pelas suas riquezas naturais como suas reservas hídricas, suas florestas e os minérios (entre as jazidas mais relevantes estão o cobalto, o diamante, o urânio, o cobre, o manganês, o estanho, o ouro, a bauxita, a prata, a platina, o chumbo, o zinco, o carvão e o petróleo). Segundo Kabenguele Munanga

Nos anos de 1958-59, véspera da independência, a produção mineral congolês chegou a ocupar as seguintes posições no mercado mundial capitalista: o cobalto ocupou a primeira posição com 63% da produção mundial em 1959; o diamante a segunda posição, com 75% de todos os diamantes industriais do mundo não comunista e 15% dos diamantes brilhantes; o cobre representou 8,3% da produção; o zinco, 4,3% e o ouro, 1,3%. O cobalto usado pela indústria aeronáutica e espacial dos Estados Unidos vem em sua maior parte da RDC. O Congo está também na lista dos dez maiores do 2 mundo em urânio, cobre, manganês e estanho (ZIÉGLER, 1964, op.cit.; Guia do Terceiro Mundo, 1986: 456-458).(Munanga, 2007, p.2-3)

Observando o cenário internacional e a importância que esses ativos econômicos, mas também a relevância geopolítica de regiões da África é possível entender o avanço nos investimentos estrangeiros no continente africano. Ainda que, exista desigualdade na distribuição entre os próprios países africanos (com alguns concentrando um percentual importante dos investimentos estrangeiros) e com oscilações em cada período (como o da pandemia em que se registrou uma queda de 16% no Investimento Estrangeiro Direto (IED) para o continente), isso não anula a movimentação de capitais de diversos países em direção ao continente africano, buscando se aproveitar de seus recursos naturais e da possibilidade de exploração da mão de obra africana.

A grande concentração de recursos naturais em uma economia capitalista sedenta pela espoliação de suas riquezas e uma localização na divisão internacional do trabalho extremamente dependente da exportação de matérias-primas impacta decisivamente na economia de diversos países africanos que terminam ficando muito vulneráveis a flutuações de preços e às crises econômicas. As consequências são previstas pelas potências capitalistas que em nome da “estabilização” ingerem politicamente e militarmente em vários países. Em relatório do FMI de 2022, tratavam da intensificação das “chances de agitação social” em decorrência do aumento do preço dos alimentos, aumento das taxas de desnutrição, fome e pobreza, sobretudo na África Subsaariana gerada pela Guerra da Ucrânia.

No meio das disputas capitalistas, não é por acaso que no golpe de Estado ocorrido no Níger a bandeira da Rússia apareceu com frequência em alguns dos protestos que tomaram as ruas de cidades do país, bem como figuras como Ibrahim Traoré anunciando publicamente as múltiplas relações com a Rússia. Tampouco é um mero detalhe a posição de muitos países africanos em não condenar na ONU a invasão russa na Ucrânia (apenas a Eritreia foi contra). Durante o período de descolonização, a partir da década de 1950, a então URSS estreitou laços com vários países africanos e ofereceu apoio em sua luta pela independência. Já durante a Guerra Fria, Moscou treinou muitos líderes e elites africanas.

Muitos países no continente africano dependem da Rússia e da Ucrânia para a importações de produtos ligados à agricultura, como trigo, fertilizantes e óleos vegetais. A Rússia vem ampliando sua influência econômica e política no continente africano, vista como uma suposta alternativa às potências ocidentais, sobretudo pelo descontentamento com o histórico de colonialismo de vários países europeus ocidentais. No entanto, ao contrário de qualquer preocupação com a emancipação dos países africanos, a Rússia e China têm mostrado interesse em explorar largamente os recursos naturais da África, como o urânio no Níger, ouro no Mali, entre outros. É nesse sentido que a Rússia vem investindo em projetos de energia nuclear na África e têm sido noticiadas na imprensa as diversas vias de apoio militar do governo russo a países africanos pela via do serviço de inteligência militar da Rússia em troca de acesso a recursos naturais estratégicos.

O Royal United Services Institute (RUSI), também divulgou em 2023 um relatório que detalha como o Grupo Wagner estaria trabalhando na África para consolidar e expandir a influência da Rússia em países considerados “politicamente instáveis” da África Central e do Sahel, incluindo a República Centro-Africana, Mali, Burkina Faso e Sudão. Segundo dados da ONU, em 2021, o Investimento Estrangeiro Direto (IED) na África atingiu um recorde de 83 bilhões de dólares, sendo a China um dos principais investidores (e o maior parceiro comercial e investidor na África) e tendo como principais destinos de investimento a República Democrática do Congo, a Zâmbia, o Quênia, a Etiópia e a África do Sul. Empresas de infraestrutura e mineração brasileiras como a Vale, Odebrecht, Camargo Correa e CSN, também têm aumentado seus investimentos na África, em áreas como mineração, cimento, finanças, agricultura e petróleo.

Como declarou Claudia Cinatti a respeito dos golpes de Estado que ocorreram em vários países da África Ocidental:

“A relação entre a miséria estrutural destes países saqueados com o passado e o presente neocolonial explica o profundo sentimento anti-francês que atravessa a África, sobretudo entre as gerações mais jovens. Por isso, embora os golpes não sejam “anticoloniais” (e muito menos “anti-imperialistas”), mas em grande parte motivados por disputas entre camarilhas pelo controle do aparato militar-estatal, eles tentam construir sua legitimidade ao incitar a retórica anti-francesa e mudança de lealdade para a China e a Rússia. Quem melhor expressou essa política foi o capitão Ibrahim Traoré, atual líder do governo interino de Burkina Faso após o golpe. Na cúpula de São Petersburgo, Traoré invocou a memória de Thomas Sankara, líder da luta anticolonial e referência do pan-africanismo. Em seu discurso, ele saudou a chegada de uma “ordem multipolar” e a aliança com “verdadeiros amigos” como a Rússia. O declínio hegemônico dos Estados Unidos e o surgimento de potências como China e Rússia que propõem uma “ordem multipolar” como alternativa se acelerou com a guerra na Ucrânia. Esta é a base de posições “campistas” que consideram que para se opor ao domínio imperialista dos Estados Unidos e da UE é necessário alinhar-se com a China e a Rússia. Mas este é um bloco capitalista igualmente reacionário que persegue seus interesses imperiais. Enquanto as potências ocidentais escondem seus objetivos imperialistas com a “defesa da democracia”, Putin usa a retórica “anti-colonial” para aumentar sua influência geopolítica em benefício do capitalismo russo. Mas tanto a Rússia quanto a China buscam saquear os recursos estratégicos da África, mesmo no caso da China impor condições leoninas como principal credor de muitos países africanos. No sentido inverso dos interesses dos trabalhadores, dos camponeses e dos povos oprimidos da África e do mundo.”

Uma herança direta do passado escravista e colonialista aos países do continente africano é a enorme dívida pública acumulada graças aos distintos mecanismos de subordinação econômica e política impostas pelas potências capitalistas através de instituições como o Banco Mundial e o FMI, o Clube de Paris, os credores privados e mais recentemente a China e a Rússia. As dívidas públicas são um mecanismo de saque e drenagem das riquezas nacionais para favorecer o capital financeiro do qual os principais beneficiários são justamente países que edificaram suas riquezas em base ao colonialismo e a espoliação das riquezas dos países africanos. Alguns estudos apontam que a dívida pública varia entre 30% e 50% do PIB na maioria dos países africanos. É uma hipocrisia e cinismo gigantesco quando vemos potências capitalistas que se beneficiam do endividamento imposto aos países africanos fazendo campanhas humanitárias quando são as promotoras de medidas que tem como consequência o aumento das desigualdades, a ampliação bárbara da fome, das mortes por doenças e inanição, a destruição ecológica e climática e a intensificação dos fluxos migratórios. Não é menos cínico que países que se arvoram grandes defensores da democracia sejam aqueles que sustentam durante décadas governos ditatoriais e grupos paramilitares que afogam em guerras intermináveis diversas regiões do continente africano em prol da exploração de seus recursos naturais e da mão de obra africana. São os mesmos que dão sustentação ao genocídio do povo palestino e que fecharam recentemente um pacto da União Européia contra os imigrantes aprovando medidas que aprofundam a militarização das fronteiras, e preveem a criação de centros de detenção fronteiriços e a aceleração dos processos de deportação.

A dívida externa no continente africano é um dos mecanismos de drenagem das riquezas africanas para banqueiros e empresários estrangeiros uma vez que grande parte dessa dívida é detida por uma combinação entre as dívidas aos chamados credores oficiais (potências capitalistas como França, Reino Unido, Estados Unidos em primeiro lugar seguidos de Alemanha, Bélgica, Itália, Espanha e Portugal e as chamadas instituições multilaterais como o Banco Mundial e o FMI), credores bilaterais (principalmente a China que vem assumindo um papel preponderante de credor a países africanos) e credores privados (bancos e empresas internacionais).As dívidas externas dos países africanos que, em 1970 era de US$ 5.24 bilhões, passando, em 1980, para US$ 48.79 bilhões, atingiram US$ 151.17 bilhões em 1991 (mais de 100% do PIB total do continente), 235 bilhões de dólares em 1995 e US$ 331 bilhões em 2012. Isso tudo contando que entre 1970 e 2012 os países africanos já haviam pago cerca de US$ 435 bilhões aos credores.11 As contrapartidas aos empréstimos e renegociações impostas pelo Banco Mundial e pelo FMI foram os chamados Programas de Ajustes Estruturais – SAPs) baseados nos princípios de ajustes neoliberais. Assim, a razão da pobreza na África, não está em nenhuma obra sobrenatural, mas se explica graças aos mecanismos como a dívida externa que, mesmo depois das independências dos países africanos, seguiram gerando e perpetuando a pobreza nesses países.

O caso do imigrante congolês Moise Kabagambe (morto a pauladas no RJ em 2022 por cobrar de seu patrão dois dias de trabalho não pagos), que saiu do seu país para vir ao Brasil revela muito sobre a situação atual da República Democrática do Congo e todo o passado colonialista que se impôs sobre o continente africano. A violência policial e opressão sofrida por imigrantes como Moise Kabagambe, Ngagne Mbaye, Talla Mbay e tantos outros tem suas raízes na opressão imperialista, dirigida contra os povos africanos, haitianos, e de diversos países latino-americanos que ao longo de sua história foram escravizados, colonizados, explorados e forçados a emigrar. Mesmo assim, as leis racistas e xenófobas na Europa, Estados Unidos e também no Brasil os consideram “ilegais”. É esse passado colonialista e sua herança que fizeram da RDC um dos países mais pobres do mundo que enfrentou a guerra civil até 2003.

A Primeira Guerra do Congo, de 1996 a 1997, foi um conflito civil e internacional que envolveu a RDC (então Zaire), Ruanda e outros países. Iniciada após o genocídio de Ruanda em 1994, o conflito envolvia grupos rebeldes apoiados por Ruanda e Uganda, lutando contra o governo do Zaire O conflito terminou com a queda de Mobutu Sese Seko, o presidente do Zaire, e o estabelecimento de Laurent-Désiré Kabila como novo presidente da RDC. A Segunda Guerra do Congo, também conhecida como a Guerra Mundial africana, iniciou em 1998 e durou até 2003, envolvendo diversos grupos armados e países vizinhos. De um lado, estavam o governo da RDC, Angola, Zimbábue e Namíbia. Do outro, os rebeldes da RDC, apoiados por Uganda, Ruanda e Burundi. O confronto ficou conhecido como a “Guerra Mundial da África”. Apenas no período da Segunda Guerra do Congo cerca de 3,8 milhões de pessoas morreram, a maioria de inanição e doenças. De acordo com uma reportagem do jornal The Washington Post de 2007 no Congo seguiram ocorrendo incontáveis atrocidades sexuais contra as mulheres congolesas incluindo escravidão sexual, incesto forçado e canibalismo. Em 2008 uma reportagem do jornal The Guardian noticiava que na República Democrática do Congo 45 mil pessoas morriam por mês em decorrência dos conflitos, fome e doenças. Apenas entre os anos de 2017 e 2019, mais de 5 milhões de pessoas se deslocaram internamente no país, sem contar as centenas de milhares, que fugiram para nações vizinhas, como Angola e Zâmbia, principalmente.

Depois dos acordos para o encerramento provisório dos conflitos no início dos anos 2000 a República Democrática do Congo continuou sendo palco de conflitos internos com a participação e influência de potências como a China. Como pano de fundo se colocam os interesses e disputas internacionais, sobretudo entre EUA e China pelo acesso a matérias primas na República Democrática do Congo. Durante os anos de governo de Trump e Obama a China passou a controlar a maioria das minas estrangeiras de cobalto, urânio e cobre na RDC. O conflito entre o governo da República Democrática do Congo, apoiado desde 2013 pela MONUSCO (Missão de Estabilização da Organização das Nações Unidas na RDC) e o M23 (Movimento 23 de Março), composto essencialmente por tutsis, tem como pano de fundo o controle americano e chinês de regiões de importantíssimas fontes de minério). Ocorre que o governo congolês vem utilizando armamento e drones chineses para combater o M23 e, portanto, não é uma mera coincidência, que o exército congolês tem sido mobilizado recorrentemente para proteger áreas de mineração controladas pela China.

Para termos uma dimensão atual do que significa o controle de regiões da RDC a insuspeita Internacional Trade Administration dos Estados Unidos recentemente publicou que:

“A RDC possui reservas substanciais inexploradas de ouro, cobalto e cobre de alta qualidade, mas também apresenta riscos de segurança significativos, acentuados pela falta de infraestrutura robusta. O cobalto, um dos metais essenciais para a produção de veículos elétricos, coloca a RDC em uma posição estratégica para a transição energética. Em 2022, a RDC foi a maior mineradora de cobalto do mundo, com uma produção de 130.000 toneladas, ou quase 68% do cobalto mundial. A RDC foi a quarta maior produtora de diamantes industriais em 2022, com uma produção de 4,3 milhões de quilates. A RDC possui depósitos de lítio de importância global. Não há minas de lítio ativas na RDC em 2022, mas vários projetos estão em desenvolvimento. Os depósitos de lítio incluem a mina Manono-Kitolo, que anteriormente produzia estanho e coltan até seu fechamento no final de 1982.

O país possui algumas das reservas de cobre de mais alta qualidade do mundo, com algumas das minas contendo teores estimados acima de 3%, significativamente acima da média global de 0,6% a 0,8%. Atraídas por minas de alto teor e baixo custo, as mineradoras internacionais estão cada vez mais se voltando para o cinturão de cobre da RDC, no sul do país. O setor de mineração de ouro da RDC também está testemunhando um interesse renovado das mineradoras. Em 2021, a produção de recursos minerais aumentou de 10.000 toneladas para quase 1 milhão. O setor de mineração congolês está a caminho de manter o mesmo nível de produção de seus principais metais este ano e apresentar um desempenho ainda melhor do que no ano passado para o cobre, apesar dos choques negativos sem precedentes causados pela pandemia de Covid-19.”12

A passagem do século XIX para o século XX marcou uma importante mudança do capitalismo para sua etapa imperialista, marcada por crises, guerras e revoluções como apontou Lênin. O colonialismo foi parte fundamental do que permitiu às potencias imperialistas acumularem suas riquezas, mas como a sede de lucros é imparável as disputas econômicas se tornariam mais agudas e intensas explodindo na I Guerra Mundial. Essa nova época colocou a relação de interdependência entre os países mundialmente ainda mais na ordem do dia abrindo também a perspectiva de que países coloniais e semicoloniais pudessem se colocar a perspectiva de arrancar não apenas sua independência política e soberania nacionais e acabar com ingerência e imperialista através da revolução socialista e não através do apoio à distintas variantes burguesas nacionais.

Como viemos apontando, a dinâmica na situação internacional se acelerou sobretudo depois da crise capitalista de 2008. Nos últimos dois anos observamos a reatualização da definição de que vivemos em uma época de crises, guerras e revoluções como podemos observar em alguns elementos centrais da situação internacional como a invasão contínua da Ucrânia pela Rússia, o genocídio perpetrado por Israel em Gaza e na Cisjordânia. Viemos observando uma intensificação da rivalidade interimperialista e um aumento da disputa entre os Estados Unidos e a China. É nesse contexto que ocorreram convulsões sociais e golpes de Estado em diversos países africanos, sobretudo da África Ocidental com uma explosão de ódio entre setores massivos com o passado colonialista que Rússia e China, bem como variantes burguesas nacionais de caráter bonapartista e militar buscam capitalizar para seus próprios interesses.

A decadência do paradigma de globalização imperialista, o longo processo de decadência da hegemonia norte-americana abrem espaço a novos arranjos da economia e da geopolítica mundial com Rússia e China questionando a liderança inquestionável dos EUA ao longo de décadas. As visões que postulam que um “multilateralismo” dentro dos marcos do capitalismo permitiriam dar uma saída aos países africanos ignoram que Putin e os outras figuras reacionários à frente do grupo BRICS+ não estão contra a política imperialista de dominação ocidental mas sim que o Ocidente domine o continente africano e outras áreas sozinhos de modo que, por trás dos discursos “anti-ocidentais” na verdade o que buscam é um lugar à mesa da rapina e espoliação das riquezas africanas que atenda aos próprios interesses capitalistas de Rússia e China. Como já apontamos em outras elaborações não existe multilateralismo de esquerda e, por isso, é fundamental batalhar por uma política internacionalista proletária, anti-imperialista e de independência de classe com todas as forças para unir a classe trabalhadora aos povos oprimidos do mundo na perspectiva de acabar com o sistema capitalista. Como parte dessa batalha é preciso lutar para por abaixo todas leis anti-imigrantes em vigência na Europa, Estados Unidos e outros países. Basta de racismo, xenofobia e criminalização dos migrantes! Lutar por justiça para Moise Kabagambe e todos os imigrantes perseguidos e mortos e por garantia de todos os direitos (civis, trabalhistas, humanitários, etc) para todas as pessoas e livre trânsito a todos os migrantes!

É fundamental repudiar com todas as forças as intervenções militares e políticas imperialistas no continente africano (como a MONUSCO13 na República Democrática do Congo), defendendo o direito à autodeterminação do próprio povo africano respeitando sua diversidade étnica e cultural. Todo apoio à luta do povo saaraui no Saara ocidental por sua autodeterminação!!! Parte dessa luta anti-imperialista passa por defender o não pagamento das dívidas públicas dos países africanos, a nacionalização sem indenização de todas as mineradoras, portos, aeroportos e empresas estratégicas sob controle dos trabalhadores. Por uma República Democrática do Congo socialista no âmbito de uma Federação de Repúblicas Socialistas da África!

A luta pela resolução de tarefas democráticas como a plena independência nacional e nem falar o fim das bárbaras desigualdades que atravessam diversos países africanos não estão descoladas das batalhas da luta de classes. Isso significa que a libertação do jugo imperialista não será alcançada pelas mãos de governos bonapartistas militares com discurso de esquerda ou nacionalistas que se alinham politicamente e militarmente com China e Rússia ao mesmo tempo em que mantém intocada a propriedade dos meios de produção sob domínio da burguesia, mas a libertação dos povos africanos será fruto da própria auto-organização das massas oprimidas nacional e internacionalmente.

A perspectiva apontada por Trotski na Teoria da Revolução Permanente, entrelaça a solução plena e real das tarefas democráticas e do problema da libertação nacional com as batalhas estratégicas fundamentais da luta de classes, ou seja, aponta como essa tarefa só seria solucionada por meio da ditadura do proletariado como direção das nações e das massas oprimidas. Essa perspectiva se torna mais atual do que nunca como meio estratégico fundamental para acabar com a dominação de séculos imposta aos povos do continente africano e abrir um novo marco a partir da revolução internacional e a reconstrução da sociedade em novas bases livre de todo tipo de exploração e opressão.

 

Notas

1.  BLACKBURN, Robin. A construção do escravismo no novo mundo: 1492-1800.  Rio de Janeiro: Record,2003, p. 624.

2.Walter Rodney. Como a Europa subdesenvolveu a África. São Paulo,SP:  Boitempo, 2022 p.117-118.

3. https://www.brusselstimes.com/255962/belgiums-mysterious-richest-man-pays-himself-e2-billion-dividend

4.De 1885 a 1908 essa região era chamada de Estado Independente do Congo, e, entre 1908 e 1960, Congo Belga. Ao se tornar independente em 30 de junho de 1960, o nome novamente foi mudado e passou a chamar-se República do Congo. Era também chamada nessa época de Congo-Léopoldville para ser distinguida de Congo-Brazzaville, ex-colônia francesa, também chamado de República do Congo depois de sua independência. Em 1964, o Congo-Leopoldville se torna República Democrática do Congo, embora o regime em vigor não tivesse nada parecido com democracia. Em 1971 o ditador Mobutu Sese Seko rebatiza o país, dando-lhe o nome de República do Zaire, normalmente chamado Zaire, também nome da moeda nacional e do rio Congo. Em 1997, Laurent Désiré Kabila, outro ditador, sucessor de Mobutu, retorna ao antigo nome de República Democrática do Congo que prevaleceu de 1964 a 1971.

5. “Tomai o fardo do Homem Branco – Envia teus melhores filhos Vão, condenem seus filhos ao exílio Para servirem aos seus cativos; Para esperar, com arreios Com agitadores e selváticos Seus cativos, servos obstinados, Metade demônio, metade criança.” (Trecho do poema O Fardo do Homem Branco)

6.Citado em Bárbara Caramuru, Raça e Império no imaginário colonial. Colônias alemãs em território africano. Revista Vernáculo, nº 30, 2º sem/2012 p. 151.

7. https://nova-escola-producao.s3.amazonaws.com/TWJ7nvRCKSsDGQtFpA7ZrkbfQw8RF2pzwKyMehBpWtGpW4fhyGt4EyGthzcJ/his9-14und01-ata-conferencia.pdf

8. MUNANGA, Kabengele. A República Democrática do Congo– RDC. África. Rio de Janeiro. Março, 2007., p.07-08.

9.HERNANDEZ, Leila Leite. Movimentos de resistência na África. Revista de História 141 (1999), 141-149

10.https://www-unep-org.translate.goog/regions/africa/our-work-africa?_x_tr_sl=en&_x_tr_tl=pt&_x_tr_hl=pt&_x_tr_pto=sge#:~:text=A%20%C3%81frica%20abriga%20cerca%20de,do%20mundo%20est%C3%A3o%20na%20%C3%81frica.

11. Segundo os economistas Léonce Ndikumana e James Boyce, entre 1970 e 1996 a dívida externa africana chegou a 187 bilhões de dólares, segundo os autores,Artur Colom Jaén, aponta que entre 1970 e 2002 a África subsaariana recebeu 294 bilhões de dólares em empréstimos, pagou 268 bilhões de dólares e seguia devendo 210 bilhões de dólares nesse mesmo período.

12. https://www.trade.gov/country-commercial-guides/democratic-republic-congo-mining-and-minerals

13. É nojenta reivindicação do estado brasileiro da MONUSCO, pois não somente ser parte desta sangrenta missão, como se vangloria das suas passagens na liderança militar, do General Santos Cruz  em 2013 até o atual General Ulisses de Mesquita Gomes, nomeado para o cargo em janeiro de 2025. “A MONUSCO, Missão da Organização das Nações Unidas para a Estabilização na República Democrática do Congo, foi estabelecida em 1º de julho de 2010, por meio da Resolução 1925 do Conselho de Segurança da ONU. […] O Brasil mantém uma significativa presença na MONUSCO desde sua criação, tendo comandado a missão em cinco oportunidades distintas.” Disponível em  https://www.eb.mil.br/web/noticias/w/brasil-na-monusco-compromisso-com-as-operacoes-de-paz

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