Revista Casa Marx

China: socialismo do século XXI? Jornadas por um Futuro Comunista

Redação

Atividade no IFCH-Unicamp com André Barbieri, doutor em Ciências Sociais pela UFRN e editor do Ideias de Esquerda, acerca da morfologia da China capitalista no século XXI e os desafios dos marxistas. Parte do ciclo de debates "Jornadas por um Futuro Comunista".

(Apresentamos abaixo a fala de abertura do minicurso ministrado por André).

Já que eu tenho um tempo a mais vou tirar alguns fundamentos políticos da literatura. Lu Xun é o pai da literatura moderna chinesa, e é muito discutido pela juventude estudantil hoje, que vive uma crise existencial em função da alta taxa de desemprego no país. O drama da juventude universitária é, mesmo com uma ótima formação, com diplomas universitários, e muito maior estudo que a geração anterior, ela não consegue encontrar trabalhos dignos. Esse é o mesmo drama do personagem Kong Yiji, um conto escrito pelo Lu Xun em 1919: nele, a gente encontra um adulto sem muitas perspectivas na vida, que não conseguiu nenhum emprego digno apesar da sua boa formação clássica, fracassou em todos os exames imperiais e terminou miserável num pequeno vilarejo do interior da China. Os estudantes chineses se identificam com esse personagem do Kong Yiji, eles o usam nas redes sociais para criticar a desigualdade e a exploração na China. Foi muito curioso, porque isso fez o governo chinês passar a dizer que se “Kong Yiji se esforçasse, teria um emprego”, uma mensagem para tentar convencer os jovens a se esfolarem no trabalho precário com a ilusão de ascensão social, uma realidade bem parecida com a nossa no Brasil. A literatura chinesa, então, está no centro inclusive dessa luta entre a nova geração e o PCCh. É da literatura que vou tirar o mote desse minicurso para discutir o que é a China hoje, com o conto Diário de um louco, do Lu Xun, escrito em 1918. O enredo é o de um jovem que vai perdendo a sanidade ao compreender que seu irmão mais velho quer devorá-lo. É uma ótima metáfora sobre como as velhas tradições imperiais da China lutam contra as novas tendências modernizantes, não só vindas do Ocidente, mas também da Revolução Russa de 1917.

Uma ideia equivocada que quer nos devorar hoje é que a China seria socialista, e por isso uma alternativa para os povos oprimidos do mundo diante da beligerância do imperialismo dos EUA.

Essa é uma ideia comum aqui no Brasil, e vários intelectuais ajudaram a difundir essa confusão. Por exemplo, no Adam Smith em Pequim, Giovanni Arrighi afirma que a China é uma economia de mercado não capitalista, não exploradora. Ele via como benéfica a ascensão da China na ordem mundial, “subversiva” do sistema capitalista. Perry Anderson, em seu ensaio Duas Revoluções, desenvolve uma fórmula híbrida para definir a China: ela combinaria a propriedade privada com um Estado comunista. Slavoj Zizek, filósofo esloveno, considera a China um “Estado forte não capitalista” que recorre a “elementos do capitalismo”, sem ser dominada por ele. Ao mesmo tempo, o Zizek confessa que a China vive um capitalismo selvagem. Fica até exótico: um Estado não capitalista, com um capitalismo selvagem! Aqui no Brasil o Elias Jabbour chega a dizer que a China é o socialismo do século XXI…

Essas são todas maneiras de enxergar a China por fora do caráter de classe do Estado, e das bases econômicas que regem as relações de propriedade nesse país.

Então, é importante desmistificar esses dois aspectos da mesma ideia (de que a China seria socialista e de que sua ascensão seria alternativa aos EUA).

E acho que um bom ponto de partida é a situação da Palestina. Sabemos que os Estados Unidos, na administração Democrata do Joe Biden, foi o pilar logístico, financeiro e militar para o genocídio sionista contra os palestinos em Gaza. Os Democratas reprimiram duramente o heroico movimento estudantil norte-americano que ocupou universidades e enfrentou a polícia para defender a causa palestina, uma causa anticolonialista, anti-imperialista e antirracista. Em parte, isso explica a derrota da Kamala Harris, porque muitos jovens estadunidenses se recusaram a votar nos genocidas que ocupam a Casa Branca. Trump é um ultradireitista que diz abertamente que vai auxiliar Netanyahu a destruir Gaza, e certamente vai ser enfrentado por uma nova geração que associa a ideia do socialismo com a libertação da Palestina. Agora, qual a postura da China nesse caso? Na aparência, ela tem uma postura diferente, se pronuncia contra o que ocorre em Gaza; mas na realidade, o governo chinês reprime no seu território qualquer manifestação pró-Palestina, não só nas ruas mas também censurando nas redes sociais o apoio da juventude chinesa aos palestinos. O governo Xi Jinping reconhece a existência de Israel e mantém todas as relações com esse Estado colonialista. As empresas estatais da China estão construindo linhas ferroviárias em Tel Aviv, portos em Ashdod (norte de Gaza) e em Haifa. A China continua importando tecnologia militar israelense para reprimir sua população. Essa colaboração indireta com o genocídio é mais velada. Mas a realidade concreta é que para Pequim é importante aprofundar sua influência no Oriente Médio, e por isso manter o business as usual com Israel e a estrutura colonialista criada pela ONU em 1948.

A gente pode se perguntar: o que esse pragmatismo geopolítico tem a ver com o socialismo? Nada, porque o socialismo tem no seu DNA o combate ao imperialismo. A China também dificilmente teria qualquer coisa a ver com o socialismo se analisa do ponto de vista econômico objetivo. Vamos aos fundamentos marxistas. O socialismo como sistema de organização da produção só é concebível sobre a base da 1) propriedade nacionalizada dos meios de produção, 2) mediante a planificação democrática e racional dos recursos econômicos 3) e o monopólio do comércio exterior, medidas de proteção fundamentais do novo regime de propriedade. O fundamento dessa economia de transição ao socialismo é a existência de um Estado de novo tipo, um Estado operário do tipo da Comuna de Paris ou dos sovietes russos, surgido da expropriação revolucionária da burguesia. Um Estado que como mostrou a Rússia tem sua melhor forma política nos sovietes, na democracia dos conselhos em que os trabalhadores urbanos e rurais, camponeses e a população pobre definem não só os rumos da economia mas também são responsáveis por fazer política e conduzir seu próprio Estado de transição à extinção (como dizia Engels, um “Estado já não mais no sentido pleno da palavra, porque seu objetivo é desaparecer”). Nisso, a liberdade e a criatividade das massas são fundamentais: a perpetuação da burocracia é incompatível com o desenvolvimento ao socialismo, porque o socialismo é uma construção consciente dos oprimidos por um mundo sem Estado nem exploração, em que as pessoas possam se associar livremente para produzir suas necessidades físicas e espirituais.

A China não tem nada a ver com isso. A China é um país que passou não apenas por uma revolução, mas também por uma contrarrevolução, em que a propriedade nacionalizada e a planificação da economia, junto com o monopólio do comércio exterior, foram abolidos, e se restaurou o poder da burguesia que havia sido expropriada em 1949. Para falar um pouco disso, a revolução de 1949 foi uma das maiores conquistas na história dos trabalhadores e camponeses. A população chinesa, primeiro, venceu a invasão brutal do imperialismo japonês, e expulsou o Japão no final da Segunda Guerra; e logo em seguida venceu as tropas nacionalistas de Chiang Kai-shek e do Kuomintang, cavando trincheiras, se armando como podiam, passando fome e frio na Manchúria, fazendo todos os sacrifícios. Uma página heroica da história da nossa classe. Mas o problema é que essa revolução foi dirigida politicamente pela burocracia do PCCh, que expropriou o triunfo das massas, asfixiou qualquer iniciativa de democracia soviética, e sob a batuta do Mao Tsé-tung instaurou uma ditadura sobre os trabalhadores e camponeses. No plano estratégico Mao compartilhava a concepção do Stálin sobre o socialismo num só país, e por isso bloqueou a dinâmica da revolução internacional. Todo o contrário da Revolução Russa dirigida pelo Lênin e pelo Trotsky, em que o Estado soviético nasceu fundado nos conselhos e deu origem à Internacional Comunista, que batalhou pela revolução internacional, antes da burocratização stalinista.

Assim, a República Popular da China, surgida em 1949, já nasceu como Estado operário deformado burocraticamente, e abriu caminho à restauração do capitalismo.

E como se deu essa restauração? Atacando os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, e quebrando a estrutura das empresas estatais através da privatização e entrega dos ativos públicos. Com as reformas pró-mercado do Deng Xiaoping, já na década de 1980 os antigos gerentes das empresas estatais, membros do PCCh, foram se apropriando dos ativos públicos para enriquecimento próprio, e passavam a acumular a riqueza que os tornaria novos capitalistas (Isabella Nogueira e Hao Qi escrevem sobre esse processo, que em mandarim se chama guandao (lucro oficial), e que significa que as empresas públicas eram muitas vezes transferidas gratuitamente aos gerentes, ou compradas por preços irrisórios em função das conexões dessas pessoas com os governos locais). Ou seja, a nova burguesia chinesa surgiu do próprio seio do Partido Comunista. Depois da dissolução da URSS, o governo chinês privatizou inúmeras empresas estatais demitiu dezenas de milhões de trabalhadores, liberalizou a economia e construiu um mercado de trabalho para venda da força de trabalho. O PCCh restaurou com suas próprias mãos o capitalismo na China. Isso foi feito num longo processo histórico, com idas e vindas, muita luta de classes e resistência da população chinesa contra o PCCh, o Massacre de Tiananmen em 1989, a repressão às greves e revoltas camponesas na década de 1990 e 2000. Muitas pessoas se perguntam: mas o que então explica o crescimento chinês? Não existe nenhuma mágica no “milagre” econômico chinês. O Eli Friedman e Kevin Lin dizem muito bem que (China no Capitalismo Global) se existe um segredo para a expansão capitalista da China, é simplesmente o fato de o Partido Comunista ter desenvolvido estratégias altamente sofisticadas para garantir taxas de exploração que são impossíveis em outros lugares.

Então: ao contrário do que se diz no Brasil, a China é uma potência capitalista, mesmo que o capitalismo chinês seja morfologicamente distinto do capitalismo Ocidental, pelo próprio fato de que ele surgiu de uma contrarrevolução comandada pelo PCCH. De acordo com o Marx, o capitalismo é um sistema em que os proprietários privados exploram a força de trabalho dos trabalhadores em concorrência com outras empresas para obter o maior lucro possível. A compulsão capitalista por acumular lucro precede a satisfação das necessidades humanas, e a competição entre as empresas leva a explorar trabalho alheio e expropriar o produto desse trabalho. O Estado participa disso, ordena legalmente a exploração da classe trabalhadora e estrutura a desigualdade de classe usando as opressões de raça, gênero e nação.

Tudo isso existe na China.

Isso não muda pelo fato da China possuir empresas estratégicas de propriedade estatal, que é uma característica de todos os Estados capitalistas no Ocidente. Essas empresas de propriedade estatal tem uma participação cada vez menor na economia (são menos de 30% do PIB, enquanto o setor privado é responsável por 60% do PIB, por 70% da inovação, 80% do emprego urbano e 90% das exportações). Essas empresas de propriedade estatal, como a Sinopec, a State Grid, a SAIC Motors, todas funcionam sob a lei do valor, como empresas privadas: um trabalhador de uma empresa estatal está tão subordinado à gerência como um trabalhador de uma empresa privada; as empresas estatais são tão contrárias a sindicatos independentes como as empresas privadas, e os trabalhadores não tem qualquer poder de decisão sobre a produção das empresas estatais. De maneira alguma essas empresas são públicas: elas são posse de funcionários do Estado que não prestam contas a ninguém. Seguindo um pouco nessa linha, desde a década de 1990 essas empresas estatais estão orientadas a obter o maior lucro possível, e exploram trabalho, muitas delas trabalho terceirizado. As principais empresas estatais são cotizadas nas Bolsas de Valores de Hong Kong a NY, tem acionistas privados que compram partes da empresa para receberem os lucros das suas operações, e tem seguradoras entre os principais monopólios capitalistas ocidentais.

A gente chegou num ponto em que, em 2022, a China tinha 136 empresas (incluindo estatais e privadas) na lista das 500 empresas mais ricas do mundo (logo à frente dos EUA, com 124), e a China tem o segundo maior número de bilionários no mundo. O atual presidente, Xi Jinping, defende a economia de mercado, defendeu que o mercado desempenhe um “papel decisivo” nos investimentos, e quer aparecer como principal protetor da globalização capitalista contra o protecionismo do Trump. Da mesma forma, na China é possível encontrar expressões culturais típicas das sociedades capitalistas, como a valorização do trabalho árduo, a celebração do consumo e a glorificação da lucratividade empresarial como fontes de orgulho nacional.

Então, a China está solidamente fundada na exploração capitalista do trabalho, mesmo que sua morfologia não seja igual à do capitalismo Ocidental. Mas então a gente pode se perguntar: bem, a China não é socialista, mas ela não busca enfrentar os EUA para atingir o socialismo?

Na realidade, a China atua hoje como um remodelador da ordem mundial dominada pelos Estados Unidos. Digo remodelador porque a China não busca subverter o sistema econômico capitalista, ela quer melhorar a sua posição no capitalismo contemporâneo, fazendo esforços para ascender dentro dessa estrutura de Estados. Como argumenta o marxista honconguês Au Loong-yu, a atual disputa entre Estados Unidos e China não tem por objetivo a eliminação do sistema imperialista, mas a redefinição de aspectos de sua ordem. Em outras palavras, a China objetiva melhorar sua posição no concerto das nações inscritas no sistema imperialista. Para isso ela constroi seus arsenais militares, faz acordos com outros países mais fracos a fim de ampliar sua exportação de capitais, seu acesso seguro a recursos naturais e mão de obra, todas coisas que dão à China traços imperialistas hoje. Ela se prepara para ascender à força, esse é o sentido do governo Xi Jinping e da nova estratégia de 24 caracteres: atreva-se a lutar.

A dialética materialista é muito importante, vou tentar sintetizar o que eu disse até aqui: 1) a morfologia do capitalismo chinês é distinta daquilo que comumente a gente conhece no Ocidente, em função da própria forma como o capitalismo surgiu: pelo Partido Comunista que restaurou a o modo privado de propriedade e permaneceu no poder. Um capitalismo chinês sui generis. 2) Apesar dessa diferença na gênese, a China compartilha com o Ocidente todas as características centrais do capitalismo. 3) Essas características comuns não tornam a disputa entre EUA e China um processo pacífico. Pelo contrário, a competição estratégica sino-estadunidense obedeceu até aqui uma certa ordem porque nenhuma das duas potências está preparada para uma guerra; mas essa disputa se acirra, num momento em que o mundo passa por grandes conflitos militares, como a Guerra da Ucrânia, e por um genocídio, como o que o Estado terrorista de Israel faz contra a população palestina em Gaza. A carta militar está cada vez mais sobre a mesa, e se a gente quer evitar essas catástrofes a única saída é voltar a pensar na revolução socialista na China, nos EUA e em todo o mundo.

***

Isso me leva para a segunda ideia, aquela segundo a qual a China poderia aparecer como líder de um multilateralismo benéfico em contraposição aos EUA. Um dos eixos do livro Adam Smith em Pequim trata justamente desse conflito sino-estadunidense. O Arrighi, economista italiano, era parte da escola de pensamento do historiador francês Fernand Braudel, que dividia a história em ciclos de expansão e retração da economia, acompanhados pela decadência de uma potência e a emergência hegemônica de outra. Por isso ele considera que a China é a principal candidata a substituir os EUA como novo hegemon, e a China teria algumas vantagens diante das potências mercantis e imperialistas anteriores (como Portugal, Espanha, Gênova, Holanda, Inglaterra e EUA). Segundo o Arrighi, ao contrário de todos eles, a China teve uma tradição milenar “antimilitarista”, que deixou diferenças marcantes com o sistema de Estados europeu: enquanto esse sistema esteve marcado por uma incessante competição militar e por tendências à expansão geográfica, o sistema de Estados asiático se caracterizava por ausência de competição militar e também de tendências à expansão. Isso habilitaria a China a emergir pacificamente como potência sem impor sua vontade pela força. De fato, ele diz que estaríamos diante do surgimento de “uma nova ordem mundial centrada na China, mas não necessariamente dominada por ela”.

Esse pensamento foi a base de uma ampla gama de elaborações contemporâneas, que embora heterogêneas entre si e que não coincidam imediatamente com as conclusões do Arrighi, aderem ao que a gente pode chamar de “multilateralismo benigno” do capitalismo chinês. Ou seja, a ideia de que o crescimento da China tal qual é diminuiria as tensões mundiais, porque oporia uma “ordem multipolar” à velha unipolaridade do imperialismo norte-americano, diminuindo as tendências militaristas no mundo, porque obrigaria os EUA a negociar com um igual antes de agir.

Esse seria o núcleo da tese do multilateralismo benigno. Mas existem vários problemas históricos e políticos nessa tese. Aqui só vou mencionar en passant o que desenvolvo em outros trabalhos.

Talvez o problema mais chamativo seja esquecer que na nossa época (crises, guerras e revoluções, Lênin) os processos de decadência e ascensão de potências hegemônicas não são harmônicos, eles são convulsivos, e se dão através de meios militares: nos século XX nós vimos duas guerras mundiais para resolver a transição da hegemonia da velha Inglaterra aos Estados Unidos. Depois de décadas, vemos novamente guerras com a ascensão de uma nova potência. Hoje a Guerra da Ucrânia, ou mesmo a ofensiva sionista em Gaza, não indicam nada parecido com tendências anti-militaristas.

A China é um Estado capitalista em rápida ascensão, com traços imperialistas. A sua disputa com os Estados Unidos, que por ora não se manifestou em termos militares, vem sendo bastante ríspida, cheia de choques, e pode terminar em conflagrações. Nós já conhecemos as atrocidades de que é capaz o imperialismo norte-americano; mas isso não significa que seja correto embelezar os métodos, em muitos pontos similares, que a China utiliza para projetar seu próprio capitalismo, no terreno econômico, geopolítico, ambiental e militar, e que não fazem dela a arquiteta de um sistema disruptivo de oposição aos EUA.

Para dar alguns exemplos. Do ponto de vista econômico, seria impossível imaginar a exploração do trabalho no século XXI sem incluir a voraz extração de mais-valor nos países da África, da Ásia e da AL por parte dos conglomerados chineses, tanto estatais como privados (que se enriqueceram muito na era Xi Jinping). Isso a gente pode ver nos acordos financeiros e comerciais que a China realiza em troca de acesso privilegiado à pilhagem de matérias-primas, como lítio, cobre e petróleo, explorando força de trabalho dos países oprimidos, quando não exportando a própria força de trabalho chinesa, como nas obras da Nova Rota da Seda. Do ponto vista geopolítico, muito se fala das intervenções pacificadoras da China no Oriente Médio, como entre Arábia Saudita e Irã (ou sua proposta de paz na Ucrânia), mas pouco se fala do apoio de Pequim ao golpe militar em Myanmar, em 2021, ou da sustentação de múltiplos governos autoritários que ela compartilha com os EUA na África. Além disso, quando se fala da multipolaridade benigna sempre se faz certa desconstrução ou desvalorização dos aspectos repressivos do Estado chinês que caem forte sobre as nacionalidades oprimidas, em especial os muçulmanos. Do ponto de vista ambiental, a própria voracidade do capital chinês nos setores agrícola, energético ou da mineração a converte num agente de degradação do meio ambiente, junto com as potências Ocidentais: por exemplo, os EUA destroem a Amazônia há décadas, e ao contrário de se oporem a isso, os capitais chineses entraram na corrida extrativista na Amazônia equatoriana, extraindo cobre na mina de Mirador, ou construindo hidrelétricas poluentes como a de Rucalhue no Chile, além de disputar o lítio latino-americano com os EUA. E do ponto de vista militar, a militarização do Mar do Sul da China, os exercícios militares conjuntos com a Rússia ou as ameaças a Taiwan não autorizam a tese de Arrighi sobre a “ascensão pacífica” da China.

Ou seja, desse ponto de vista, as teses do Arrighi que fundamentam o que hoje se pode chamar de “multilateralismo benigno chinês” não se verificam na realidade.

É claro que a China compete com os EUA e questiona a velha ordem mundial unipolar saída da Guerra Fria. Mas o desafio que a China representa para as grandes potências imperialistas não a torna uma aliada dos povos oprimidos, nem uma alternativa de “hegemonia sem dominação militar”. A China disputa com os EUA dentro dos mesmos princípios: exploração, espoliação e destruição da natureza. Do ponto de vista dos povos subalternizados, como dizia o Gramsci, o imperialismo norte-americano é naturalmente o principal inimigo, mas ele não pode ser combatido dentro do “campo” da China, que desenvolve cada vez mais seus próprios traços imperialistas. Discutir o comunismo é saber se contrapor às saídas estatistas que as classes dominantes do Ocidente e do Oriente buscam dar às suas querelas.

Obrigado.

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