Samuel Karlin
[De Nova York] Neste artigo publicado originalmente no Left Voice, parte da Rede Internacional de La Izquierda Diario, Samuel Karlin analisa como os primeiros 100 dias de Trump demonstraram que a “paz através da força” é, fundamentalmente, uma política externa experimental e incoerente. Ela não é, de forma alguma, pacífica nem tão forte quanto afirmam seus defensores.
Antes do retorno de Donald Trump à presidência, não faltaram debates sobre o que sua segunda administração poderia significar para a política externa dos Estados Unidos. Trump venceu as eleições em meio a um declínio histórico do imperialismo estadunidense, com desafios internos às intervenções estrangeiras, uma capacidade militar desgastada pelas desastrosas “guerras eternas”, uma base industrial atrofiada e o fracasso do governo Biden em resolver esses problemas. Subjacente a tudo isso está uma competição estratégica entre os EUA e uma China em ascensão, uma confrontação que se intensificou recentemente com a guerra comercial de Trump e que influencia cada manobra que ele tem feito, da Europa às Américas.
Como alternativa à tradicional relação transatlântica e ao multilateralismo que posicionou o imperialismo estadunidense na linha de frente após a Segunda Guerra Mundial e durante toda a Guerra Fria, Trump prometeu “paz através da força” — uma tentativa ambiciosa, embora bastante contraditória, de sintetizar várias ideias da direita sobre como restaurar o lugar do imperialismo dos EUA. Como aponta Claudia Cinatti:
Os dois slogans-chave da campanha de Trump — MAGA (Make America Great Again, ou “fazer os EUA grandes novamente”) e “America First” — com sua variante reaganiana da “paz através da força” — vão ganhando contornos concretos. Não se trata de um retorno ao isolacionismo tradicional, nem tampouco de um protecionismo consolidado que implique um recolhimento às fronteiras nacionais. O sentido é, antes, não envolver o imperialismo norte-americano em guerras nas quais seus interesses diretos não estejam em jogo, reafirmar sua dominação no “Hemisfério Ocidental” (“as Américas”) como “esfera de influência” e concentrar os recursos — militares, geopolíticos, econômicos — para conter a China, que é o principal desafio estratégico ao enfraquecido papel de liderança dos EUA.
Dentro dessa reorientação deve-se interpretar a retórica imperialista agressiva que Trump vem adotando — apropriar-se da Groenlândia, retomar o Canal do Panamá, anexar o Canadá — com referências à Doutrina Monroe e à presidência de William McKinley, caracterizada pelo protecionismo e pela expansão territorial dos EUA (Porto Rico, Filipinas etc.). A grande diferença é que a expansão imperialista de McKinley (que, diga-se de passagem, foi assassinado por um anarquista) coincidiu com o momento de ascensão da potência norte-americana, enquanto as ameaças de Trump são um certo reconhecimento dos limites do poderio dos EUA e ocorrem num contexto de declínio.
O fim da associação transatlântica
Até agora, o maior impacto da política externa de Trump tem sido seu compromisso em encerrar a associação com a Europa, que serviu como pilar da ordem imperialista por meio século. Embora muitos analistas de política externa esperassem que Trump agisse de acordo com sua habitual retórica agressiva contra a Europa, surpreendeu até que ponto ele (com grande ajuda do vice-presidente J. D. Vance) tem desprezado a diplomacia com os parceiros europeus.
Para deixar claro, o objetivo de Trump não é ignorar completamente a Europa. O que ele quer é evitar que os EUA concentrem sua atenção nas questões europeias, vendo o hemisfério ocidental e a região Ásia-Pacífico como áreas muito mais estratégicas para focar os limitados recursos do imperialismo estadunidense (voltaremos a isso mais adiante).
É isso que motiva a tentativa de Trump de encerrar rapidamente a guerra na Ucrânia — ou, ao menos, de acabar com o envolvimento dos Estados Unidos nela. De fato, um dos maiores choques dos primeiros 100 dias de seu governo foi sua tentativa de negociar unilateralmente um “acordo de paz” com a Rússia e intimidar o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, a aceitar um acordo sobre minerais que remete ao neocolonialismo.
É nessa tentativa de Trump de encerrar rapidamente a guerra que já podemos ver alguns dos limites da “paz através da força”. Por mais que Trump diga que Putin “leva os EUA a sério” com ele na Casa Branca, a realidade é que a Rússia tem vantagem na guerra, e os Estados Unidos não conseguem projetar força suficiente para ameaçar seriamente a Rússia sem correr o risco de uma escalada que o país não pode bancar. Isso paralisou as negociações e inspirou Trump a adotar uma retórica ainda mais agressiva contra Putin.
Independentemente de como as coisas se desenrolem na tentativa de Trump de retirar os Estados Unidos da Ucrânia (e da Europa em geral), a consequência mais significativa é que os países europeus estão se movendo a toda velocidade para construir seus próprios exércitos, agora que está claro que não podem contar com os EUA. Como aponta Juan Chingo:
Enquanto as discussões sobre a guerra e o futuro da situação internacional se limitavam até agora às cúpulas internacionais e pareciam, na Europa Ocidental, um problema distante, o “choque” entre Trump e Zelensky no Salão Oval teve um impacto sem precedentes nas massas desde o início da guerra na Ucrânia. A situação internacional está se colocando no centro da política nacional da maioria dos países europeus.
Os resultados mistos da aposta no hard power
Outra mudança importante na abordagem de Trump sobre o imperialismo tem sido sua ênfase no hard power ou “poder duro”. De fato, como demonstra o desmantelamento da USAID por parte de sua administração, Trump parece considerar que o arsenal de soft power imperialista dos EUA é um desperdício. Em seu lugar, Trump tem tentado forçar aliados e adversários igualmente à submissão por meio de ameaças militares diretas (como a ameaça de anexar o Canadá e a Groenlândia) e ameaças econômicas (de forma mais aberta, com o uso de tarifas).
Desde o início, Trump utilizou essas ameaças para impulsionar o domínio dos Estados Unidos no hemisfério ocidental. Essa tentativa de uma nova Doutrina Monroe na América Latina (reforçada e profundamente conectada com a militarização da fronteira entre os EUA e o México) tem sido, possivelmente, a maior vitória de Trump em termos de “paz através da força” até o momento. Como analisa Sou Mi:
Parte das tentativas de Trump de coagir seus parceiros continentais também consistiu em aproveitar os ataques à imigração e a ameaça de tarifas para obter concessões e reforçar o domínio dos EUA na região. Além de revitalizar o alarmismo sobre a fronteira sul, Trump tem usado essa “guerra” contra os imigrantes para forçar as nações latino-americanas a aumentarem a militarização e sofisticarem seus aparatos de segurança de modo que sirvam aos interesses de Washington. Em um artigo para o Miami Herald, Rubio, falando do Caribe como a “terceira fronteira” dos Estados Unidos, delineia claramente que os objetivos de sua mencionada viagem são fortalecer a Iniciativa de Segurança da Bacia do Caribe (CBSI), que consiste em avançar o desenvolvimento e a cooperação das forças de segurança da região de acordo com a vontade de Washington. Nos últimos meses, a administração Trump também avançou nas conversas com o Equador para a construção de uma nova base naval para as forças dos EUA na região, e assinou um memorando de entendimento com a Colômbia que daria aos EUA acesso aos dados biométricos coletados de migrantes na Colômbia.
Um aspecto-chave da política de Trump em relação à América Latina no próximo período será seu esforço para redefinir a relação dos EUA com o México, cuja subordinação econômica ao capital estadunidense tem sido uma pedra angular de décadas de neoliberalismo. Embora Trump tenha poupado, em grande parte, México e Canadá de suas medidas tarifárias mais abrangentes, ameaçou repetidamente ambas as nações com tarifas de 25%. Em fevereiro, recuou temporariamente depois que a presidente mexicana, Claudia Sheinbaum, prometeu mobilizar 10.000 soldados na fronteira norte para conter a migração, e o primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, comprometeu 1,3 bilhão de dólares para reforçar a segurança da fronteira com novos helicópteros, tecnologia e pessoal para combater o tráfico de fentanil. No entanto, a recusa de Trump em descartar tarifas futuras sugere uma estratégia contínua para extrair mais concessões dos parceiros norte-americanos de Washington, bem como pressionar por uma renegociação do USMCA em termos mais favoráveis aos Estados Unidos, tanto econômica quanto politicamente.
Mas se a mão pesada de Trump tem dado frutos principalmente na América Latina até agora, isso é mais uma exceção do que uma regra. Como vimos com a tentativa de Trump de encerrar os compromissos dos EUA na Ucrânia, o unilateralismo e as ameaças não bastam para resolver as contradições dos conflitos nos quais os Estados Unidos estão envolvidos. Isso é ainda mais claro no Oriente Médio, uma região da qual presidentes dos EUA têm tentado — e falhado — se afastar desde a presidência de Obama.
Trump gostaria de impulsionar os Acordos de Abraão para criar um pacto de segurança entre a Arábia Saudita e Israel para conter o Irã e complementar a presença dos EUA na região. Mas isso não pode acontecer enquanto Israel continuar o genocídio em Gaza (que Trump tem apoiado com seu discurso de transformar Gaza em uma riviera). A retomada dos ataques dos houthis está arrastando ainda mais os Estados Unidos para o Oriente Médio, o que está levando Trump a atacar o Iêmen de forma mais agressiva e pode levar a uma invasão terrestre por forças dos Emirados Árabes Unidos.
Os Estados Unidos começaram recentemente a negociar com o Irã, o que pode influenciar a evolução da presença militar americana na região. O Irã parte de uma posição de fraqueza devido às suas crises internas, à sua economia enfraquecida – agravada pelas sanções dos EUA – e à perda ou enfraquecimento de seus aliados regionais (sobretudo o Hezbollah no Líbano e o regime de Assad na Síria). Ainda assim, Trump não é o grande negociador que quer fazer o mundo acreditar, e um erro de cálculo (ou a incapacidade de conter Israel ou as monarquias do Golfo, conforme necessário) poderia agravar ainda mais a agitação no Oriente Médio, envolvendo os Estados Unidos ainda mais.
A guerra comercial e o confronto entre EUA e China
O confronto com a China está diretamente ligado à tentativa de Trump de retirar os Estados Unidos dos compromissos na Europa e no Oriente Médio e afirmar o controle sobre o hemisfério ocidental. As implicações de um grande confronto entre as duas maiores economias do mundo, profundamente interligadas, já se manifestaram na agitação econômica provocada pelo retorno de Trump à guerra comercial.
No momento em que estas linhas são escritas, Trump parece estar recuando, após a enérgica resposta da China. Embora a China esteja passando por uma grave crise econômica, o país passou os últimos anos se preparando para este confronto econômico com os Estados Unidos.
Como afirmaram recentemente dois especialistas em China em um episódio do podcast FP Live, há alguns fatores que favorecem a China. Até agora, o Partido Comunista Chinês evitou impulsionar fortemente a economia por meio do aumento do consumo interno de seus produtos. Em caso de uma guerra comercial mais severa, essa mudança econômica poderia oferecer à economia chinesa certa margem de manobra. Além disso, o mercado de ações chinês não é nem de longe tão relevante para o PIB da China quanto Wall Street é para a economia dos EUA. É muito mais provável que o cidadão médio americano sinta diretamente o impacto da guerra comercial do que alguém na China. As ações agressivas de Trump também dão ao PCCh uma desculpa para ajustar algumas de suas políticas econômicas passadas sem ter que assumir a responsabilidade por suas consequências, e permitem que a China se posicione como vítima da agressão americana no cenário internacional, ao mesmo tempo em que se apresenta como defensora do sistema de livre comércio.
Embora a situação esteja se atenuando, o cenário mundial continua profundamente incerto e ainda não surgiu nenhum acordo claro entre os Estados Unidos e a China para resolver as tensões que crescem entre as duas potências. Na verdade, muitos analistas acreditam que o cenário está preparado para uma plena desvinculação das duas economias. Esteban Mercatante observa que:
Agora, após a “resposta equivocada” da China, os EUA podem, negociando com o restante do mundo, alcançar acordos que isolem a China. Algo como a versão trumpista dos acordos Transatlântico e Transpacífico, desenhados durante o governo Obama, que neste caso não passam por uma nova rodada de negociações multilaterais em prol do livre comércio, mas sim por negociações bilaterais com todos os países com a grande potência da América do Norte.
Para onde as coisas podem caminhar agora? A escalada tarifária continuará indefinidamente, o que inevitavelmente termina em um desacoplamento violento das duas economias (não se pode esperar outra coisa se as tarifas continuarem acima de 100%)? Ou será, como ocorreu em 2018 quando Trump iniciou sua primeira guerra comercial contra a China, o prelúdio de negociações para acalmar um pouco as coisas? Tudo está em aberto por enquanto, mas o eventual caminho para um armistício parece sinuoso e longo. A China prometeu “lutar até o fim” e mostra-se menos disposta do que em 2018 a fazer concessões aos métodos de Trump.
As medidas de Trump também acenderam o alerta sobre algumas das relações nas quais o imperialismo estadunidense tem baseado sua força na região Ásia-Pacífico, como demonstra a recente reunião entre China, Japão e Coreia do Sul para realizar conversas comerciais em resposta às tarifas impostas por Trump. Alguns inclusive estão questionando a relação dos Estados Unidos com Taiwan, considerada por muitos como o ponto mais provável de uma confrontação militar entre os EUA e a China.
Volatilidade à vista
Os primeiros 100 dias de Trump demonstraram que a “paz por meio da força” é, fundamentalmente, uma política externa experimental, não totalmente coesa, que não é nem pacífica nem tão forte como afirmam seus defensores. Como argumenta Juan Chingo:
O que estamos presenciando é que os Estados Unidos estão passando por uma aceleração de seu declínio como potência hegemônica mundial, e que suas tentativas de revertê-lo, especialmente sob a liderança de Trump, agravam sua situação estratégica global. O atual mandatário representa uma tentativa radicalmente diferente de administrá-la em relação a seus antecessores recentes, mas sua fraqueza estrutural, somada a decisões precipitadas, pode ser um tiro de misericórdia para sua hegemonia global.
As tensões que a política externa de Trump está gerando a nível internacional são acompanhadas por uma queda nos índices de aprovação e por uma oposição crescente dentro dos próprios Estados Unidos. Enquanto isso, o Pentágono (uma instituição obviamente central para qualquer tentativa de restabelecer o imperialismo estadunidense) entrou no centro das atenções, com o Secretário de Defesa Pete Hegseth envolvido em confrontos com uma burocracia militar determinada a enfraquecê-lo.
No entanto, a crise da política externa de Trump não significa, intrinsecamente, que as coisas estejam melhorando para todos os que se opõem ao imperialismo. Trump pode encontrar formas de reorganizar seu gabinete e chegar a algum consenso com setores do capital e figuras influentes na formulação da política externa. Ou pode dobrar a aposta em sua abordagem agressiva, exacerbando os conflitos econômicos e militares, cujas consequências recairão principalmente sobre os trabalhadores.
Além disso, grande parte da indignação em relação à política externa de Trump provém de setores liberais que ainda mantêm ilusões nas instituições tradicionais do imperialismo estadunidense, como a OTAN e a USAID.
Do que podemos ter certeza é que os próximos anos apresentarão uma dinâmica internacional instável e crises contínuas para o imperialismo estadunidense — crises que a extrema-direita não pode resolver de forma clara. Nesse contexto, é urgente que os trabalhadores, os povos oprimidos e os socialistas lutem pela unidade e pela liderança da classe trabalhadora internacional contra a guerra, contra a dominação imperialista e contra as tentativas de jogar o peso dessas crises sobre as costas das grandes maiorias.