Revista Casa Marx

Edward Said e A Questão Palestina: um contraponto com Jabra Nicola

Gabriel Dolce

Edward Said foi um importante crítico literário palestino-estadunidense e ativista político pró palestina que escreveu sobre literatura, cultura e política do mundo árabe-islâmico do final dos 1960 até sua morte em 2003. Desde os acontecimentos de 7 de outubro do ano passado até o presente, em que o sionismo comete o genocídio contra o povo palestino em Gaza e ameaça avançar sobre o sul do Líbano, tenho lido suas obras, não tanto seus textos sobre crítica literária, e mais seus textos políticos e sobre cultura. A intenção do presente texto é abordar as posições políticas de Said sobre a palestina, alguns de seus apontamentos teóricos e fazer um “contraponto” (fazendo alusão ao conceito musical que Said transpõe a crítica literária) com as posições políticas de Jabras Nicola, militante trotskista palestino. Dessa forma, espero conseguir lançar alguma luz sobre os problemas estratégicos para uma solução de fundo para a questão palestina.

Breve biografia e vida política

Nascido em Jerusalém em 1935, em um período em que a cidade era governada pelo mandato britânico, mudou-se com sua família para o Cairo-Egito em 1947 (um ano antes da Nakba) onde fixou-se, com frequentes visitas aos familiares no interior do Líbano, até sua partida para estudar nos EUA em 1951. Filho de um próspero empresário do setor de papelaria e pertencente a uma família árabe-cristã, estudou em escolas anglicanas do sistema educacional inglês criadas para os filhos das elites e dos funcionários coloniais. Nos Estados Unidos, ao se formar no ensino básico, cursou ensino superior em Princeton e em Harvard antes de ingressar como professor na Universidade de Columbia 1 , situada em Nova York, atual epicentro do movimento estudantil antissionista norte-americano.

Em entrevista dada em 1994 ao intelectual anglo-paquistanês Tariq Ali 2 , Said comenta que sua vida política começou de fato com o recebimento da notícia da derrota dos exércitos sírio, egípcio e jordaniano na guerra dos 6 dias contra Israel em 1967, momento que marca a falência do nacionalismo egípcio de Gamal Nasser, do baathismo e do Pan-Arabismo de conjunto. Também é consequência da derrota do nacionalismo árabe a ascensão dos grupos de resistência armada palestina como o Al-Fatah, a Frente Popular para a Libertação Palestina (FPLP) e a Frente Democrática para a Libertação da Palestina (FDLP) – os dois últimos de influência maoísta. Esses três grupos, organizados majoritariamente nos campos de refugiados nos países árabes vizinhos, articularam-se na Organização para a Libertação da Palestina (OLP), que por muitos anos dirigiu a luta do povo palestino por sua libertação nacional em que o Al-Fatah (organização que defendia o nacionalismo árabe) era a maioria.

A partir desse momento, Said passa a escrever sobre o mundo árabe e se engaja na defesa da causa palestina. Seus escritos em livros e artigos para jornais norte-americanos e árabes são extensos, publicados em títulos (poucos com tradução em português) como: A questão da Palestina; Blaming the Victims; Covering Islam; The Politics of Dispossession; Peace and its discontents; The End Of The Peace Process; From Oslo to Iraq and the Road Map, assim como sua auto biografia Fora do Lugar. Através deles, o leitor consegue adquirir uma visão panorâmica sobre a história recente do mundo árabe e da resistência palestina partindo da ótica e dos posicionamentos do autor em um estilo de escrita objetivo que se assemelha a artigos de relações internacionais.

Nos textos dos 70s, além de denúncias das condições de vida e tratamento miseráveis que os refugiados da Nakba encontraram nos países árabes vizinhos que se diziam “irmãos”, é visível o entusiasmo do acadêmico palestino com o ascendente movimento armado para a libertação nacional palestina, sendo especialmente defensor do Al-Fatah e de sua liderança Yasser Arafat. Nestes textos, Said denuncia a Nakba e o Sionismo, o absurdo do Setembro Negro (momento em que o exército jordaniano massacra palestinos exilados e expulsa a OLP de seu território, exilando-a para o Líbano) e a consequente decadência do nacionalismo árabe, com a simbólica morte de Gamal Nasser. Indigna-se com o nacionalismo restrito de Sadat (sucessor de Nasser no Egito) e seu pacto com os EUA e Israel nos acordos de Camp David de 1979 em que reconhece o Estado de Israel e vira as costas para o mundo árabe. É ainda no final dessa década que seu engajamento político direto aumenta, sendo eleito membro do Conselho Nacional da Palestina em 1977, e que escreve seu clássico “A Questão Palestina” (1979) na tentativa de disputar a opinião pública norte-americana (profundamente pró-Israel), apontando para a dificuldade para o debate no ocidente pelo fato dos palestinos serem as “vítimas das vítimas” – em referência ao holocausto sofrido pelos judeus durante a segunda guerra.

Nos anos 1980, período de maior ativismo como membro do Conselho Nacional da Palestina (CNP), Said visita Yasser Arafat e a cúpula do Fatah algumas vezes, assim como tem trocas com intelectuais palestinos de peso, como o poeta Mahmoud Darwish. Em seus textos do período, denuncia a invasão de Israel ao sul do Líbano em 1982 para a expulsar a OLP do país, no que resulta em novo exílio de sua cúpula para a consideravelmente distante Tunísia. A invasão resulta também no massacre de 3 mil palestinos nos campos de refugiados de Shabra e Chatila cometidos pela Falange Libanesa, grupo fascistóide maronita cristão financiado por Israel. Com as repetidas e catastróficas derrotas que o movimento palestino sofre no período, o crítico literário passa a expressar seu descontentamento com a luta armada como algo ineficaz a ser superado, como um momento de imaturidade do movimento, para dar espaço à diplomacia como método político para a conquista da auto-determinação palestina, perspectiva que não abandonará até sua morte. O tom de desapontamento e crítica às lideranças árabes aparece com cada vez mais força ao longo da década, não poupando Yasser Arafat, a quem vê como distante do povo palestino, pouco afeito a críticas e cercado de bajuladores incompetentes. Vibra com a força e a energia da Primeira Intifada (com início em 1987) e em 1988, em uma reunião do CNP, participa da elaboração da Declaração de Independência da Palestina na Argélia, escrita por Mahmoud Darwish e lida por Yasser Arafat, em que a solução de dois estados, com o consequente reconhecimento de Israel, é oficialmente defendida pela OLP.

Os escritos políticos dos anos 1990 até o fim de sua vida são marcados pela presença de uma forte angústia por conta da crescente situação desesperadora do povo palestino, assim como pela ausência de alternativas no mundo árabe, cada vez mais dividido entre ditaduras autoritárias seculares, como Mubarak no Egito e Al-Assad pai na Síria, e o igualmente reacionário (porém, oposicionista à Israel) e crescente Islamismo Político, como as organizações sunitas Irmandade Muçulmana no Egito e o Hamas e a Jihad Islâmica na Palestina e, em sua versão xiita, o Hezbollah no sul do Líbano e o regime do Aiatolá Khomeini no Irã. As possíveis alternativas seculares ou foram assassinadas pelos nacionalismos árabes e pelos governos Islâmicos, como no caso dos Partidos Comunistas que deram apoio a esses mesmos regimes que os trucidaram, ou foram cooptadas, como é o caso da OLP. Expressão dessa náusea política é vista na já referida entrevista de Said à Tariq Ali, em que o escritor afirma que a “Traição” é um grande tema que pretendia investigar.

Para o crítico literário palestino, o começo da década, 1991, é marcada pela descoberta da leucemia. No mesmo ano, o Iraque, presidido pelo baathista Saddam Hussein, inicia sua guerra de conquista contra o Kwait, e que tem como consequência a intervenção imperialista dos EUA na chamada Guerra do Golfo. A grotesca ofensiva iraquiana é apoiada por Arafat, o que, somado à descoberta da doença, leva Said à renúncia de seu mandato no CNP e a se afastar do engajamento direto na política palestina.

Os desastrosos acordos de Oslo de 1993 e 1995, firmados entre os EUA , Israel e Arafat (que se encontrava exilado na Tunísia) foram feitos pelas costas do povo palestino e selaram uma paz desigual. Neles, de forma resumida, Israel se comprometeu a retirar parcialmente suas tropas dos territórios ocupados de Gaza e Cisjordânia, mas avançou com os assentamentos ilegais de colonos e manteve o controle econômico, diplomático e político da Palestina. Em troca, a OLP foi reconhecida como representante oficial dos palestinos, e ganhou uma gestão municipal de algumas cidades, tornando-se a Autoridade Palestina (AP) reconhecida por Israel, ao mesmo tempo que reconheceu o Estado sionista, abandonou o direito de retorno dos exilados (perto de 50% dos palestinos) e se responsabilizou pela segurança dos israelenses, passando a cumprir o papel de polícia política (a favor de Israel) nos territórios ocupados. A criação de um Estado Palestino autônomo ficaria relegada a um segundo momento, que evidentemente nunca chegou.

Said critica fulminantemente os acordos como resultado de uma liderança corrupta e incompetente. Traz relatos dos momentos das negociações, tirados de livros, artigos e conversas pessoais, em que é descrita a desinformação absoluta de Arafat e sua delegação (que mal conseguia se comunicar em inglês) sobre os territórios palestinos e o conteúdo dos acordos, perante um adversário (a delegação Israelense) que fez o que bem entendeu e impôs um acordo humilhante para os palestinos. De 1993 em diante, a Autoridade Palestina é retratada como composta por uma casta burocrática e corrupta que emprega os recursos recebidos para benefício pessoal de seus membros (que passam a construir mansões luxuosas em meio à miséria) e para manter seu enorme aparato repressivo que reprimia brutalmente qualquer voz dissonante – isso em meio à crescente miséria da população. Pessoalmente falando, a imagem desesperançosa da Palestina dos anos 1990 que Said retrata me ajudou a entender melhor a ascensão do reacionário Islamismo Político do Hamas e da Jihad Islâmica, pois estas foram as únicas forças políticas que conseguiram sobreviver em meio à repressão da AP, enfrentando-se com ela e mantendo-se como única força com uma postura de resistência à Israel. É nesse contexto que é possível entender a sangrenta disputa do Hamas e do Fatah pelo controle de Gaza nos anos 2000, evento criticado por Darwish como “tentativa de suicídio na rua” e que teve o primeiro como vitorioso.

Nos últimos anos dos 1990 e início dos 2000, o palestino-estadunidense passa a lamentar o baixo nível da intelligentsia árabe, incapaz de produzir um pensamento original independente dos regimes árabes autoritários ou do Islamismo Político e de entender o funcionamento do ocidente da forma como a intelligentsia ocidental estudava com afinco o mundo árabe para subjugá-lo (não foi menos crítico à intelligentsia norte americana por seu servilismo ao Estado imperialista dos EUA). Contra a imagem de um vendido e desmoralizado Yasser Arafat, passa a defender a imagem de Nelson Mandela como a de um líder de fibra que manteve suas convicções mesmo depois de anos na cadeia. O processo político que culminou no fim do apartheid na África do Sul, visto de uma forma pouco crítica, vira seu modelo de ação política para a libertação nacional do povo palestino. A necessidade de conquistar a opinião pública no ocidente e aliados judeus anti-sionistas ganha destaque dentro de uma nova perspectiva em que, diante da visível impossibilidade da solução de dois Estados, um Estado onde judeus e palestinos convivessem harmoniosamente é almejado como única solução possível. Como projeto cultural dessa perspectiva, fundou com o pianista e maestro judeu argentino Daniel Barenboim em 1999 a West-Eastern Divan Orchestra, cujo objetivo era unir na mesma orquestra jovens músicos de Israel e dos países árabes.

Nos anos finais de sua vida, participa em 2002 da fundação da Iniciativa Nacional Palestina (INP), uma tentativa de criar uma terceira força política laica e democrática como alternativa à OLP e ao Hamas. Nunca chegou a ter muita expressividade, com apelo em particular em um setor da intelectualidade secular e entre os exilados (nos quais Said se inclui) mas pouco ou nenhum peso nos campos de refugiados.

Said, até sua morte, defendeu a causa palestina no seio do imperialismo norte-americano, enfrentou a opinião pública sionista (forte nos Estados Unidos) com artigos, livros, aulas públicas e entrevistas e se envolveu no movimento de libertação palestino. Por conta disso, foi perseguido, chamado de “professor do terror” e teve seu escritório na Universidade de Columbia incendiado. Diante de uma quantidade enorme de intelectuais que, por medo, indiferença ou covardia, se ausentam até hoje de se colocar publicamente a favor do povo palestino (como muitos dos intelectuais pós e decoloniais, herdeiros de sua obra teórica), a postura corajosa de Said deve ser reivindicada.

Alguns apontamentos teóricos

Aqui gostaria de entrar em alguns aspectos teóricos de Said. Em primeiro lugar, é preciso ter claro, Edward Said não era nenhum socialista, muito menos um revolucionário. Quando cita as saídas revolucionárias para o mundo árabe, o faz com um tom de deboche, como sendo algo idealista (não no sentido filosófico, mas desconectado com a realidade concreta) ou impossível. Politicamente está mais próximo de um ideário democrático reformista, do espectro do que se convencionou chamar de pós-marxismo. Não à toa, foi defensor dos nacionalismos burgueses e, com suas falências, das saídas diplomáticas e democráticas, sem nunca questionar de fundo o capitalismo. Teoricamente, é radicalmente eclético e sua relação com o marxismo é contraditória.

Talvez pelo ambiente acadêmico norte-americano (segundo a tese de Gilbert Archar 3 ), o crítico literário palestino nunca aparentou se debruçar sobre Marx com profundidade ou sobre os clássicos do marxismo revolucionário como Rosa, Lênin e Trótski. Mesmo os intelectuais marxistas de renome do mundo árabe e da Índia nunca foram seriamente levados em consideração.

Stephen Howe, em artigo intitulado “Edward Said and Marxism: anxieties of influence” 4  comenta que Said discute sua relação com o Marxismo diversas vezes de forma “breve, alusiva e ambivalente”. Howe cita uma passagem de Said durante uma entrevista que diz que “o marxismo, na medida em que é uma ortodoxia, uma ontologia, mesmo uma epistemologia, parece-me extraordinariamente insuficiente… mas também nunca me entreguei ao anti-marxismo”. Os nomes do marxismo que o autor palestino-estadunidense reivindica são os do chamado, segundo Perry Anderson 5 , Marxismo Ocidental como Lukács, Adorno, Marcuse, Lucien Goldmann, Raymond Williams, Fredric Jameson e um Gramsci lido em chave culturalista (hegemonia pensada em termos culturais) e reformista (guerra de posições como estratégia reformista), com um curioso acento nos aspectos geográficos da obra do revolucionário sardo. Para Anderson, o que caracteriza os autores do Marxismo Ocidental é sua distância com problemas do “marxismo clássico” como a economia política e o pensamento político estratégico e seu foco em problemas da filosofia, da cultura e da estética. Howe ainda aponta para a estranha negligência de Said com autores marxistas palestinos como Emile Habibi, Emil Touma e TawWq Zayyat.

No início da carreira do crítico literário, as tensões presentes nos textos de análise política estavam divorciadas de suas elaborações sobre crítica literária, como em Beginins 6  e Joseph Conrad and the Fiction of Autobiography 7  em que a política e o imperialismo em suas análises sobre o seu simultaneamente amado e odiado escritor John Conrad (escritor de romances como O coração das trevas e Nostromos) aparece apenas tangencialmente (diferente das análises posteriores que faz do escritor). É em sua obra mais reconhecida, Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente 8 , que a análise da cultura e o engajamento político se mesclam. Nela, utilizando o método do primeiro Foucault de análise do discurso (discurso entendido como uma repetição difusa e dispersa em diferentes textos), e preocupado com a forma como o Ocidente olha para o Oriente, defende a existência de um discurso orientalista, que, para além da disciplina acadêmica, está presente na tradição ocidental desde a antiguidade clássica até o presente, que representa o oriental como um ser inferior.

Gilbert Achcar, teórico marxista Libanês, comenta que a tese não é original e deve muito a elaborações de autores como a do cientista político franco-egípcio Abdelmalek com sua obra “Orientalism in crisis” de 1963 e a do historiador marxista francês Maxime Rodinson e sua crítica ao eurocentrismo em “The western image and western studies of Islam”, autores devidamente reconhecidos por Said. A inovação de Said foi incluir dentro do escopo de autores considerados eurocêntricos nomes do chamado cânone ocidental, como o próprio Karl Marx, a partir do método foucaultiano. Assim, o discurso orientalista como representação do Outro é visto como a base para que ocorresse colonização do Oriente pelo europeu – uma visão filosoficamente culturalista e a-histórica da colonização que ignora as elaborações do marxismo como o Imperialismo de Lênin ou Capitalismo e Escravidão de Eric Willlians em que explicam as bases materiais da colonização e sua relação com o desenvolvimento do capitalismo.

Essa obra inaugura tanto a matiz pós-estruturalista do chamado pensamento acadêmico Pós-Colonial quanto a crítica pós-estruturalista à Marx que afirma que o revolucionário alemão seria parte do discurso orientalista e um eurocêntrico que via como positivo a colonização dos não-europeus por ser parte de um progresso que caminha no sentido do progresso da Europa industrializada. Para essa operação teórica, faz uma citação de um texto de Marx de 1853, 5 anos depois do Manifesto Comunista, chamado “A dominação inglesa na Índia”, escrito para o New York Daily Tribune, jornal progressista norte-americano em que Marx era correspondente como forma de se manter financeiramente.

Aijaz Ahmad, filósofo marxista indiano, elaborou no livro In Theory: Nation, Classes, Literatures 9  uma resposta de fôlego ao conjunto da tese contida no livro Orientalismo, pegando as contradições da utilização do método foucaultiano ( anti-humanista, de raízes nietzschianas) com o profundo humanismo de Said influenciado pelo filólogo alemão Erich Auerbach, autor do canônico Mimesis. Em relação a crítica à Marx, Ahmad afirma que, na passagem citada, o revolucionário alemão via como uma possibilidade que a colonização inglesa levasse ao desenvolvimento do capitalismo industrial na Índia e, consequentemente, à aniquilação da estrutura tradicional de castas do campesinato, profundamente autoritária e opressiva, para a instauração da estrutura capitalista de classes, e isso explicaria o seu “tom” aparente de otimismo com a colonização. Ao contrário dessa hipótese, o que Marx observou nos anos seguintes foi o fortalecimento e aproveitamento da estrutura de castas por parte do colonialismo inglês como forma de manter seu domínio político e econômico sobre a Índia. Observou também não o desenvolvimento da indústria, mas a utilização da colônia para a produção e extração de matéria prima para a indústria europeia. Assim, Marx teria mudado o tom com que se referia à colonização inglesa nos anos seguintes. De toda forma, o escritor de O Capital nunca deixou de denunciar a violência colonial e de defender as lutas anticoloniais.

Ahmad ainda critica Said por não citar a importância dos escritos de Marx sobre a Índia para a própria intelectualidade indiana elaborar sobre sua formação social e organizar suas lutas emancipatórias, por não considerar autores árabes e indianos (muitos marxistas) e também por não ver as opressões de casta que ainda precisam ser derrubadas em países “orientais” como a Índia. Além disso, critica o crítico literário por focar apenas em obras do ocidente, ocultando a produção teórica do chamado terceiro mundo.

Kevin Anderson, teórico marxista norte-americano, também responde à crítica de Said no seu livro Marx nas margens 10  e em seu artigo “Não, Karl Marx não era eurocêntrico” 11  aponta para o ocultamento por parte do crítico palestino do desenvolvimento intelectual de Marx no sentido da elaboração sobre as lutas anticoloniais, sobre etnia, e uma crescente compreensão multilinear do desenvolvimento histórico multilinear.

A resposta às críticas veio na forma de elaboração teórica no livro Cultura e Imperialismo 12 , em que Said trás para a análise não só os cânones europeus (como fez em Orientalismo) mas também autores do então terceiro mundo, como Gabriel Garcia Márquez, Pablo Neruda, Ngugi Wa Thiong’o, Salmon Rushid, Mahmoud Darwish, o marxista C.L.R James, e outros, construindo de certa forma um contra cânone anticolonial. Howe comenta que o resgate que faz de escritos de revolucionários do mundo colonial de um certo marxismo como Almir Cabral, Aimé Césaire e Frantz Fanon são vistos por Said como “modelos de representação do esforço humano no mundo contemporâneo”. Em particular no que diz respeito à Fanon,em que dedica maior espaço na obra, sua apreciação é feita de forma descontextualizada e desistoricizada para a apresentação de um Fanon remodelado e mais compatível com suas próprias concepções político-ideológicas, defensor de um nacionalismo não restrito e de um horizonte emancipatório abrangente e contrário a um identitarismo sectário.

Sua relação com a pós-modernidade é ambígua. Por um lado utiliza o método foucaultiano para a composição de Orientalismo, inaugura a matiz pós-estruturalista do pensamento pós-colonial, reivindica os autores indianos pós-estruturalistas dos Estudos Subalternos, reivindica a visão fragmentária de Lyotard e defende também o papel do intelectual como sendo o de um crítico do poder que pensa independente das forças atuantes. Por outro, também reivindica o modelo de intelectual orgânico de Gramsci como sinônimo de intelectual engajado politicamente que elabora de dentro dos movimentos reais, defende que o papel do intelectual é pensar alternativas mesmo em situações desesperançosas (como é o caso palestino), se define come anti-anti-marxista e critica duramente o tipo de intelectual niilista pós-estruturalista e a elaboração teórica radical desengajada politicamente, (como o New Criticism norte-americano e o deconstruicionismo francês) que negligencia a história e que pouco serve para transformar a realidade:

A maneira oposicionista do novo New Criticism não representa com precisão suas ideias e práticas, que, afinal de contas, solidificam e garantem ainda mais a estrutura social e a cultura que as produziram. A desconstrução, por exemplo, é praticada como se a cultura ocidental estivesse sendo desmantelada; a análise semiótica argumenta que seu trabalho equivale a uma revolução científica e, portanto, social nas ciências do homem… Há um debate oposicionista sem oposição real.

Em Cultura e Imperialismo, assim como em escritos dos anos 1980 em diante, Said se afasta do último Foucault por suas posições de apoio ao islamismo político xiita durante a Revolução Iraniana, por seu completo ceticismo político fruto do desfecho desse processo histórico e por seu anti-humanismo (assim como do conjunto da intelectualidade francesa). Segundo Howe, Said ainda critica Foucault pela incapacidade do filósofo francês de lidar com ou fornecer uma explicação para a mudança histórica, assim como pela presença em sua teoria de um total controle exercido pelas estruturas que leva ao apagamento da possibilidade de agência pelo sujeito. Contra a conclusão pessimista a que esse tipo de elaboração teórica conduz, Said defende que “as narrativas históricas de mudança podem trazer mensagens de emancipação”. Essa posição se liga à defesa que Said faz para que os Palestinos desenvolvam sua própria narrativa emancipatória, oposta à sionista.

Por fim, apesar do evidente ecletismo teórico, é possível dizer que suas elaborações teóricas foram desenvolvidas em função de ajudar a refletir sobre suas angústias políticas no mundo árabe e que até o fim foi um assíduo defensor do humanismo, dos preceitos das luzes e de todos os aspectos da emancipação humana.

A Questão Palestina e a revolução permanente

A ausência do marxismo e, consequentemente, de um horizonte revolucionário nas análises de Said fez com que não enxergasse uma saída de fundo para a questão Palestina. Assim, o caráter de classe dos atores políticos raramente aparecem em seus escritos, e os limites da política das direções burguesas e pequeno-burguesas foram vistos como atos de “traição”. De forma “contrapontística” (parafraseando o próprio Said), apresentaremos aqui uma saída para a questão palestina a partir do marxismo revolucionário, o marxismo de Trótski 13 , do militante trotskista Jabra Nicola (1912-194). Para isso, recorri aos textos Jabra Nicola: uma estratégia trotskista para a Palestina 14  de Enzo Dal Fitto, publicado originalmente em francês no RP Dimanchee , e o texto A libertação palestina e a revolução permanente 15  de Jimena Vergana, publicado originalmente em espanhol no Ideas de Izquierda Argentino, ambos traduzidos para o português e publicados no Ideias de Esquerda brasileiro.

Jabra Nicola, cristão palestino nascido em Haifa, militou no Partido Comunista Palestino na década de 1930, participou da fundação da Quarta Internacional em 1938 e em 1963 se junta à Organização Socialista de Israel (OSI). Em seus escritos nos anos 1970, incompletos pois faleceu em 1973, parte do Marxismo de Trótski e sua lei do desenvolvimento desigual e combinado para analisar a estrutura social do Oriente Médio e sua deformação constante, fruto da pressão do capital ocidental importado pela colonização, para em seguida apontar para a impotência das direções burguesas e pequeno-burguesas na luta palestina. Segundo Jimena Vergara, para Nicola ”a libertação palestina e árabe do jugo do imperialismo e do sionismo não pode ser realizada no contexto de uma revolução democrático-burguesa ou de uma ‘revolução nacional’ simplesmente porque as classes dominantes locais são extremamente dependentes ou extremamente fracas diante do imperialismo”. Nicola ainda escreve que “as tarefas da revolução nacional têm sido constantemente transferidas para outros sujeitos políticos, e cada um deles revelou, após um curto período, sua própria incapacidade de transformar decisivamente a situação política regional”.

Nesse cenário, uma quádrupla transferência das tarefas da revolução nacional ocorreu até agora. Primeiro, a liderança da luta contra o colonialismo antes da Nakba de 1948, em particular a greve geral palestina de 1936-39 contra o sionismo e o mandato britânico detonada pela influência da greve geral Síria, caiu nas mãos das “famílias palestinas abastadas, anteriormente proprietárias de terras que, embora tenham perdido suas terras para os britânicos e os sionistas, receberam consideráveis pagamentos e enormes benefícios do sionismo para formar as classes abastadas palestinas do sistema de domínio colonial” . Após a derrota da greve geral e da Nakba, a direção da luta pela libertação nacional caiu nas mãos das lideranças provenientes da pequena burguesia pan-árabe, como Gamal Nasser no Egito e o partido baathista na Síria que militarizavam seus Estados devido à ameaça israelense que, como aponta Enzo Dal Fitto, “se tornou um aliado objetivo para o endurecimento político desses regimes e uma poderosa fonte de legitimação para seu aparato militar” e que resultou “numa paciente postura de espera por parte da pequena burguesia palestina”. O colapso dos exércitos árabes na guerra dos 6 dias de 1967 mostrou a falência do pan-arabismo. Dessa derrota emerge os movimentos nacionalistas palestinos (Al-Fatah, FPLP, já citados anteriormente) organizados na OLP.

A partir do exílio da OLP na Tunísia e sua colaboração com o Estado sionista nos Acordos de Oslo, uma quarta transferência levou os objetivos da libertação nacional para uma pequena-burguesia religiosa, o “islã político”, ligadas a reacionárias burguesias árabes (Qatar) e persas (Irã), que conseguiram capitalizar a decadência do nacionalismo burguês árabe com um discurso antiamericano e anti-israelense. É importante frisar que o problema das organizações islâmicas revolucionárias não é apenas seu programa de fundar um reacionário Estado confessional que tenha a moral religiosa como valor absoluto, como critica Said (embora seja um problema fundamental). Como aponta Claudia Cinatti, em artigo de 2009 chamado “Islamismo político, antiimperialismo y marxismo” 16 :

“O Hamas capitalizou a decadência do nacionalismo burguês árabe, mantendo um discurso anti-americano e anti-israelense, sem sequer mencionar o estabelecimento de um Estado islâmico baseado na sharia. Mas além dos programas eleitorais circunstanciais e de manter a resistência contra a ocupação israelense, a estratégia de fundar um Estado confessional no território histórico palestino tem um caráter reacionário e é incapaz de proporcionar uma saída progressiva para as justas aspirações nacionais do povo palestino. A moral religiosa como valor absoluto e lei do Estado não apenas atenta contra liberdades democráticas elementares ao manter um instrumento de opressão social, mas também pretende ocultar que nas sociedades muçulmanas existem, como no ocidente, exploradores e explorados, e que a religião está a serviço de manter o domínio dos primeiros.”

Em um pensamento nada esquemático nem mecanicista, partindo do abstrato da lei do desenvolvimento desigual e combinado, indo para o concreto da estrutura social do Oriente Médio e, a partir daí, tirando as conclusões da Revolução Permanente de Leon Trótski em sua particularidade concreta, Jabra Nicola defende, dada a debilidade e dependência das classes dominantes árabes, que a libertação árabe e palestina só pode ocorrer com a classe trabalhadora como sujeito dirigente em uma revolução que avance das tarefas democráticas e nacionais para as socialistas, que são as que podem atender as demandas materiais das massas. No caso específico Palestino, Enzo Dal Fitto assim interpreta o pensamento de Nicola:

“A necessidade de adquirir terras, às vezes comprando-as por um preço acima de seu valor, e de empregar judeus provenientes de sucessivas ondas de imigração justifica uma política racista baseada na exclusividade do emprego judaico no setor industrial e na proibição da venda de terras aos árabes. Esta política enfraqueceu as estruturas feudais da economia agrária ao mesmo tempo em que impediu a proletarização dos árabes devido à proibição de que várias empresas judaicas contratassem trabalhadores árabes. Nessas condições, o feudalismo começou a desaparecer sem que uma estrutura econômica capitalista pudesse se desenvolver. Essa estrutura econômica impediu o surgimento de um forte liderança política árabe.”

Essa explicação materialista para o problema que Edward Said apontou tantas vezes em seus escritos (o problema da liderança política) como algo moral, leva Nicola à conclusão de que, para o triunfo da revolução nacional palestina, é necessário organizar o proletariado em escala regional, e não apenas nacional, unificando a classe trabalhadora árabe por trás da revolução anti-imperialista e socialista. Para Dal Fitto “a luta puramente nacional […] só pode ser realizada renunciando dialeticamente à primazia da questão nacional.”

Isso significa que a luta pela causa palestina não pode se separar do confronto entre as burguesias árabes e o proletariado, diferentemente do que historicamente faz as diversas organizações do movimento de libertação palestino que tinham como política a não intervenção no conflito de classe dos Estados árabes burgueses (que sempre manipularam a causa palestina de acordo com seus interesses geopolíticos) por considerá-las aliadas da causa palestina. Como aponta Jimena, “a solidariedade sem fronteiras da classe trabalhadora árabe é o que pode oferecer apoio material, militar e político à causa palestina, se os trabalhadores e oprimidos se libertarem do jugo de seus próprios governos”.

Said, que em seus escritos debochou de tal perspectiva como irreal, com a falência da OLP, não encontrou outra alternativa à libertação nacional palestina a não ser o impotente apelo à ONU e à diplomacia para que interviesse a favor dos palestinos. Nicola, pelo contrário, tira a conclusão de que é necessária uma organização política leninista pan-árabe do proletariado. Aqui, as palavras de Jimena são válidas:

Desde a revolta árabe e sua greve geral de nove meses contra a dominação britânica e a expansão sionista, passando pelas três heroicas intifadas, até os enormes processos de luta de classes nos países do Oriente Médio, como a Primavera Árabe, a greve geral em Israel e na Palestina em 2021, a única força capaz de deter o genocídio e libertar a Palestina tem se feito presente, mas infelizmente, atuando sob a égide de lideranças e programas que não representam seus interesses históricos.

O potencial internacionalista da luta de classes no Oriente Médio, fundamental para essa perspectiva estratégica, ficou evidente durante os eventos da Primavera Árabe (que tenho certeza que Said teria sido um entusiasta se tivesse vivido para ver) em que uma revolta que se iniciou na Tunísia, depois que um vendedor ambulante (Mohammed Bouazizi) se imolou em protesto por ter suas mercadorias despojadas pela polícia, se espalhou para o conjunto da região, como Líbia, Síria, Argélia e Egito. Como escreveu Jimena, “o ciclo da luta de classes conhecido coloquialmente como ‘Primavera àrabe’ demonstrou a unidade econômica, cultural histórica e social que une o proletariado árabe do Magreb até a Síria, não apenas por laços linguísticos, religiosos ou culturais, mas por uma história compartilhada de exploração, opressão e luta de classes”. O movimento internacional de solidariedade à Palestina, com peso nas universidades europeias e norte-americanas (que também penso que Said vibraria com ele, assim como com outros movimentos como o Black Lives Matter), também dão mostra do potencial internacionalista. Se a Primavera Árabe tivesse triunfado em algum país e a classe trabalhadora tivesse sido exitosa na passagem da revolução nacional para a revolução socialista, sem dúvida o movimento palestino estaria em melhores condições para enfrentar o imperialismo e o colonialismo sionista.

É válido colocar ainda a reflexão de Jabra Nicola sobre o proletariado judeu. Analisando o tipo de colonialismo sionista, diz que “qualquer solução política séria para o problema palestino deve considerar o fato de que, ao contrário das comunidades de colonos europeus na África do Sul, na Rodésia ou na Argélia, os judeus na palestina não constituem uma classe superior, mas uma nação inteira, com uma estrutura completa própria”. Isso exige que se leve em consideração, a partir de uma política de classe, os interesses do proletariado israelense como uma força política semi-autônoma. Ciente que o proletariado israelense era a base social do Estado colonial, Nicola defendia que qualquer “política revolucionária que se desenvolvesse em seu seio implicava abraçar a luta pela autodeterminação palestina e a ruptura total da classe trabalhadora israelense com o sionismo”. Said, que também via a importância de ter aliados judeus antissionistas, coerente com sua forma pequeno-burguesa democrática de pensar política, apostava apenas na ajuda da intelligentsia judia crítica ao sionismo, sem nunca considerar os aspectos de classe internos à sociedade israelense, isto é, a ajuda que o proletariado de Israel poderia prestar à luta contra a burguesia sionista. O que Said e Nicola concordavam é que a retórica beligerante e que iguala o povo israelense à política do Estado sionista, apesar da legitimidade das demandas da resistência palestina, ajuda o Estado sionista a manter o consenso sobre o conjunto da população em uma “unidade nacional”, o que inclui o proletariado e a intelligentsia crítica, e facilita a política sionista de repressão ideológica.

Said, até os acordos de Oslo, defendeu a solução de dois Estados junto ao conjunto do movimento palestino (solução revivida recentemente por alguns Estados diante do genocídio em curso). Com a falência dos acordos e a cooperação da OLP com o Estado sionista, passa a defender a perspectiva de um Estado binacional judeu e árabe, solução impossível diante do sionismo e do imperialismo norte-americano. Para Nicola, devido ao caráter singular da estrutura social israelense, que possui estrutura de classes completa e que não é simplesmente um desdobramento da população da metrópole mãe, mas uma metrópole colonial construída no coração de sua colônia, “é absolutamente fundamental conceder à minoria nacional judaica do Oriente Médio o direito à existência e à autodeterminação, condicionado à destruição prévia das estruturas coloniais e imperiais do Estado sionista. Além disso, a extrema dependência da economia israelense do imperialismo americano exige um programa de cooperação econômica com outras nações árabes socialistas. Coloco aqui a passagem de Enzo Del Fitto que sintetiza a saída dada por Jabra Nicola sobre a questão palestina:

Para Nicola, a revolução palestina permanente, nessa forma absoluta, baseia-se na seguinte hipótese estratégica: as limitações objetivas que impedem o desenvolvimento da revolução nacional palestina não podem ser rompidas apenas através dessa luta e no âmbito exclusivamente nacional; apenas uma revolução socialista pode superar essa resistência através de uma luta de classes regional contra a reação árabe cúmplice do imperialismo e do Estado israelense, chicote do capital para combater os movimentos socialistas no Oriente Médio, graças à unificação do proletariado israelense e árabe, cuja possível proximidade Nicola destaca. Ao dar à revolução palestina uma área ampliada de intervenção estratégica, a libertação da Palestina será o resultado efetivo de uma transformação socialista regional e da luta por uma União Socialista dos países árabes, dentro da qual a minoria nacional judaica terá plenos direitos. Diante das soluções burguesas ou pequeno-burguesas que defendem a recomposição de um Estado binacional ou a construção de dois Estados, Jabra Nicola argumenta que essas opções nacionalistas são impraticáveis como tal: porque o objetivo imediato da libertação da Palestina, onde judeus e árabes poderiam viver em harmonia, só pode ser alcançado através da construção de um suporte socialista nos países vizinhos e da luta por uma união árabe socialista.

Conclusão

Por último, o Oriente Médio hoje pode ser visto, como Emílio Albamonte e Matias Maiello apontaram em Rumo a uma configuração pré-guerra entre potências no cenário internacional? 17 , cumprindo o papel que a região dos balcãs cumpriu no sistema de Viena nos anos prévios à Primeira Guerra:

“porque foi o Oriente Médio o destino privilegiado da exportação do belicismo vedado no centro do sistema (Iraque em 1990-1991 e em 2003 junto com o Afeganistão, o Líbano em 2006 e toda a série de intervenções militares na Síria, Líbia, etc., após a Primavera Árabe). O fato de que atualmente o Estado de Israel esteja levando a cabo um genocídio a céu aberto, liquidando os vestígios de hegemonia que poderiam restar ao imperialismo norte-americano –assim como suas pretensões de “normalizar” as relações entre o mundo árabe e o Estado de Israel – é um claro indício da profundidade da crise. O perigo de uma guerra regional com o envolvimento direto do Irã – aliado da Rússia e da China – daria ao conflito uma projeção global de consequências imprevisíveis.”

Estamos em um momento em que as tensões geopolíticas, causadas pela decadência da hegemonia do imperialismo norte-americano e a ascensão da China com traços cada vez mais imperialistas, crescem dia a dia sem a perspectiva de resolução por fora de saídas bélicas. A guerra entre a Rússia e a Ucrânia (com o envolvimento da OTAN por procuração) segue em curso e as “linhas vermelhas” para o envolvimento das potências imperialistas recuam a cada dia. No Oriente Médio, Israel segue com o genocídio do povo palestino, tem ameaçado invadir o sul do Líbano contra o Hezbollah e, enquanto fechava este texto, tensionou ainda mais com o Irã ao assassinar Haniyeh, líder do Hamas, em seu território, ameaçando uma escalada regional da guerra. Assim, se reatualiza a caracterização de nossa época feita por Lenin como sendo de “crises, guerras e revoluções”, sendo essa última alcançada pela política e pela estratégia.

Na obra de Schiller, Wallenstein, durante a noite, ao observar as estrelas para interpelar o curso futuro dos acontecimentos, diz: “O dia vem, e Marte comanda a hora”. Em tempos como o nosso, em que o cheiro de pólvora caem dos jornais, em que Marte, o deus da guerra, prepara novos banhos de sangue através seus agentes burgueses e imperialistas e dá mostras de sua face diabólica como nas imagens sombrias transmitidas em tempo real do povo palestino sendo dizimado por agua contaminada com pólio, o contraponto entre Said e Nicola presente nesse texto foi feito em função de lançar luz sobre qual sujeito social tem o potencial de puxar o freio de emergência e parar o “Horror!”, expresso por Kurtz em O Coração das trevas. É a partir daí que se pode pensar sobre quais são as tarefas necessárias para conquistar o horizonte emancipatório radical tão almejado por Edward Said.

 

NOTAS DE RODAPÉ

1. SAID, E. Fora do lugar. Companhia das Letras, São Paulo 1. ed.

2. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=YvR3qeroQ2M

3. GILBERT, Achcar. Marxism, Orientalism, Cosmopolitanism. [S. l.]: Haymarket Books, 2013.

4. HOWE, Stephen. Edward Said and Marxism: Anxieties of Influence Cultural Critique, v. 67, n. 1, p. 50–87, 2007.

5. ANDERSON, Perry. Considerações Sobre o Marxismo Ocidental: nas Trilhas do Materialismo Histórico. 2. ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2019.

6. SAID, Edward. Beginnings: Intention and Method [S. l.]: Columbia University Press, 1985.

7. SAID, Edward. Joseph Conrad and the Fiction of Autobiography [S. l.]: Columbia University Press, 2008.

8. SAID, Edward. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente [S. l.]: Companhia de Bolso, 2007

9. AHMAD, Aijaz. In Theory: Nation, Classes, Literatures, Londres, Verso, 2008

10. ANDERSON, Kevin. Marx nas Margens: Nacionalismo, etnia e sociedades não ocidentais, Boitempo Editorial, São Paulo, 2021.

11. ANDERSON, Kevin. Não, Karl Marx não era eurocêntrico. Disponível em: <https://jacobin.com.br/2022/12/nao-…> .

12. SAID, Edward W. Cultura e imperialismo. Editora Companhia das Letras, 2011.

13. Defino assim para distinguir esse Marxismo da deturpação presente no marxismo stalinista ou maoísta (corrente em algumas organizações na palestina e Oriente Médio, inclusive guerrilheiras como a FPLP e a FDLP) e do Marxismo Ocidental.

14. FITTO, Enzo. D. Jabra Nicola: uma estratégia trotskista para a Palestina. Disponível em: <https://www.esquerdadiario.com.br/J…> .

15. VERGARA, J. A libertação palestina e a revolução permanente. Disponível em: <https://www.esquerdadiario.org/A-li…> .

16. CINATTI, Claudia. Islam político, antiimperialismo y marxismo. Disponível em: https://www.ft-ci.org/Islam-politico-antiimperialismo-y-marxismo.

17. MAIELLO, Matias.; ALBAMONTE, Emilio. Rumo a uma configuração pré-guerra entre potências no cenário internacional? Disponível em: <https://esquerdadiario.com.br/Rumo-…>

 

 

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