Tatiane Lopes
Antonio Gramsci é, merecidamente, reconhecido como um marxista que enriqueceu a análise sobre o Estado contemporâneo. Em seus Cadernos do Cárcere, particularmente no caderno 13, conhecido como o caderno de Maquiavel: notas sobre o Estado e a política, há importantes desenvolvimentos sobre a relação e interpenetração entre sociedade civil e sociedade política, partes de uma inovadora categoria que conforma uma totalidade dialética: o Estado Integral. Sua análise, tomando a analogia do Centauro de Maquiavel para pensar o Estado, da força e do consenso, é particularmente relevante para pensar, e atuar, nas sociedades e estados contemporâneos. O reconhecimento dessa inovação do pensamento do marxista sardo é, por outro lado, contraposto a um suposto simplismo do pensamento marxista clássico sobre o Estado. É corrente entre reflexões e debates marxistas acadêmicos uma contraposição entre Gramsci e Lênin não somente na análise, mas sobretudo na estratégia política. No presente texto, buscaremos apresentar argumentos que se contrapõem a essa visão, mostrando alguns pontos de contato entre as análises e estratégias políticas desses dois fundamentais pensadores e políticos revolucionários marxistas do século XX.
Coutinho e Anderson: duas interpretações que, em sentidos opostos, contrapõem Lênin e Gramsci no conceito de Estado e na estratégia política
Em nosso entendimento, a comum contraposição referida acima ocorre por interpretações que simplificam o pensamento de ambos autores, tanto de Gramsci como Lênin, e ela é feita por defensores e detratores de ambos. Num dos pólos dessa visão, Lênin teria elaborado somente uma definição geral do caráter de classe do Estado burguês, com pouca ou nula atenção nos mecanismos de construção de consenso, tendo focado quase exclusivamente nos aspectos coercitivos do Estado. Como consequência teórica dessa abordagem, e/ou por necessidade imposta pelo terreno autoritário da Rússia Czarista onde teorizou e dirigiu a revolução, teria desenhado uma estratégia política que seria apenas de “guerra de manobra”, em outras palavras: insurrecional.
Um bom exemplo de tal abordagem, que em nossa visão faz uma interpretação simplificadora do marxismo clássico e particularmente de Lênin, é possível de ser encontrada em Coutinho (1997), que interpreta que Marx, Engels e especialmente Lênin teriam uma visão “restrita” de Estado. Coutinho é reconhecidamente uma referência na interpretação de Gramsci no Brasil, tendo, no entanto, elaborado uma leitura do marxista italiano que leva a uma estratégia reformista contraposta à estratégia insurrecional, que ele atribui somente a Lênin e os bolcheviques, e não a Gramsci. Abaixo podemos observar como Coutinho apresenta sua crítica a suposta visão restrita de Estado entre os marxistas clássicos:
Se lermos o Manifesto Comunista de 1848, que é talvez o primeiro texto político significativo de Marx e Engels, veremos que nele o Estado moderno é definido sinteticamente como “o comitê executivo da burguesia”, com o objetivo de gerir os negócios comuns dessa classe e impor seus interesses às demais classes, uma imposição que tem na violência e na opressão os seus principais recursos. Em suma, o Estado é definido como um aparelho que representa apenas os interesses da classe dominante e que faz valer tais interesses através da coerção. (…) E tampouco é casual que, em 1917, em O Estado e a revolução, Lenin houvesse retomado literalmente essa concepção restrita: com efeito, o Estado czarista que ele se empenhava em abater apresentava-se como uma arma das classes dominantes, como uma ditadura autocrática. Mas Lênin e os bolcheviques, escrevendo no início do século XX, estavam equivocados quando generalizaram essa concepção para todos os Estados capitalistas da época, ou seja, quando a apresentaram como a única verdadeira concepção marxista de Estado. (Coutinho 1997, p.160-161)
Nessa crítica de Coutinho se apresenta uma visão de que, em Marx, Engels e Lênin haveria uma concepção “restrita” de Estado e que contemporaneamente o Estado seria completamente distinto e que os bolcheviques teriam se equivocado em extrapolar essa visão “restrita” para além da Rússia Czarista. Com a ideia de Estado “restrito”, Coutinho quer dizer que para o marxismo clássico a definição de Estado expressa apenas os elementos coercitivos (polícia, exército, judiciário). Neste texto, buscaremos mostrar que há algo mais do que apenas coerção nas definições e preocupações de Lênin sobre o Estado, mesmo que sem grande desenvolvimento e que este, ao contrário do que defende Coutinho, não tentou exportar essa visão como única e verdadeira.
Em sentido teórico oposto ao de Coutinho, poderíamos situar Perry Anderson, importante historiador marxista inglês de origem trotskista, que aportou com contribuições relevantes no marxismo do pós-guerra, e que em sua crítica à Gramsci buscou apontar suas “antinomias”, em nome de uma suposta defesa de uma ortodoxia em relação à teoria de Estado no marxismo. Resumidamente, Anderson aponta que ocorreria um sobredimensionamento do consenso e que ainda haveria uma contradição não dialética entre consenso e coerção em Gramsci. Essa contradição, segundo o historiador inglês, chegaria até mesmo a nublar a definição de fronteiras entre sociedade política e sociedade civil. Diz Anderson: “O resultado é uma falta de clareza estrutural entre lei e costume, regras jurídicas e normas convencionais, a qual impede toda demarcação precisa das competências respectivas da sociedade civil ou do estado em uma formação social capitalista.” (ANDERSON, 1981, p.26)
Diversos autores estudiosos gramscianos desenvolvem críticas à leitura de Anderson, um deles é Juan Dal Maso, camarada do PTS, nossa organização irmã na Argentina. Em seu livro O marxismo de Gramsci aponta a falta de entendimento de Anderson sobre o conceito de Estado Integral como uma relação dialética entre sociedade civil e sociedade política, e que na realidade histórica, diferentemente do que acontece na teoria, sociedade civil e sociedade política, ainda que possuam termos distintivos entre si, são inseparáveis. E é precisamente aí que reside um dos maiores aportes de Gramsci ao marxismo.
Para seguirmos nossa argumentação, vejamos como Gramsci expõe a relação entre consenso e coerção:
“Outro ponto a ser fixado e desenvolvido é o da “dupla perspectiva” na ação política e na vida estatal. Vários graus nos quais se pode apresentar a dupla perspectiva, dos mais elementares aos mais complexos, mas que podem ser reduzidos teoricamente a dois graus fundamentais, correspondentes à natureza dúplice do Centauro maquiavélico, ferina e humana, da força e do consenso, da autoridade e da hegemonia, da violência e da civilidade…” (GRAMSCI, 2020, C13 §14 – p.33-34)
Nesta passagem, é possível ver toda riqueza dialética da categoria de Estado Integral de Gramsci, e que é justamente na totalidade ilustrada pelo Centauro, que é fera e homem ao mesmo tempo, onde podemos entender o Estado que integra em seu todo força e consenso, autoridade e hegemonia, sociedade política e sociedade civil. Anderson erra ao criticar Gramsci justamente na fortaleza dialética de sua definição, erra ao não admitir a interpenetração desses âmbitos diferenciados, mas que constituem conjuntamente um mesmo Estado Integral.
É particularmente interessante pensar que, essa perspectiva dupla do Estado Integral significa que de diferentes modos o Estado é fera e homem ou coerção e consenso, tanto na sociedade civil, como na sociedade política. Justamente essa ideia de que há coerção dentro da sociedade civil foi uma das questões pontuadas por Anderson como incoerentes em Gramsci, já que para ele a repressão deveria estar na sociedade política e não na sociedade civil. Coutinho por sua vez, enfatiza elogiosamente o oposto, sustentanto que a sociedade civil seria puramente uma esfera em disputa, cuja linguagem se traduz em negociações, acordos e consensos. É possível indicar diversas passagens de Gramsci onde não somente a coerção dentro da sociedade civil é parte de um todo dialético do Estado Integral, como também existem variadas passagens que indicam que a leitura que o marxista sardo fazia não era uma que indicasse somente o consenso na esfera da sociedade civil, mas antes seu contrário. Vejamos o que diz Coutinho sobre isso.
Ora, quem fala em consentimento ou consenso fala em concessão ou negociação, o que implica dizer que o novo Estado capitalista não pode mais ser o representante exclusivo das classes dominantes, ser apenas seu “comitê executivo”. […] Essa nova configuração do Estado abriu a possibilidade concreta de que a transformação radical da sociedade – a construção de um ordenamento socialista capaz de realizar plenamente a democracia e a cidadania – se efetue agora não mais através de uma revolução violenta, concentrada num curto lapso de tempo, como era previsto no Manifesto e na reflexão de Lênin, mas sim através de um longo processo de reformas, do que Gramsci chamou de “guerra de posição”. Essa nova estratégia política poderia também ter o nome de “reformismo revolucionário”. Através da conquista permanente e cumulativa de novos espaços no interior da esfera pública, tanto na sociedade civil quanto no próprio Estado, tornou-se factível inverter progressivamente a correlação de forças, fazendo com que, no limite, a classe hegemônica já não seja mais a burguesia e, sim, ao contrário, o conjunto dos trabalhadores. (COUTINHO, 1997, p.163-164)
Em base aos argumentos de Coutinho contidos nesta citação e, para fins de comparação, voltamos à metáfora do Centauro de Maquiavel, para entender que os argumentos de Coutinho vão no sentido de que, no Estado contemporâneo, prevalece o lado humano e não o lado fera do Centauro e mais, que consequentemente é possível paulatinamente transformar o Centauro num ser completamente humano, como se homem e fera não residissem unos num mesmo ser que não é um ou outro, mas um terceiro, Centauro.
Na vasta e complexa obra que são os Cadernos do Cárcere, aparecem diferentes abordagens da questão, mas podemos notar que Gramsci buscou demonstrar de forma ilustrativa como a ampliação do Estado também implicou em ampliação de suas capacidades repressivas e não somente na de produzir consentimento:
“A técnica política moderna mudou completamente após 1848, após a expansão do parlamentarismo, do regime associativo sindical e partidário, da formação de vastas burocracias estatais e “privadas” (político-privadas, partidárias e sindicais), bem como das transformações que se verificaram na organização da polícia em sentido amplo, isto é, não só do serviço estatal destinado à repressão da criminalidade, mas também do conjunto das forças organizadas pelo Estado e pelos particulares para defender o domínio político e econômico das classes dirigentes. Neste sentido, inteiros partidos “políticos” e outras organizações econômicas ou de outro gênero devem ser considerados organismos de polícia política, de caráter investigativo e preventivo.” (GRAMSCI, 2020, C13 §27 – p.78-79)
Ou seja, Gramsci aponta que organizações presentes na sociedade civil, como partidos e sindicatos podem ao mesmo tempo, além de ser consideradas “trincheiras” em disputa, representar na realidade também a ampliação do poder policial dentro do próprio movimento operário. Consequentemente, podemos indicar que essa disputa no âmbito da sociedade civil, que para Coutinho tem base centrada na negociação, na prática, potencialmente também terá que se dar pela força. Essa relação entre os âmbitos da política enquanto negociação e da resolução dos conflitos por via da força aparece em conhecida passagem de Gramsci sobre as relações de força:
“Na “relação de força”, é necessário distinguir diversos momentos ou graus, que no fundamental são os seguintes: 1) uma relação de forças sociais estreitamente ligada à estrutura objetiva, independente da vontade dos homens, que pode ser mensurada com os sistemas das ciências exatas ou físicas (….) 2) o momento seguinte é o das forças políticas, ou seja, a avaliação do grau de homogeneidade, de autoconsciência e de organização alcançados pelos vários grupos sociais (…) O terceiro momento é o da relação das forças militares, imediatamente decisivo em cada oportunidade concreta. (O desenvolvimento histórico oscila continuamente entre o primeiro e o terceiro momento, com a mediação do segundo.)” (GRAMSCI, 2020, C13 §17 – p.40-43)
Nesta passagem em que Gramsci explica os momentos ou graus da “relação de força” [entre as classes e suas camadas na disputa pelo poder] consideramos relevante destacar a ideia de que o momento militar da disputa é para ele decisivo, isso é diferente de conceber a ampliação do Estado como meramente a ampliação das capacidades negociais o que levaria ao fim da necessidade de uma estratégia insurrecional. Na mesma entrada deste caderno, Gramsci prossegue pontuando como a ausência de um desfecho militar decisivo e favorável às classes subalternas resulta, ou em uma contra-revolução violenta, ou em autoritarismo de um ente supostamente “externo”, um bonapartista:
“Se não se verifica este processo de desenvolvimento de um momento a outro – e trata-se essencialmente de um processo que tem como atores o homens e a vontade e capacidade dos homens – a situação se mantém inoperante e podem ocorrer desfechos contraditórios: a velha sociedade resiste e garante para si um período de “tomada de fôlego”, exterminando fisicamente a elite adversária e aterrorizando as massas de reserva; ou então, verifica-se a destruição recíproca das forças em conflito como a instauração da paz dos cemitérios, talvez sob a vigilância de um sentinela estrangeiro”. (GRAMSCI, 2020, C13 §17 – p.45-46)
Buscamos aqui demonstrar como em Gramsci não há negação de um desfecho violento nas crises de hegemonia, sejam estes desfechos contra-revoluções ou revoluções, e que portanto sua preocupação ao tratar o momento militar como decisivo diante do movimento na correlação de força entre as classes, não se opõe ao marxismo clássico, como defende Coutinho. Pelo contrário, seu pensamento enriqueceu com complexidade todo o entendimento sobre o Estado, o que é determinante para desvendar e combater as armadilhas contidas na ampliação do consenso, mas também na ampliação da coerção na sociedade civil.
Estado restrito em Lênin ou há algo mais?
Em O Estado e a revolução, sua principal obra sobre o Estado, escrita durante o processo da Revolução Russa, este que foi o principal dirigente revolucionário da história do proletariado internacional, é bastante categórico de “que o Estado é o órgão de dominação de determinada classe, a qual não pode ser conciliada com sua antípoda” (LÊNIN, 2017, p.30). Porém, o Estado também é uma “alienação” em Lênin:
Se o Estado é o produto do caráter inconciliável das contradições de classe, se ele é uma força que está acima da sociedade e “cada vez mais se aliena da sociedade”, então é evidente que a emancipação da classe oprimida é impossível não só sem uma revolução violenta, mas também sem o extermínio daquele aparelho do poder de Estado que foi criado pela classe dominante e no qual está encarnada essa “alienação”” (LÊNIN, 2017, p.31)
A definição de Estado de Lênin contém em si as forças repressivas, mas também e ao mesmo tempo, o que podemos tratar como uma alienação, entendida como falsa consciência, engano. “A república democrática é o melhor invólucro possível para o capitalismo (…) Engels, com plena precisão, define também o sufrágio universal como instrumento de dominação da burguesia.” (LÊNIN, 2017, p.36) No mesmo livro, Lênin também argumenta que o proletariado não pode ser indiferente às formas de Estado como terreno onde se desenvolvem as suas reivindicações, sem com isso perder a visão de que permaneceria sendo um Estado burguês, ou seja, da dominação de uma classe sobre outra:
“(…) somos pela república democrática como melhor forma de Estado para o proletariado sob o capitalismo, mas não temos o direito de esquecer que a escravatura assalariada é o destino do povo mesmo na república burguesa mais democrática. E não para por aí. Qualquer Estado é um “poder repressor específico” contra a classe oprimida”. (LÊNIN, 2017, p.41-42)
Apresenta-se também em Lênin uma descrição de que haveria disputas de programa e cargos entre os partidos burgueses em uma república parlamentar ou em uma monarquia com parlamentarismo, essa mesma disputa daria uma falsa ideia de que o sufrágio estaria influindo nas decisões “de Estado”, porém os fundamentos da dominação da burguesia e o aperfeiçoamento de suas capacidades repressivas aconteceriam ao mesmo tempo que essa disputa eleitoral.
“Lançamos um olhar geral à história dos países avançados no fim do século XIX e no início do XX. (…) A elaboração de um “poder parlamentar” tanto nos países republicanos (Franças, Estados Unidos da América, Suíça) quanto nos monárquicos (Inglaterra, Alemanha até certo ponto, Itália, países escandinavos etc.); por outro lado, a luta pelo poder entre os diversos partidos burgueses e pequeno-burgueses que distribuiam e redistribuiam a “presa” dos lugarzinhos burocráticos, deixando imutáveis os fundamentos da ordem burguesa; e, finalmente, o aperfeiçoamento e a consolidação do “Poder Executivo”, de seu aparelho burocrático e militar.” (LÊNIN, 2017, p. 55)
Na mesma obra há diversas outras passagens onde Lênin insiste na ideia da república parlamentar como órgão de engano, que desloca a atenção para seus discursos enquanto nos bastidores ocorre o fortalecimento do Estado através de órgãos não-elegíveis:
Olhem para qualquer país parlamentar, dos Estados Unidos à Suíça, da França à Inglaterra, à Noruega, e assim por diante: o verdadeiro trabalho “do Estado” é feito nos bastidores, é executado pelos departamentos, pelas chancelarias, pelos Estados-maiores. Nos parlamentos apenas se tagarela, com a finalidade especial de enganar a “gente simples” (…) No governo decorre uma dança permanente, por um lado, para fazer sentar ao mesmo tempo em volta do “tacho”, dos lugarzinhos lucrativos e honrosos, o maior número possível de socialistas-revolucionários e de mencheviques; por outro lado para “distrair a atenção” do povo. Nas chancelarias, nos Estados-maiores “faz-se” o trabalho “de Estado”! (LÊNIN, 2017, p. 70)
Nota-se nestas passagens como ocorre uma preocupação importante de Lênin em mostrar que há mecanismos para além da repressão que estão em jogo nos países ocidentais, sem com isso perder de vista que nesses países o Estado segue sendo burguês e apoiado na coerção. Lênin, nessas passagens, não desenvolve nenhum conceito de “consenso” em sentido positivo, mas sim negativo. Para ele, ocorre um consenso por engano, o que poderíamos tratar como uma forma específica de consenso, mas ainda sim consenso.
Em outra obra bastante conhecida do marxista russo, escrita um ano antes, em 1916, Imperialismo, estágio superior do capitalismo, há um desenvolvimento teórico do autor, particularmente em sua descrição da Inglaterra e sua aristocracia operária, quando opera uma tentativa da burguesia de corromper uma camada do proletariado para melhor dominar o conjunto das classes. É possível perceber neste desenvolvimento uma confluência de sentido com as reflexões sobre ampliação do Estado, que obviamente se apresentam de forma muito mais acabada em Gramsci. Vejamos como Lênin abordava essa questão:
O pesquisador burguês do “imperialismo britânico dos princípios do século XX”, ao falar da classe operária inglesa, é obrigado a estabelecer sistematicamente uma diferença entre as “camadas superiores” dos operários e a “camada inferior, proletária propriamente dita”. A camada superior constitui a massa dos membros das cooperativas e dos sindicatos, das sociedades esportivas e das numerosas seitas religiosas. O sufrágio é adaptado ao seu nível, que na Inglaterra “é ainda suficientemente limitado a fim de excluir a camada inferior proletária propriamente dita” (!!!) (…) É preciso notar que, na Inglaterra, a tendência do imperialismo a dividir os operários e acentuar o oportunismo entre eles, provocando uma decomposição temporária do movimento operário, manifestou-se muito antes do fim do século XIX e início do XX. (LÊNIN, 2021, p. 131-132)
Nesta segunda obra de Lênin que abordamos, podemos notar como o autor busca relacionar as mudanças objetivas ocorridas no capitalismo ao entrar em seu estágio dos monopólios, onde a burguesia imperialista concentrando capitais, formando monopólios e estabelecendo colônias, deparava-se com um grande proletariado e massas diante de si, assim necessitando construir mecanismos para que parcelas dessas massas defendessem ideias contrárias a seus próprios interesses e favoráveis à burguesia. Essa mesma acumulação de capital e os frutos da espoliação colonial permitia, com migalhas se comparado ao volume de lucro capitalista, corromper uma camada superior deste proletariado, ou como dizia Lênin citando Engels, as “piores trade-unions inglesas que permitem que gente vendida à burguesia, ou, pelo menos paga por ela, às dirija”. (LÊNIN, 2021, p.133) Pensando em termos de Gramsci e não Lênin, podemos dizer que ocorre aí uma ampliação do Estado e uma busca ativa da construção de consenso, e ao mesmo tempo de estender os tentáculos repressivos do Estado às nascentes formas organizativas do proletariado, tais como partidos, sindicatos, cooperativas, associações desportivas etc.
Em uma terceira obra de Lênin, A Doença Infantil do “Esquerdismo” no Comunismo, escrita apenas três anos depois dos episódios decisivos da revolução Russa, em 1920, pensado como documento para a abertura do II Congresso da Internacional Comunista, reaparecem argumentos importantes e ainda mais ilustrativos que mostram como Lênin, ao contrário de desprezar os espaços e mecanismos de consenso do Estado, buscava refletir e orientar sobre a necessária atuação dos Partidos Comunistas no parlamento frente aos desafios particulares da construção revolucionária nos países do “Ocidente”.
Pelo contrário, do facto de a maioria dos operários da Inglaterra seguir ainda os Kérenski e os Scheidemann ingleses, de não haver conhecido ainda a experiência de um governo formado por esses homens — experiência que foi necessária tanto na Rússia como na Alemanha para que os operários passassem em massa para o comunismo —, disto decorre de maneira indubitável que os comunistas ingleses devem participar no parlamentarismo, devem ajudar de dentro do parlamento a massa operária a ver na prática os resultados do governo dos Henderson e dos Snowden, devem ajudar os Henderson e os Snowden a vencer os Lloyd George e Churchill unidos. Proceder doutro modo significa dificultar a obra da revolução, pois sem uma mudança nas opiniões da maioria da classe operária a revolução é impossível, e essa mudança consegue-se através da experiência política das massas, nunca apenas com a propaganda. (LÊNIN, 1977, s.p.)
Poderíamos citar mais uma série de reflexões contidas nesta obra e que ilustram toda a correta preocupação de Lênin no âmbito da atuação dos revolucionários no parlamento como via de disputa da consciência dos trabalhadores, ou seja, ainda que sociedade política e sociedade civil não fossem categorias de seu pensamento, havia permanente preocupação de que os revolucionários atuassem e disputassem também nos espaços de construção de consenso. Também é muito importante destacar como, ao contrário de fazer generalizações estanques sobre o Estado independentemente de sua localização, formação e conteúdo específico, o revolucionário russo cultivava em sua vida de profunda práxis revolucionária o rigor do materialismo histórico-dialético, que não poderia resultar em tal simplificação, como acusa Coutinho.
Considerações finais
Estas reflexões buscam resgatar elementos centrais das contribuições de Antonio Gramsci e Vladímir Lênin, mostrando que, ainda que façam diferentes abordagens e tenham vivido em diferentes contextos históricos, ambos revolucionários marxistas têm muito a oferecer para a compreensão do Estado, complementando-se entre si, e não opondo-se.
No caso de Gramsci, sua categoria de Estado Integral, que unifica de forma dialética sociedade civil e sociedade política, traz uma visão ampliada do papel do Estado. Para ele, o Estado não se resume a um aparato coercitivo, mas se estende à produção de consenso, sendo essa interpenetração de força e consenso uma das características mais inovadoras de sua obra. A partir da analogia do Centauro de Maquiavel, Gramsci demonstra que o Estado é simultaneamente coerção e consenso, força e persuasão, atuando tanto na esfera política quanto na civil, inseparavelmente. A relevância dessa análise é clara quando aplicada à realidade dos Estados modernos.
Por outro lado, ao analisar as contribuições de Lênin, que não apenas deixa seu legado teórico, mas principalmente as lições históricas como sujeito dirigente da maior revolução da história, é possível observar que ele não se limita a uma visão “restrita” do Estado, como é frequentemente acusado. Lênin reconhece a função repressiva do Estado burguês, mas também explora sua dimensão alienante, particularmente no contexto das repúblicas parlamentares ocidentais, onde o Estado democrático burguês atua como um mecanismo de dominação disfarçada. A análise de Lênin sobre o imperialismo e a aristocracia operária também revela que a classe dominante se utiliza de diversos mecanismos, inclusive a cooptação de setores da própria classe trabalhadora, que seriam os espaços por excelência de ampliação do Estado, para manter sua dominação.
O caminho escolhido nestas linhas, em que buscamos aproximar a produção teórica e portanto as concepções estratégicas de dois dos maiores marxistas revolucionários da história, – que dedicaram suas vidas inteiramente a refletir e organizar a luta da classe trabalhadora contra o Estado capitalista – parte de inquietações teóricas que tem consequências bastante políticas. O marxismo histórico-dialético foi, em vida para esses revolucionários, e segue sendo na atualidade, ferramenta para compreensão e transformação da realidade. A história da humanidade, cujo motor é a luta de classes, está em movimento e sendo escrita pelos sujeitos que a ela pertencem. É neste sentido que queremos resgatar e apontar os fios de continuidade no marxismo revolucionário entre esses dois personagens tão importantes.
A vida de ambos, assim como de outros grandes revolucionários como Leon Trótski e Rosa Luxemburgo, foi marcada por incessantes combates teóricos e políticos, num choque permanente contra as deturpações do marxismo, contra uma suposta possibilidade evolutiva do capital que levaria a construção do socialismo através de reformas graduais e pacíficas, desenvolvida especialmente pelos teóricos das alas oportunistas da social-democracia europeia e russa, mas que hoje segue tendo seus fieis representantes entre nós.
Esses debates seguem absolutamente atuais hoje, e nosso objetivo com essas reflexões, é o de defender o marxismo revolucionário de Antonio Gramsci, mostrando como suas categorias não devem ser utilizadas para os mesmos fins capituladores dos oportunistas que Lênin vorazmente combateu em O Estado e a Revolução e em toda a atividade revolucionária de sua vida. Ao mesmo tempo, queremos defender a complexidade e potência do pensamento de Lênin, que alicerçado na dialética materialista não buscou generalizar nenhum conceito estanque sobre o Estado, ao contrário, sempre esteve preocupado em ter sua análise fincada na realidade justamente porque apenas assim é possível transformá-la, como o fez, dirigindo a maior Revolução Socialista da história da humanidade.
Em tempos de crises orgânicas, usando os termos de Gramsci – que se localizam hoje em diversos e importantes países ao redor do capitalismo global – as reflexões desses dois marxistas permanecem atuais e fundamentais para buscarmos caminhos que superem o horizonte limitado de resistência onde está soterrada a maior parte da esquerda que sucumbiu à estratégia institucional, mas sim colaborem na construção de vias de enfrentamento efetivo e transformação social; para a construção de alternativas políticas que visem a superação da exploração de classes e de todas as formas de opressão, o que passa necessariamente pela derrota do capitalismo e seu Estado de maneira revolucionária.
Referências bibliográficas
ANDERSON, Perry. Las antinomias de Antonio Gramsci: estado y revolución en Occidente. Barcelona: Editorial Fontamara, 1981. Disponível em: https://www.anticapitalistas.org/IMG/pdf/Anderson-LasAntinomiasDeAntonioGramsci.pdf. Acesso em: 19 ago. 2024.
COUTINHO, Carlos Nelson. Notas sobre cidadania e modernidade. Praia Vermelha: Estudos de Política e Teoria Social, Rio de Janeiro, UFRJ/PPG da ESS, v. 1, n. 1, 1997.
DAL MASO, Juan. El marxismo de Gramsci: notas de lectura sobre los Cuadernos de la cárcel. Buenos Aires: Ediciones IPS, 2016.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. v. 3: Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020.
LÊNIN, Vladímir Ilich. O Estado e a revolução: a doutrina do marxismo sobre o Estado e as tarefas do proletariado na revolução. São Paulo: Boitempo, 2017. (Arsenal Lênin).
LÊNIN, Vladímir Ilich. Imperialismo, estágio superior do capitalismo: ensaio de divulgação ao público. São Paulo: Boitempo, 2021. (Arsenal Lênin; 5).
LÊNIN, Vladímir Ilich. A doença infantil do “esquerdismo” no comunismo. Lisboa: Editorial Avante, 1977. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1920/doencainfantil/. Acesso em: 20 ago. 2014.