Revista Casa Marx

Lula, o Congresso e o STF, entre a polarização e o pacto pelos ajustes

Thiago Flamé

A derrota do IOF, que se seguiu a uma série de reveses do governo no Congresso, significou um salto de qualidade da crise da relação deste com o governo. Empurrado contra as cordas, o governo reagiu. Recorrendo ao STF, mas principalmente saindo com uma retórica contrária ao congresso, apelando a um discurso que entusiasma sua própria base. O que buscaremos refletir nesta nota é para onde vai a política brasileira e até onde o governo pode ir com a retórica dos últimos dias.

A derrota do decreto do IOF, pela magnitude e por como foi construída, representou uma humilhação sem precedentes para o governo Lula. O centrão, inclusive partidos como União Brasil que contam três ministérios, formaram um bloco com a oposição bolsonarista para derrotar o governo – que já vinha de reveses sucessivos no Congresso. Na sequência, Hugo Motta organizou com Dória e Kassab um jantar com empresários, escancarando que as eleições de 2026 já aparecem como o pano de fundo da atual disputa.

Para o governo essa derrota acendeu um sinal vermelho. Depois de fazer de tudo, de dar todas as concessões e avançar num corte de verbas histórico e uma série de medidas impopulares que aumentaram seu desgaste com a própria base,  o que inclusive se expressou em queda de popularidade, o governo viu as condições de governabilidade evaporarem. O principal argumento com que justificou todas as medidas de ajuste fiscal e cortes, virou pó. Aceitar a derrota equivaleria a um suícidio político para Lula e o PT.  A radicalização do discurso de “Congresso dos ricos”, apelando a um sentimento forte nas massas petistas e nos setores que apoiam eleitoralmente o PT contra a extrema-direita, foi o único caminho que restou ao governo para sair das cordas.

Que esse caminho tenha entusiasmado setores de vanguarda e ganhado rapidamente a simpatia de setores de massas é também um termômetro do clima político nacional. Mostra que o sentimento que levou a bandeira contra a jornada 6×1 a se tornar uma bandeira tão popular e se impor de baixo para cima às direções sindicais e ao próprio governo segue ativo. 

O resultado imediato desses embates ainda está em aberto. A definição tende a se dar na reunião de conciliação entre os presidentes dos três poderes convocada pelo STF, ao suspender os efeitos do decreto do governo sobre o IOF. O que é uma mostra de que os mecanismos tradicionais do “presidencialismo de coalizão” em crise já não são suficientes para a manutenção dos pactos de governabilidade e as tendências antidemocráticas e bonapartistas crescem por todos os poros da política não só brasileira, mas como uma tendência internacional de um capitalismo ultra-decadente. 

As ideias fora de lugar e o eco dos tambores de guerra que vêm do norte

A expressão “ideias fora do lugar”, elaborada por Roberto Schwarz num texto já clássico nos debates  sobre as particularidades do Brasil no contexto do império escravocrata e da Primeira República, imposta via golpe militar palaciano, tentava expressar a incongruência das ideias liberais europeias na boca de uma elite escravocrata. Aprofundando esse conceito, é preciso chamar a atenção de que a própria burguesia européia colabora para esse quadro e foi, em especial a Inglaterra, a grande beneficiaria do lucro dos capitais envolvidos no tráfico de escravos que foi um dos fatores da chamada acumulação primitiva que está na origem do próprio capitalismo. Retomando a declaração dos direitos do homem da Revolução Francesa é forçoso reconhecer que nem as alas mais radicais da revolução estendiam esse direito aos povos coloniais e aos africanos escravizados nas Américas. 

O jacobinismo assume no Haiti uma profundidade revolucionária que não teve na própria metrópole, porque foi traduzido na língua dos escravos insurretos que tomaram para si as ideias de igualdade, liberdade e fraternidade da revolução burguesa. No Brasil, ao contrário, foram as próprias elites escravocratas que, como aponta Schwarz, ou negaram as ideias liberais como alheias às condições nacionais ou as corromperam duplamente ao adotá-las. Poderíamos dizer, em diálogo com Schwarz mas em um sentido distinto de sua apreciação, que as ideias liberais no Ocidente sustentaram regimes políticos que dependiam da escravidão nas colônias e a estimulavam, cobrindo-se não obstante com a retórica cínica da “liberdade” e que, mais decisiva do que a permanência das relações baseadas em favores, o atual clientelismo, pesa principalmente a permanência da relação de subordinação às antigas metrópoles coloniais, trasnbformnadas em potências imperialistas.

O conceito de ideias fora do lugar, se reelaborado sempre a partir das novas coordenadas do processo histórico, pode nos ajudar a iluminar uma série de questões da política atual. Começando pela mais importante delas, que talvez na atual etapa seja a maior incongruência entre a retórica imperialista das potências Europeias e dos EUA, em relação à burguesia brasileira e dos países atrasados da América do Sul (não se poderia dizer o mesmo da Ásia e da África). Nos países imperialistas a corrida armamentista e a preparação para guerras em larga escala se coloca como a questão do momento. Assim, a contenção de gastos estatais já é relativizada pela necessidade do aumento dos gastos com defesa. Corta-se em todo o resto, mas não com o objetivo de manter o controle da relação dívida/pib, mas para o gasto militar. A pressão cada vez maior sobre o Brasil e todos os países da periferia será por cortes e contenção em toda linha, inclusive dos seus orçamentos militares. As burguesias vassalas devem elas também fazer a sua parte no esforço de guerra das grandes potências. 

A dinâmica da degeneração bonapartista dos regimes democráticos e o papel da extrema-direita e do fascismo têm sinais trocados também, assim como aponta Schwarz em relação ao liberalismo. Aqui os ultra-nacionalistas prestam continência para a bandeira dos EUA, enquanto o próprio Congresso assume posições cada vez mais bonapartistas e o poder executivo para se impor sobre os demais não encontra outro caminho que não o de se apoiar inteiramente sobre as potências imperialistas ou ter que demagogicamente se apoiar em demandas populares e de massas para barganhar. Uma dinamica que corresponde, numa situação menos aguda, ao conceito elaborado por Trotski no seu exilio mexicano, de bonapartismo sui generis,


“O governo dos países atrasados — ou seja, coloniais ou semicoloniais — assume, em geral, um caráter bonapartista ou semi bonapartista. Diferem entre si na medida em que alguns tentam se orientar para a democracia, buscando o apoio de operários e camponeses, enquanto outros implantam uma ditadura policial-militar fechada. Isso também determina o destino dos sindicatos: ou estão sob o patrocínio especial do Estado, ou sujeitos a uma perseguição cruel. Essa tutela estatal é determinada por duas grandes tarefas que o governo deve enfrentar: em primeiro lugar, atrair a classe operária, para assim obter uma base de apoio na resistência às exigências excessivas do imperialismo e, ao mesmo tempo, disciplinar os próprios operários colocando-os sob o controle de uma burocracia.”

Um parlamento de tradição escravocrata 

Antes de aprofundar na dinâmica do executivo e da contra-ofensiva do governo, é preciso se deter um pouco nessa afirmação das tendências bonapartistas do próprio legislativo. Por mais importante também que seja o maior protagonismo do bonapartismo judicial exercido pelo STF e pelo fortalecimento da figura do seu presidente, é um aspecto em que está tratado bastante fartamente já desde o golpe institucional de 2016 em diversas elaborações, então nos centraremos nos dois fatores mais novos desse tabuleiro complexo: o maior protagonismo do Congresso e o discurso do governo contra os ricos. 

 Num livro chamado “200 anos de parlamentarismo” o cientista político tucano Bolivar Lamounier desenvolve a ideia do enraizamento das práticas parlamentaristas na política institucional brasileira. Como uma espécie de caricatura dessas ideias fora de lugar ele fundamenta que o próprio Império teve que manter um parlamento, e a própria Ditadura Militar também. Fundamentar com o parlamento do Império e da Ditadura o enraizamento do parlamentarismo na política brasileira não é muito diferente do absurdo apontado por Schwarz de trechos copiados da declaração dos direitos do homem da França da constituição imperial. Pela própria oposição entre centralismo e federalismo, que corresponde a uma classe dominante, que dominada pelas metrópoles e fragmentada num extenso território, não teve tempo de formar seus próprios partidos nacionais antes que o imperialismo fosse uma força determinante sobre a dinâmica de concentração de poderes no executivo, nem o império nem a ditadura puderam abrir mão de um parlamento censitário, um fórum de escravocratas a limitar o poder do imperador, sem no entanto sobrepuja-lo, nem a Ditadura e os generais abriram mão de uma espécie de parlamento consultivo, com um bipartidarismo a lá EUA imposta à força, com um partido de oposição consentida (ArenaXMDB). 

A partir dessas coordenadas históricas é possível entender de forma mais profunda a força que o Congresso adquiriu desde o golpe contra Dilma e, em especial, a partir do governo Bolsonaro. O velho presidencialismo de coalizão de 1988 terminou de ser implodido por dentro das suas próprias coordenadas. O governo de Bolsonaro, sob o comando do general Braga Netto, para fazer frente às investidas do poder judiciário e a força de contenção exercida pelo Congresso na primeira metade do seu governo, avançou na prática do orçamento secreto e das emendas impositivas. Isso praticamente liquidou um dos aspectos mais importantes da montagem das amplas coalizões, que foram a regra nos governos de FHC, Lula e Dilma 1. A incorporação aos ministérios, ainda importante, já não têm o mesmo peso de antes, na medida em que flui mais verbas aos congressistas via emendas, nas mãos dos presidentes da Câmara e do Senado, do que pela maioria dos ministérios. Surge a nova figura de governos minoritários no Congresso, que precisam a cada votação costurar maiorias que praticamente só conseguem avançar naquilo que seja consenso entre as elites.  

Até onde vai o atual giro do governo Lula?

Acuado, Lula apelou para a polarização social latente na sociedade brasileira para se manter vivo no jogo. A manobra foi tão bem sucedida que quase imediatamente possibilitou  uma abertura para negociação por parte do Congresso e resultou na ação mediadora de Morais. O primeiro objetivo era justamente esse, forçar a negociação com o Congresso e moralizar a base petista com um discurso eleitoral antecipado. Um segundo fator, menos visível e ainda secundário em todos os cálculos, é a necessidade de não perder o controle do movimento de massas, frente a indícios iniciais, porém preocupantes. 

O maior deles que o governo tomou bastante a sério foi a demanda contra a jornada 6×1. Antes que se tornasse um movimento contra as direções sindicais e dos movimentos sociais, praticamente todos os sindicatos do país adotaram a bandeira e o próprio Lula se pronunciou brandamente em 1 de maio. Outro elemento, muito mais concentrado em setores de vanguarda, foram as greves da educação desse primeiro semestre, muito massivas em algumas regiões do país, como no DF, Salvador e Belo Horizonte, e que levaram a experiências importantes com as direções governistas, como no caso do DF. Uma das lições profundas de junho para Lula e o PT, também passam pela constatação de que se perdem a capacidade de conter o movimento de massas, se tornam descartáveis para a classe dominante. 

Para que os super ricos paguem pela crise é preciso construir uma oposição de esquerda ao governo Lula

Algumas correntes para além do próprio petismo, como Boulos e outros setores do PSOL, apostam em transformar o atual giro retórico e pragmático do governo em um giro à esquerda estrutural, tomando como exemplo o governo da Colômbia. Duas questões se colocam. Pela tradição de Lula, o conciliador, e pelo perigo que é mobilizar a base petista, que incluiu os setores mais organizados da classe trabalhadora e não os pobres em geral, é difícil que Lula e o PT sigam pelo caminho de maior polarização estrutural e mobilização social de forma mais permanente como método de governo. Lula sabe que isso seria correr o risco de desatar forças que ele não poderia controlar. Outra é que essa estratégia é fadada à derrota, numa situação em que o imperialismo toca os tambores de guerra, em que se aprounfa o genocidio palestino e em que os orçamentos das grandes potencias vão sendo orientados em função da corrida armamentista. 

A hipotese mais provavel é que Lula use a nova retórica como uma cartada forte para jogar nas mesas de negociação em que vai barganhar uma pequena margem de demagogia orçamentária e pequenas concessões redistributivas, para que o PT tenha competitividade eleitoral e ele mesmo, ou seu ungido, sejam favorites ano que vem. Isso sem alterar em uma vírgula o compromisso inquebrantável de Lula com o ajuste fiscal e o pagamento da dívida pública e oferecendo um pacto entre os poderes bem ao gosto de toda a burguesia para estabilizar a situação política interna e obter os maiores benefícios possíveis na disputa entre os EUA e a China, que deixa cada vez menos margem de manobra.

É ilusório acreditar que por fora da organização e da luta independentes do governo conseguiremos inverter a correlação de forças atual, impor uma derrota histórica à extrema-direita e avançar em novas conquistas sociais e democráticas. O caminho para conquistas substanciais é o da luta, das greve e da mobilização, como têm demonstrado a categoria dos educadores em vários estados no país. No entanto, apenas as lutas, por mais massivas, são insuficientes, se o ativismo se mantiver preso às algemas da concepção de governo em disputa e não derem o passo necessário para que surja uma oposição de esquerda com capacidade de ser escutada por dezenas de milhões em todo o país.

Carrinho de compras
Rolar para cima