Revista Casa Marx

Mais do que nunca é preciso construir um feminismo e antirracismo socialistas

Diana Assunção

Letícia Parks

O caso de denúncia de assédio sexual contra o Ministro dos Direitos Humanos Silvio Almeida abriu uma série de debates na esquerda e no movimento negro. Evidentemente, o ponto de partida tem que ser que as denúncias devem ser acolhidas e apuradas, garantindo toda assistência à Anielle Franco e a todas as vítimas que denunciam, sempre com o direito à defesa do acusado como pressuposto. Os relatos de que o governo estaria abafando o caso desde o ano passado são gravíssimos. Mas é necessário inserir uma perspectiva socialista e revolucionária na luta das mulheres e negros, sem a qual é impossível responder à opressão na sociedade capitalista.

Para nós que somos feministas socialistas, a compreensão de que a opressão e violência às mulheres só irá acabar com o fim da sociedade de classes, ou seja, do capitalismo, é uma premissa fundamental para entender as contradições que existem nessa sociedade, ao mesmo tempo que nos colocamos na primeira fileira da luta contra qualquer violência e pelos direitos fundamentais das mulheres e negros.

Mas a nossa diferença mais estratégica não está apenas em considerar que o fim da sociedade de classes poderá abrir espaço ao fim das opressões, mas entender que desde já se trata de construir um caminho efetivo para isso. Esse caminho não significa se declarar apenas feminista ou apenas antirracista, mas, considerando a perspectiva socialista e revolucionária, conectar a luta das mulheres e negros com uma política de independência de classe que não subordine nossas bandeiras a um governo de Frente Ampla que negocia nossos direitos com nossos inimigos de classe, fortalecendo a extrema-direita.

Diante do episódio de denúncia de assédio sexual do Ministro Silvio Almeida contra a Ministra Anielle Franco e servidoras federais, muitos debates estão abertos, especialmente uma suposta desmoralização do movimento negro e da própria esquerda diante de uma figura aparentemente intocável e que agora está no centro de um escândalo de assédio sexual. Ao ser um homem negro que representaria a pauta negra, sua queda afetaria o conjunto do movimento negro. Em primeiro lugar nós consideramos que qualquer denúncia deve ser seriamente apurada e com toda assistência às vítimas como Anielle Franco. Uma situação que se mostra ainda mais grave quando surgem notícias de que existem denúncias de vários anos atrás, antes da entrada de Silvio como Ministro e também informações de que o governo estaria abafando o caso desde o ano passado, o que é gravíssimo. Ao mesmo tempo, não somos punitivistas e defendemos o direito de defesa dos acusados pelo princípio da presunção de inocência. Mas sem entrar no mérito da questão, consideramos que o ocorrido tem tomado proporções que vão para além do fato em si.

Compreendemos o sentimento de choque daqueles que simpatizavam com a figura de Sílvio Almeida, visto por muitos como um símbolo no combate ao racismo e na defesa dos direitos humanos. Ao mesmo tempo, não compartilhamos do sentimento de desmoralização e impotência que se busca criar, uma vez que a responsabilidade sobre esta situação não é de ninguém mais do que do envolvido e do próprio governo de Frente Ampla, que tenta se blindar com uma demissão sumária mas cuja politica de conjunto é permeada por bastante hipocrisia. Ao mesmo tempo, é evidente que a extrema-direita com suas Damares Alves e Carlas Zambelli utilizam essa situação para se alçar pela direita como se fossem defensoras da luta das mulheres, fazendo comentários racistas como forma de reafirmar seu reacionarismo. Mas a questão é que não é este episódio que abre espaço para a extrema-direita senão todas as políticas do governo que conciliam com estes setores.

Nós viemos fazendo inúmeras polêmicas teórico-políticas com Silvio Almeida e também com Anielle Franco sobre a política de ambos no governo de Frente Ampla. Ambos são parte de um governo que mantém as reformas do golpe institucional, que implementou o Arcabouço Fiscal, que faz alianças de todo o tipo com a direita e que, também, entrega os direitos das mulheres e negros para não entrar em choque com a base da direita e da extrema-direita. Por exemplo, a reforma trabalhista é uma reforma que atinge os negros majoritariamente. A reforma da previdência já está fazendo com que milhões de mulheres negras nunca possam se aposentar. O PL da uberização atinge majoritariamente a juventude negra. O direito ao aborto legal seguro e gratuito ao não existir até hoje, por não ter sido legalizado nos governos do PT, significa a morte de 3 mulheres negras a cada 4 mulheres que morrem por abortos clandestinos. Para que se tenha uma ideia, enquanto banhava o litoral paulista com sangue negro, com uma das maiores chacinas do Estado de Sao Paulo, o governador de São Paulo Tarcisio de Freitas foi recebido por Lula com abraços e agraciado com o maior cheque para seguir com a privatização dos serviços públicos em São Paulo, que acelera a precarização da vida dos trabalhadores e do povo pobre. Sobre esse abraço, nada tiveram a dizer seus Ministros, nem sobre a Lei Orgânica das PMs sancionada por Lula, que dá aval ao banho de sangue da polícia, nem sobre o recorde de assassinatos da juventude negra produzido por Jerônimo Rodrigues do PT na Bahia. Este governo, com aval dos Ministros, faz esse tipo de concessão à extrema-direita em nome da governabilidade, o que significa dar passos atrás na luta das mulheres e dos negros. Vale lembrar que Tarcísio foi um dos militares que junto com o general Augusto Heleno, Santos Cruz, Fernando Azevedo e outros bolsonaristas, esteve a frente da Minustah, ocupação militar do Haiti entre 2004 a 2017, sob o primeiro governo Lula que deixou milhares de mortos e se tornou um escândalo internacional, com mais de 2000 denuncias de violência sexual e estupro das mulheres haitianas, de onde surgiu a chamada “geração Minustah”, de crianças que foram resultado dessa brutal violência contra as mulheres negras. Nesse momento Lula está mandando a Polícia Federal brasileira, junto a outros países como o Quênia, para treinar as polícias haitianas para oprimir e violentar o povo negro no Haiti, algo sobre o que nem Sílvio de Almeida e nem Anielle Franco se pronunciaram. Tampouco vimos qualquer pronunciamento diante da bárbara medida de Lula ao colaborar com Dina Baluarte, quando enviou equipamentos de repressão à enorme revolta popular encabeçada por mulheres originárias quechua e aimarás no Peru.

Neste ambiente conciliatório com a direita e com este tipo de política, que tipo de combate à violência às mulheres é de fato dado? O governo Lula vem inclusive cortando gastos na saúde, o que atinge frontalmente as mulheres e qualquer tipo de assistência diante da violência. O corte de verbas de ministérios anunciado meses atrás atingiu principalmente o Ministério das Mulheres. Além disso, o governo vem sustentando alianças com os setores que mais odeiam as mulheres, como o partido de Bolsonaro com quem o PT está coligado em mais de 85 cidades. Também vem fomentando políticas para os setores mais conservadores da sociedade, como o agronegócio com o Plano Safra, que incendeia terras e traz sofrimento às mulheres e comunidades indígenas. Essa política de conciliação significa a entrega dos nossos direitos, precarização para os negros e submissão à extrema direita.

Portanto, é inaceitável que diante de uma denúncia de um Ministro desse governo conciliador haja qualquer tentativa de desmoralização de trabalhadores e jovens, e especialmente de setores do movimento negro, que querem enfrentar o racismo. Esta e todas as denúncias que surgiram precisam ser apuradas, as vítimas acolhidas, mas a operação midiática por trás deste ocorrido, de transportar essa carga dramática para as costas de negros e negras que nada tem a ver com essa situação, só interessa à classe dominante e às instituições do regime que querem nos fazer desacreditar das nossas próprias forças e acreditar apenas nas saídas institucionais. Até quando vai se manter a ilusão de que um indivíduo irá sozinho enfrentar o racismo ou caçar racistas, quando a história já ensinou que a luta dos negros é uma luta coletiva como parte e ao lado da classe trabalhadora?

Contra qualquer tentativa de desmoralização e de confiança nas “saídas institucionais” que querem nos convencer, consideramos que é preciso uma política de independência de classe. Anielle Franco e todas as vítimas precisam ser acolhidas e, se confirmadas as denúncias, merecem toda a solidariedade frente ao caso de assédio. Isso não muda o fato de que é uma funcionária do governo, assim como Silvio Almeida, que reproduzem a política da frente ampla. Nenhum deles representa o movimento negro, mas sim a institucionalização de ativistas e intelectuais que entraram no governo e acabam cobrindo pela esquerda políticas tão espúrias quanto o Arcabouço Fiscal. Representam a tentativa de incorporar a luta das mulheres e negros em um projeto político de governo capitalista com a direita.

Tamanha é a separação entre a “pauta das mulheres” e as demandas econômicas que o governo colocou interinamente no Ministério dos Direitos Humanos Esther Dweck, que a frente do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos foi a carrasca da greve das universidades federais. Representaria ela a “idoneidade das mulheres” para assumir essa posição? E o que dizer da posição do Ministério de Direitos Humanos de Sílvio Almeida, que em julho corroborou com a decisão do governo Lula de permitir que empresas que exploram trabalho análogo à escravidão – afetando especialmente os negros – possam realizar acordo em dinheiro para sair da lista suja do trabalho escravo? O Ministério de Almeida havia dito que tal medida tem por objetivo “o aperfeiçoamento dos instrumentos institucionais a fim de resguardar valores democráticos como a dignidade do trabalhador, a função social da empresa e a transparência”. Bolsonaro quis implementar essa medida e não conseguiu – Lula o impõe. Tal cinismo não tem tamanho, e acomoda ataques profundos à população negra dentro do esquema de conciliação da Frente Ampla.

Neste sentido, em nossa visão mais do que nunca é preciso superar essa política da Frente Ampla que com tanta conciliação entrega nossos direitos, reforçando os mecanismos da opressão, esta que origina tamanho escândalo em seu governo. Os trabalhadores e jovens que se decepcionam com a figura de Silvio Almeida precisam tirar uma lição política deste episódio, que passa por rechaçar qualquer forma de violência, apoiar as vítimas e defender o direito de defesa, mas também por compreender que a luta das mulheres e negros não está desconectada de um enfretamento com esta sociedade capitalista que vivemos.

Por isso, mais do que nunca é preciso construir um feminismo e antirracismo socialistas, que nada tem a ver nem com o identitarismo utilitário nem com a representatividade vazia. Tem a ver com um programa que enfrente as propostas ultraneoliberais dos distintos tons de bolsonarismo que existem hoje no país, e por isso mesmo não aceite a conciliação de classes do governo Lula, e coloque no centro as demandas das mulheres e negros e desde aí seja implacável contra qualquer forma de assédio sexual e violência sem sucumbir ao punitivismo, garantindo o direito de defesa. Um feminismo e antirracismo socialistas que não se satisfaz com mulheres e negros nos cargos de governo porque é justamente essa a operação ideológica da qual não somente a extrema-direita se aproveita mas também a burguesia mais racista do país, que finge valores progressistas: mulheres e negros no topo acabarão sendo acusados ou vítimas. Nós temos uma concepção completamente distinta porque não temos como concepção que a luta das mulheres e negros avança conforme mais mulheres e negros estão em cargos de poder. Esse poder no capitalismo é sempre de classe, da classe dominante, e é um poder feito do conteúdo mais nojento, onde casos de assédio se acumulam, já que na sociedade capitalista, o topo os transforma em intocáveis. Por outro lado, também temos que combater a falsa ideia de um “essencialismo negro”, como se a identidade negra por si só tivesse um suposto valor positivo em detrimento da “identidade branca”, o que reforça as ilusões em saídas institucionais e políticas ministeriais de representatividade por dentro do capitalismo. Ao mesmo tempo, esse combate nos ajuda a refutar argumentos que tentam diminuir o peso das acusações sobre Silvio Almeida, como se estivesse sendo alvo dessas acusações graves por ser um “homem negro em um posto de poder”. Isto é, reduzir as acusões de assédio sexual ao falso embate “negros contra brancos”, como se o mundo não fosse dividido em classes sociais e como se a opressão de gênero não atravessasse todas essas classes. Nossa perspectiva é contra essa classe dominante, contra o capitalismo. É da auto-organização da nossa classe, com mulheres e negros na linha de frente. Os que se decepcionam frente ao caso Silvio Almeida precisam superar a expectativa de que negros e mulheres no poder vão resolver a situação de opressão dessa sociedade capitalista, atuando por dentro e fortalecendo esse sistema. A história da luta de classes no Brasil e no mundo já mostrou que a luta negra não é feita de ídolos e de topos, mas sim de um programa radical e luta coletiva.

O mundo não precisa ser capitalista, como a história já demonstrou algumas vezes, mas para isso se trata de construir uma perspectiva revolucionária. Mais que nunca diante de uma situação internacional convulsiva desde a guerra na Ucrânia, o massacre na Palestina e a tentativa de novo fortalecimento da extrema-direita internacionalmente, não é possível responder com conciliação de classes e parlamentarismo. É preciso uma estratégia revolucionária. Nós temos orgulho em construir o grupo de mulheres Pão e Rosas e o Quilombo Vermelho que, sempre estiveram na linha de frente da luta de classes e combatendo todas as formas de opressão, defendendo um programa para as mulheres e negros e não um programa que entrega nossos direitos enquanto pavimenta a vida ilustre de alguns. Esta é a base principal para lidar com todas as formas de violência, a confiança na organização da nossa classe com um programa de enfrentamento aos capitalistas sem conciliação. Convidamos todas e todes a conhecer o feminismo e antirracismo socialista e não aceitar a demagógica desmoralização que querem impor sobre a nossa classe.

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