Revista Casa Marx

A passagem ao último Foucault: da revolução iraniana à estética da existência

Gabriel Dolce

Esse texto tem a finalidade de contribuir com a crítica à Michel Foucault, iniciada por Iuri Tonelo em edições anteriores desta revista, de um ponto de vista marxista. Se podemos pensar a obra de Foucault divida em três momentos de virada (fase arqueológica, genealógica e ética), embora com continuidades entre elas, Tonelo abarcou a fase arqueológica, genealógica e o início do giro para a fase ética. Pretendo aqui pegar a análise de Foucault sobre um processo real de luta de classes, em que revolução e contrarrevolução operavam na ordem dia e em que muitas de suas concepções teórico-filosóficas foram postas à prova em suas análises. A partir daí, ver as consequências do desfecho do processo histórico no pensamento do filósofo para entender sua entrada na fase final de sua elaboração sobre a ética.

Algumas considerações teóricas

Para começar, é importante pontuar alguns aspectos de sua teoria que o acompanharam durante suas fases. A primeira delas diz respeito à sua concepção de história: indo de encontro à historiografia burguesa tradicional que enfoca o papel das grandes personalidades, mas também à marxista que entende a história como processo em movimento e que busca compreender a causalidade das mudanças (assim como seus sujeitos), Foucault entende a história como algo radicalmente descontínuo, com mudanças abruptas e, principalmente, sem sujeito. Mesmo contrariando os estruturalistas, que negavam a importância da análise diacrônica ou a analisavam para encontrar suas imanências ao longo de largos períodos no tempo (como é o caso de Braudel), o filósofo se inseriu no paradigma estruturalista (ou pelo menos, em seu ambiente intelectual) em todas as suas obras ao produzir uma história sem sujeito e, dessa forma, sem causalidade

Desde a História da Loucura, obra que em que economia, classes sociais, instituições e práticas aparecem com mais peso (e, portanto, partindo de visão uma menos discursiva e idealista do que, por exemplo, As palavras e as coisas) o evento é destacado, ao mesmo tempo em que não há causa que o justifique: as transformações, as descontinuidades, simplesmente acontecem sem grandes preocupações com a explicação do porque. Apenas o novo surge de forma aleatória (utilizando o termo do último Althusser de Materialismo Aleatório) abrindo novas formas de pensar e sentir, sempre de uma forma negativa dentro do desenvolvimento da modernidade. Quando se apaga qualquer possibilidade de inteligibilidade da História, assim como a existência de sujeitos capazes de operar transformações, se apaga também a possibilidade de racionalmente (com todos os seus limites) superar o capitalismo e suas barbáries e produzir uma sociedade planificada e livre da opressão e da exploração.

Outro ponto fundamental do modus foucaultiano de filosofar que o acompanha em toda sua obra é sua posição radicalmente anti-moderna. Nisso acompanha a moda estruturalista de seu tempo (em particular na antropologia) e é influenciado pela filosofia de Nietzsche e Heidegger. Essas influências e a posição anti-moderna radical é acompanhada pelo conjunto dos pós-estruturalistas como Deleuze, Derrida e seus derivados decoloniais e pós-coloniais. Com ela, em uma postura de certo modo moralizante, a grande origem do mal na humanidade é fruto do advento da modernidade como uma racionalidade (que envolve colonialismo, racismo e controle social) por fora de se analisar as formas de produção e reprodução da vida, ou seja, o advento do capitalismo como modo de produção, assim como por fora de uma compreensão dialética do fenômeno histórico, ou seja, de suas contradições. O produto dessa posição é tanto uma negação dos aspectos contraditórios da modernidade, como o advento do moderno movimento operário, dos ideais de liberdade e igualdade e do marxismo (condenado à uma teoria eurocêntrica ou parte de uma episteme arcaica à ser superada, como escrito em As palavras e as coisas), quanto um romantismo que embeleza tudo o que é pré-moderno. 

Assim, em Foucault, o louco do renascimento é visto como um ser livre, socializado, de uma existência fácil e errante (como nos personagens de Cervantes e Shakespeare), em comparação com louco da modernidade brutalizado pelo saber psiquiátrico; as práticas de punição medievais, apesar de toda sua brutalidade, eram pontuais e estavam à mercê de certo controle popular de quando as massas simpatizavam com o punido e se rebelavam, em contraposição ao sistema carcerário moderno, generalizado e escondido ao olhar da população; a sexualidade dos gregos era menos imposta, com certo caráter estético, do que a moderna produção da sexualidade sob certos parâmetros normativos. O saber moderno, foco de toda obra foucaultiana (mesmo quando não escreve sobre ele, como nos volumes II e III de A História da Sexualidade), é visto como, antes de mais nada, aumento de controle e sujeição. O sujeito, conceito produto da modernidade, é não aquele que detém agência, mas aquele que está sujeito à algo – assujeitado. 

Importante salientar que para que tais concepções filosóficas encontrassem eco nas investigações arquivísticas, notórios problemas metodológicos foram cometidos do ponto de vista dos procedimentos historiográficos como a própria escolha do corpus e das referências analisados por Foucault, assim como a alienação em relação às produções e debates históricos existentes sobre os temas investigados. Para uma análise mais detida sobre tais problemas historiográficos (que tornam possíveis, por exemplo, as abstratas formas geométricas que assumem as epistemes em cada período histórico, como escrito em As Palavras e as Coisas), vale ler a elaboração Foucault ou o Niilismo de Cátedra de José Guilherme Merquior.

Foucault e a política

Até os anos 70 Foucault não é conhecido por sua participação na política. Sua teorização se centrava em analisar as condições de produção do saber moderno (que já apontavam para certa relação com o poder, como no caso da loucura e da emergência da psiquiatria). O pouco que se sabe de sua vida política prévia é que, influenciado por Althusser (seu professor) filiou-se ao PCF em 1947, saindo de suas fileiras em 1953, ano da desestalinização do partido após a morte de Stalin. Não se conhece nenhuma referência do filósofo francês sobre a guerra de libertação argelina (diferente de Sartre), conflito que agitou a vida política da intelectualidade francesa no pós-guerra. Lecionou em Varsóvia, Polônia, em 1958 (dois anos depois do levante de 1956), teve contato com um regime estalinista extremamente fechado e com a insatisfação com o regime por parte dos estudantes. No mesmo ano, foi obrigado a deixar o país por sua sexualidade. 

Pode-se especular que as conclusões (erradas) tiradas a partir da experiência na Polônia com o regime estalinista foram decisivas em sua aversão ao marxismo e ao socialismo. Soma-se a isso o desprestígio que o PCF vinha ganhando na intelectualidade francesa (e que o sucesso do estruturalismo é creditado desse descrédito) com as revoltas anti-stalinistas na Hungria em 1956 (além da já citada na polônia), na Alemanha Oriental de 53, a ruptura de Tito na Iugoslávia com Stalin e as posições vacilantes do próprio PCF em relação à luta de libertação nacional na Argélia.

Foucault não participou de maio de 68 pois se encontrava lecionando na Tunísia enquanto a revolta ocorria na França. Lá, teve contato com outro levante estudantil em protesto à Guerra dos Seis Dias e em defesa dos palestinos que se transformou em um questionamento ao regime de Habib Bourguiba. O filósofo engajou-se politicamente com o movimento estudantil e segundo Stuart Elden em The Archeology of Foucault “vários relatos sugerem que Foucault permitia que os alunos realizassem reuniões e escondessem suas máquinas copiadoras em seu apartamento, e os levava para passear em seu carro, além de esconder alunos perseguidos. Segundo Foucault: 

Os alunos foram levados para o porão, onde havia um refeitório, e voltaram com os rostos ensanguentados porque foram espancados. Lá, houve centenas de prisões. Vários dos meus alunos foram condenados a dez, doze, quatorze anos de prisão. Foi para mim um “mês de maio” muito mais sério do que aquele que eu teria conhecido na França.

Muitos desses estudantes eram orientados pelo marxismo (ou por algum tipo de marxismo). O filósofo francês indicava que a referência ao marxismo não era essencial, nem especialmente profunda.

Tratava-se, na verdade, de algo completamente diferente. O papel da ideologia política ou de uma percepção política do mundo era, sem dúvida, indispensável para o lançamento da luta; mas, por outro lado, a exatidão da teoria e seu caráter científico eram questões completamente secundárias que funcionavam mais como um atrativo do que como um princípio de comportamento adequado e correto. […] É estranho ver que o que para nós é puro discurso teórico (referindo-se a Althusser), aqui subitamente se eleva a um imperativo quase imediato”.

Segundo Elden, um aluno tunisiano de Foucault  “Mustafa Ben Tarjem, contou a LeVine sobre o impacto em seu pensamento, contrastando Foucault com Gramsci e indicando que a preocupação de Foucault, pelo menos na época, era epistemológica, enquanto a de Gramsci era prática”.

É a partir de então que Foucault passa a se engajar politicamente, tanto em sua produção teórica (com o giro genealógico sobre o poder) como prático. Sua relação política mais conhecida é com o GIP – Groupe d’Information sur les Prisons (Grupo de Informação sobre as Prisões). Segundo Mavi Rodrigues:

A politização da questão carcerária – cuja expressão maior foi o nascimento do GIP e o poder de atração que esta forma de luta exerceu – foi, em grande parte, determinada pelas repercussões de Maio de 68. Muitas vezes violentas e reprimidas por uma violência ainda maior, as manifestações de 68 redundaram em várias condenações de militantes de esquerda. A demanda 144 dos militantes presos em serem reconhecidos na condição especial de presos políticos, a solidariedade que nasceu entre estes e os presos comuns, as manifestações públicas de protesto, tudo isto suscitou ‘um questionamento mais geral sobre a condição penitenciária […] Foucault funda, em fevereiro de 1971, o Grupo de Informações sobre a Prisão, o GIP, que no auge de seu sucesso, entre os anos de 1972 e 73, chegou a reunir cerca de 3.000 militantes informais – na sua maioria maoístas, mas também profissionais liberais de diferentes especialidades técnicas […] Também de forma compatível com a produção foucaultiana dos anos 60, obstinada em evidenciar uma experiência originária da loucura silenciada e reprimida pelo monólogo da Razão, o GIP não pretendia falar em nome dos detentos, mas dar-lhes voz’.

Sua atividade militante passa então a se expressar em sua produção teórica, dando centro às investigações sobre a genealogia do poder com o objetivo de criticá-lo e tendo como resultado obras como Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão em 1975, diretamente vinculado ao GIP, e História da Sexualidade: a Vontade de Saber, além de entrevistas, artigos, e os próprios seminários ministrados no Collège de France. É nessa fase que passa a elaborar sobre o poder como algo difuso, espraiado pelo conjunto da sociedade e instituições para além do Estado, não como uma coisa que se obtém, mas como uma função (relacional, no sentido estruturalista) que se exerce. Poder e saber se relacionam intrinsecamente e se exerce através dos corpos. Quando trata do Estado, é para criticar seu aspecto policial e centralizador, por fora de sua relação com as classes sociais e o capitalismo. Para aprofundar nesse tema, vale ler as elaborações de Iuri Tonelo Michel Foucault: fundamentos filosóficos da genealogia do poder e Michel Foucault: o nascimento da política e a análise do Neoliberalismo.

Embora mantenha diálogos e relações com grupos maoistas, Foucault condena a “forma partido” como base para a conformação de Estados totalitários, alinhando-se com o forte autonomismo de sua geração. Mavi Rodrigues, em sua tese Michel Foucault Sem Espelhos defende que, apesar das mudanças de percurso, a coerência da obra do filósofo francês é buscar criar uma alternativa ao marxismo. Embora tenha algo de exagerado e reducionista nessa forma de ver, está correta em diagnosticar o caráter anti-revolucionário, anti-socialista e anti-marxista (embora com diálogos em algumas de suas obras como Vigiar e Punir e História da Sexualidade I) nas concepções de Foucault. Nessa fase, segundo Rodrigues, contra o ‘intelectual total’ de Sartre, ele opôs a noção do ‘intelectual específico’, cujo papel deve ser o de voltar-se mais para as lutas locais, precisas, imediatas e dispersas contra o poder. Um engajamento intelectual que não tem mais pretensões revolucionárias nem qualquer contribuição a dar na formação da consciência de classe do proletariado”. Seu papel se resumiria a ser um crítico das relações entre poder e conhecimento (abre-se, assim, uma avenida para os atuais “giro epistêmicos”) que assujeita os indivíduos, concepção duramente criticada por Edward Said (que lidava com o drama concreto do povo palestino).Seu pensamento político é melhor traduzido pela seguinte passagem citada por Rodrigues:

Em Sexualidade e Política, entrevista concedida em maio de 1978, Foucault  – após afirmar que o que lhe interessa são as lutas que não objetivam tomar o poder maior (nacional), mas recusá-lo – distingue as lutas diretas e cotidianas contra o poder e a luta revolucionária da seguinte forma: “uma diferença entre os movimentos revolucionários e as lutas contra o poder cotidiano é precisamente que os primeiros não querem o sucesso. O que significa ter sucesso? Significa que uma demanda qualquer que seja ela – uma greve, por exemplo, foi aceita. Ora se foi aceita, isso prova que os adversários capitalistas são mais flexíveis, usam mais estratégias e são capazes de sobreviver. Os movimentos revolucionários não desejam isso. Em segundo lugar, de acordo com uma visão tática já presente no próprio Marx, imagina-se que a força revolucionária é tão mais importante quanto mais aumente o número de descontentes. Se a demanda é aceita – ou seja, se tivermos sucesso – isso implica que a potencialidade revolucionária diminui […] Em suma, tudo é feito para que jamais tenha sucesso […] A luta contra o poder cotidiano tem, pelo contrário, o objetivo de ter êxito […] Se eles pensam que a construção de um aeroporto ou de uma central elétrica em tal ou tal lugar é prejudicial, eles a impedem até o fim. Eles não se contentam com um sucesso como aquele da extrema esquerda revolucionária que pensam: ‘Nossas lutas avançaram dois passos, mas a revolução recuou um passo’. Vencer é conseguir”

Importante salientar que as elaborações de foucault sobre os loucos, os presos, os anormais, sobre o racismo e sobre a homossexualidade foram importantes para as lutas dos setore oprimidos e cumpriram um papel progressista. Mesmo assim, era feita dentro de uma perspectiva anti estratégica do ponto de vista da emancipação humana e anti-marxista. Como coloca Rodrigues, parafraseando Terry Eagleton:

a crença na perenidade do sistema capitalista faz crescer o interesse pelas margens e minorias, o impulso radical muda gradualmente da transformação para subversão, a micropolítica aparece como uma virtude, o desprezo pela totalidade torna-se um código para não se considerar o capitalismo e a realidade objetiva passa a ser concebida como um problema epistemológico

Foucault e a revolução iraniana

Em 1978 o regime altamente corrupto e pró-ianque do Xá, fruto do golpe de 1953 orquestrado pela CIA e Mossad, enfrenta uma crise econômica aguda, resultado da crise no preço do petróleo (principal produto exportado pelo país). A insatisfação social já era grande pela acelerada modernização dependente levada adiante pelo regime, que tinha como consequência um enorme enriquecimento da classe dominante, um acelerado fortalecimento das forças armadas e de seu equipamento bélico (assim como da SAVAK – sanguinário serviço de inteligência e repressão) com 25% do PIB gasto em armamento e uma gritante expansão da miséria social. Em 1963, como consequência de sua “revolução branca” e reforma agrária que favoreceu os latifundiários e generais em detrimento dos camponeses e do clero xiita, o regime se enfrentou com uma revolta liderada pelo aiatolá Khomeini que teve como resultado o exílio deste último no Iraque, sua projeção como liderança política e religiosa e o saldo de mais de 20 mil mortos.

Com a alta dos preços em 1978, inicia-se em janeiro uma agitação dos estudantes e da intelligentsia nas universidades que é duramente reprimida. Assim começa o furioso movimento das massas em uma dinâmica crescente em que decretava-se 40 dias de luto pela morte de manifestantes nas mãos da repressão seguido de manifestações mais massivas de estudantes e pobres urbanos junto ao clero xiita. Em Setembro, em uma manifestação contra a repressão da SAKAV, 3 mil manifestantes são fuzilados pelas forças armadas, evento que foi batizado de “Sexta Feira Negra”. O movimento se alastra para a classe trabalhadora que inicia uma greve geral nas refinarias, fábricas, siderurgia, transporte, portos, mineração e comunicação.

É no calor desses acontecimentos que Foucault, como correspondente especial do jornal italiano Corriere della Sera, vai ao Irã para testemunhar de perto o único processo agudo de luta de classes de seu tempo que analisa e emite julgamentos (diferente dos processos de libertação na África e a revolução na Nicarágua, por exemplo, que seu silêncio é absoluto). Uma parte menor de seus textos foram publicados nos semanários franceses Le Monde e Le Nouvel Observateur. Os textos se encontram compilados no livro de Kevin B. Anderson Foucault e a Revolução Iraniana, juntamente à comentários do autor sobre eles. Nesse processo histórico, as concepções teórico-filosóficas de Foucault foram colocadas à prova na realidade e por isso é importante dar destaque para esses escritos.

Em sua análise, a modernização do Irã é condenada, não apenas pelo seu aspecto dependente, mas como um todo. Em diálogo com o escritor iraniano Baqir Parham, o filósofo francês afirma que o capitalismo industrial “é a sociedade mais dura, mais selvagem, mais egoísta, mais desonesta e opressora do que se poderia imaginar”. No artigo “O xá está cem anos atrás dos tempos”, o filósofo coloca:

existem certos tecnocratas, cuja função é corrigir os erros da prévia geração de tecnocratas. Um deles me explicou que tudo ainda poderia ser consertado e que uma modernização ‘razoável’ poderia ocorrer, que levaria em conta a ‘identidade cultural’ mas sob as condições que o rei abandone os seus sonhos. […] Eles não entenderam que no Irã de hoje é a modernização que é o peso morto.

Para Foucault, não se tratava de uma revolução, esta entendida como um “esforço de aclimatar os levantes dentro de uma história racional e controlável” (como colocado em É inútil se revoltar?. Tratava-se de algo novo, de uma singularidade, de uma descontinuidade na história, da emergência de uma “espiritualidade política” (ausente desde a eclosão da Revolução Francesa), uma “vontade política” coletiva que englobava todo o povo iraniano contra o Estado, sem vanguarda nem partido (diferentemente da China e Vietnã), em que não se podia identificar a luta de classes (apesar da greve geral de massas).

Stuart Elden aponta, em obra já citada, que um aluno tunisiano de Foucault, durante os eventos de 1968, contrasta-o com “com Gramsci e indicando que a preocupação de Foucault, pelo menos na época, era epistemológica, enquanto a de Gramsci era prática”. Essa postura epistemológica de encarar os processos reais é perceptível na leitura de Foucault sobre os eventos no Irã. Mais do que no desfecho da revolução e nas disputas pelos seus rumos, se interessou pela experiência para aqueles que dela fizeram parte. Em Teerã: A Fé contra o Xá, especula uma conversa com um escritor não religioso:

“Nem precisei perguntar a ele se essa religião, que alternativamente convoca o fiel à batalha e comemora os mortos, não estaria profundamente fascinada pela morte – mais focada, talvez, no martírio do que na vitória. Eu sabia que ele teria respondido:  O que preocupa vocês, ocidentais, é a morte. Vocês lhe pedem que os retire da vida, e ela ensina-lhes como desistir. Já para nós, nós cuidamos dos mortos porque eles nos ligam à vida. Estendemos as mãos a eles para que eles nos liguem à permanente obrigação por justiça. Eles nos falam do que é certo e da luta que é necessária para que o que é certo triunfe.”

Em É Inútil se Revoltar?, Foucault escreve

“Sublevações pertencem à história, mas, de certo modo, escapam dela. O movimento pelo qual um homem sozinho, um grupo, uma minoria, ou todo um povo diz: “Eu não obedecerei mais”, estando dispostos a arriscar a própria vida em face de um poder que acreditam não ser justo, parece-me ser irredutível. Isso ocorre porque nenhum poder é capaz de tornar as revoltas absolutamente impossíveis. Varsóvia sempre terá o seu gueto em revolta e seus esgotos ocupados por insurgentes. O homem revoltado é, em última análise, inexplicável. Deve haver um desenraizamento que interrompa o desenrolar da história, e sua longa série de razões, para um homem “realmente” preferir o risco da morte à certeza de ter que obedecer.”

Para além da evidente qualidade literária dos textos (com uma certa dose de orientalismo), essa curiosa forma idealista de ver os acontecimentos, com pouca importância (para ser generoso) para a análise concreta das forças e classes em disputa no turbilhão dos acontecimentos,  levou o filósofo francês a embelezar enormemente o xiismo. Em primeiro lugar, não considerou que o próprio xiismo era um produto histórico imposto na Pérsia durante o período safávida (1501-1722), e não uma cultura tradicional milenar. Em segundo lugar, que a leitura do xiismo levada adiante pelos mulás e pelo aiatolá Khomeini era uma revisão moderna do dogma religioso em função dos interesses políticos do clero.

Assim, via no xiismo uma possibilidade de ruptura da racionalidade ocidental a partir de uma revolta em que o motor era antes uma reação cultural e religiosa ao processo de modernização. Na organização do clero, viu um potêncial de estrutura de poder descentralizado (comparada à igreja católica), e na palavra de ordem “governo islâmico”, que apontava claramente para uma teocracia autoritária (já que já existia um governo islamico na Arabia Saudita e os textos do islã claramente apontava para a intolerância com as mulheres e minorias), viu uma utopia e um potencial igualitário. Disse ainda que como não havia partido Khomeini, não haveria governo Khomeini. 

Em sua Carta Aberta ao Primeiro-Ministro Mehdi Bazargan, de abril de 1979 escreve “Com relação à expressão ‘governo islâmico’, por que lançar suspeita imediata ao adjetivo ‘islâmico’? A palavra ‘governo’ é suficiente em si mesma para despertar vigilância. Nenhum adjetivo – seja democrático, socialista, liberal ou do povo – o liberta de suas obrigações”. Essa passagem ilustra bem a visão de Foucault. O problema estaria na ideia de governo, independente de qual for, ou seja, na própria ideia de poder (importante ressaltar que aqui ele fala de governo, e não de Estado). Se é um governo democrático, autoritário, socialista ou teocrático, pouco importa.

Para Anderson, um dos motivos do encantamento do filósofo francês com o xiismo é seu fascínio pelas experiências limítrofes, pela morte e autenticidade e pelas práticas de auto-flagelo como práticas de si que era possível encontrar nos rituais do xiismo  (Foucault foi praticante de sadomasoquismo, assim como um setor da intelectualidade francesa, como experiência de uma expansão da sexualidade para todo o corpo através da dor e como exploração das relações entre sexualidade e poder). Anderson especula que é a partir dessa experiência que Foucault passa a investigar sobre as práticas de si, confissão e autopunição no cristianismo, investigação que desembocará nas pesquisas sobre a antiguidade clássica em História da Sexualidade II e III. 

No último de seus textos sobre o Irã, É Inútil se Revoltar?, publicado em maio de 1979 no Le Monde, Foucault afirma que, ao contrário dos estrategistas que buscam interferir no processo histórico, sua ética é anti estratégica e que busca respeitar a singularidade histórica quando essa emerge. Essa lamentável ética anti estratégica o impediu de ver a feroz luta concreta que se dava pelo poder dentro do processo revolucionário (ao contrário da grande unidade realizada pelo islã) e que os produtos mais artroses da modernidade, como as armas e os instrumentos de espionagem e repressão, seriam utilizados pelo regime islãmico para, após sua chegada ao poder, reprimir brutalmente toda a oposição, o movimento estudantil e a classe trabalhadora, com mais de 8 mil opositores executados. 

Sua busca e respeito pelo que achava que era uma singularidade histórica com potencial de romper a racionalidade moderna ofuscou sua visão para a emergência da instituição mais poderosa, decisiva e com maior potencial emancipador durante toda a revolução iraniana: os Shuras – ou conselhos de trabalhadores, com peso entre os estratégicos trabalhadores do petróleo, muito semelhantes aos soviets (conselhos) russos. Segundo Santiago Montag, o Shura:

Era uma organização de base com eleições democráticas para seus representantes, sem distinção de gênero. Seu objetivo era promover o controle da produção pelos trabalhadores e expropriar fábricas para abastecer o mercado interno e os pobres urbanos. Desenvolveram até mesmo formas de organizar a autodefesa contra as gangues do Xá e, posteriormente, contra a repressão. Os camponeses replicaram esse método com a expropriação de terras; da mesma forma, nas províncias oprimidas do Curdistão, Turcomenistão, Baluchistão e Lur, os Shuras permitiram que eles tomassem cada vez mais o poder em suas províncias para alcançar a autodeterminação.

É esse filho maldito da modernidade (os conselhos de trabalhadores), presente repetidamente nos principais processos de luta de classes, que dialeticamente pode de fato romper a racionalidade da modernidade burguesa e permitir um horizonte emancipatório para a humanidade que erradique a exploração e a opressão a partir de uma planificação democrática da produção pela base.

Infelizmente, no caso da revolução iraniana, como aponta Osvaldo Coggiola em A Revolução Iraniana, faltou independência política à classe trabalhadora. As organizações de esquerda com peso nos Shuras também defedenderam a palavra de ordem de “governo islâmico” pelo potencial anti imperialista, assim como a instaruação do governo do aiatolá Khomeini, desarmando-se politicamente para a luta pela direção da revolução. O processo revolucionário, evidentemente proletário, terminou sendo usurpado pelo clero que culminou em uma teocracia autoritária e opressiva às mulheres e às minorias étnicas e religiosas. Foucault foi duramente criticado pela intelectualidade francesa por suas posições e nunca mais se pronunciou sobre o Irã.

O último foucault

As derrotas na luta de classes que inauguram o neoliberalismo, como a derrota dos mineiros ingleses para Thatcher, dos controladores de voo nos EUA para Reagan e a ditadura Pinochet no Chile, somados as notícias sobre o Camboja de Pol Pot e os exageros cometidos na revolução cultural chinesa, assim como notícias dos Gulags na URSS, o resultado da revolução iraniana, o surgimento do sindicato Solidariedade na Polônia (que passa a ser dirigido pela igreja católica) e a realidade dos governos pós-coloniais na África, impactam profundamente a intelectualidade francesa. Se a rebelião estudantil de maio de 68 rachou o paradigma do estruturalismo, abrindo as portas para o evento e a série típicas do pós-estruturalismo, esses acontecimentos do final dos 70 e início dos 80 ferem o paradigma de morte, abrindo espaço para o retorno do sujeito, da ética e do humanismo, assim como de valores ocidentais como direitos humanos e democracia. Segundo François Dosse, em História do Estruturalismo Vol II. “passou-se, sem transição, da desconstrução para a dissolução”. 

O resultado da revolução iraniana marca uma inflexão na produção de Foucault. O filósofo passa a se distanciar dos temas diretamente envoltos com o poder e atravessa a crise paradigmática junto com sua geração. Como Dosse aponta,  o título dos cursos dados no Collège de France de 1980 à 1983 “revelam o radicalismo da mutação consumada”: Subjetividade e Verdade, Hermenêutica do Sujeito e O Governo de Si e dos Outros. O volume II e III da História da Sexualidade, que publica em 1984 (pouco antes de falecer), depois de 8 anos do lançamento do Vol I, revelam a profunda mudança de percurso e alteração do projeto inicial da sua História da Sexualidade. Se no Vol I: A Vontade de Saber Foucault se ocupou das relações entre sexualidade e poder, do biopoder e da governamentalidade, elaborando sobre os dispositivos de sexualidade e o caráter produtivo do poder (ao invés de apenas repressivo, como na visão dos freudo marxistas como Wilhelm Reich e Herbert Marcuse), no Vol II. O Uso dos Prazeres e Vol III. O Cuidado de Si, a partir da investigação sobre a Antiguidade, o filósofo se ocupa do Sujeito e sua relação com a ética. Dito de outra forma, partindo do Sujeito, como ocorre os diferentes modos de subjetivação na cultura, como os indivíduos se constituem como sujeitos de conduta moral. Foucault queria assim refratar as teorias do reflexo, em que a subjetividade é mero reflexo dos processos históricos e sociais. De certa forma, à seu modo, resgata a noção de agência, porém, individual e não coletiva com potencial transformador. Segundo Rodrigues 

“O sujeito que retorna no último Foucault em nada se assemelha com a concepção moderna de um sujeito uno, coerente e consciente. O sujeito que renasce nesta fase do pensamento foucaultiano é, antes de tudo, um indivíduo, um mônada social – um sujeito corpo, no qual se fundem o político e a arte de viver.

Como Merquior resume, “em O Uso dos Prazeres é examinado a maneira como a filosofia e o pensamento médico dos gregos abordaram o problema da ética sexual em três diferentes áreas da experiência: a dietética (o regime do corpo), a economia (a administração do oikos ou lar) e a corte amorosa”. Passando por textos de Platão, Xenofonte e Aristóteles, centra suas observações na enkrateia, ou domínio de si mesmo. Os prazeres e o desejo devem ser moderados, pois aquele que não domina a si é escravo de seu desejo. Essa prescrição teria relevância principalmente na relação entre homens e rapazes. O que era recriminado não era a relação entre duas pessoas do mesmo sexo (embora ouvesse desprezo pela relação entre adultos; a desigualdade – homens e rapazes – era fundamental), mas a passividade, ser penetrado. A grande questão é que, segundo Foucault, as condutas sobre o desejo eram prescritivas, como formas de uma estetização da atitude e uma estética da existência, uma forma de governo de si, e não como código moral impositivo que, caso não cumprido, levaria a punição e danação, como na moral cristã e na modernidade. Havia ali certa liberdade. 

Em O Cuidado de Si, Foucault analisa o período Helenístico, os primeiros anos da era cristã. Ali, observa que a desconfiança com os prazeres se intensifica, assim como a necessidade de autocontrole. A relação entre homens e rapazes não é mais glorificada e o casamento e conjugalidade entre homens e mulheres são valorizados, mas ainda sem o surgimento dos códigos morais do cristianismo de repressão do desejo. Melquior aponta que neste último Foucault, é observável um afrouxamento da noção de descontinuidade histórica e há certa noção de evolução (como na relação das práticas de si), assim como um grau de crítica menos acentuado em relação à modernidade nesse fase de elaboração teórica do filósofo (como sua afirmação de que há distintos humanismos no texto de 1984 O que é o Iluminismo?)

Embora Foucault pontue os problemas da ética sexual grega, como sua recriminação da passividade, a relação desigual entre homens e rapazes, a misogenia do pensamento grego em relação às mulheres e a exclusividade do governo de si aos cidadãos livres (o que exclui escravos e mulheres) como preparação para o governo dos outros, não foi poupado por Kevin Anderson pelo caráter exclusivamente masculino dos textos analisados pelo filósofo francês, excluindo a voz e a experiência feminina (assim como a lésbica) de suas investigações sobre as práticas de liberdade. Rodrigues afirma que esse movimento de Foucault, de ressaltar a ética grega, é um retorno ao aristocratismo reacionário de Nietzsche. Segundo Dosse, a historiadora Maria Daraki afirmou que Foucault tende a supervalorizar a dimensão sexual dos textos gregos, ao passo que, “por trás das condutas sexuais, o que está em jogo permanece fundamentalmente vinculado ao religioso e ao político”.

Apesar de existir graus de verdade na leitura de Rodrigues e Anderson, escapa-lhes o centro da teorização de Foucault. Tendo a concordar com François Dosse quando afirma, citando Pierre Macherey, que a grande questão para o filósofo estaria nas condições de liberdade dentro de uma estrutura. Isso se relaciona com sua própria tragédia pessoal, o perecimento diante da AIDS, que reforça a “marginalidade em que é mantida a homosexualidade”. Nessa resposta teórica à psicanálise (afirma que esta é herdeira das práticas de confissão e exames de consciência do cristianismo) em seu próprio campo – a sexualidade -, o filósofo buscava uma nova ética da existência como lição para fazer da vida uma obra de arte. Segundo Ortega em A Amizade e Estética da Existência em Foucault, Foucault pretendia a partir da ética grega abrir espaço para um estilo de vida homessexual, mais livre do que as condutas morais da família e baseados em uma ontologia da amizade. Para Dosse

A patologização progressiva dos corpos, a culpabilização crescente que culminará na patrística cristã, o medo que extravasa das práticas sexuais e reflui sobre a monogamia: todo esse contexto de crise nos leva até àquilo que Foucault se debate desde o começo da descoberta de sua homossexualidade. Esse desvio pela Grécia e por Roma remete, por conseguinte, em grande parte ao não dito do indivíduo Foucault, à sua busca desesperada e urgente de uma ética, de uma ascese espiritual compensatória de um desprendimento próximo de seu corpo, de uma libertação da culpabilidade mortífera que o habita, e de uma reconciliação final consigo mesmo.

Com esses elementos como centro, é possível analisar essas últimas elaborações de Foucault como uma saída mais carregada de ceticismo histórico, após o desfecho da revolução iraniana e das notícias do socialismo real,  em relação às possibilidades de algum tipo de transformação social. Em conversa com Pierre Blanchet e Claire Brièri no final dos 70 (posteriormente publicada), Foucault afirma que havia na revolução iraniana a necessidade de “mudar a si mesmo para mudar o regime, a política e o sistema econômico”. Com seu tradicional embelezamento das culturas pré modernas, (nesse caso a grega e a helênica), o último Foucault abandona a dimensão da transformação social e realça a necessidade de mudar a si mesmo através de práticas de liberdade que busquem uma estética da existência, uma perspectiva individual de busca de graus de liberdade em relação aos assujeitamentos do poder.

Claro que pensar e experimentar formas criativas de existência que questionem a normatividade do código moral burguês em relação à sexualidade e aos modos de vida, assim como ressaltar o papel da amizade em detrimento da instituição familiar (como fez Andrea D’atri em O Potencial Subversivo da Amizade) são interessantes e progressistas. Porém, a saída foucaultiana encontra dois limites claros: 1) ela é restrita a uma pequena elite intelectual com recursos econômicos para tal empreitada, enquanto a grande massa permanece oprimida pelos ditames do poder; 2) mesmo para essa pequena minoria, como seres sociais que são, é difícil imaginar uma libertação individual pela ética em uma sociedade marcada pela alienação, pela mercantilização das relações e pelo fetichismo da mercadoria como traços fundamentais de sua cultura. Além do mais, o neoliberalismo soube se apropriar e mercantilizar modos de vida alternativos, inclusive aqueles das minorias (como pode-se ver no pink money) . Em tempos como o nosso, em um capitalismo cada vez mais em crise, com uma ascensão de forças reacionárias como as igrejas evangélicas e a extrema direita, essa saída fica ainda mais questionada.

Por uma ética revolucionária

Segundo Matías Maiello em Apontamentos sobre a luta das ideologias para além da Restauração

Para além das limitações que impediam – e ainda impedem – a sua plena realização, o neoliberalismo como conjunto de princípios conseguiu impor-se a nível global. Configurava, nas palavras de Anderson, a ideologia de maior sucesso da história da humanidade. O individualismo burguês encontrou terreno aberto para avançar a níveis nunca antes alcançados. O neoliberalismo passou a ser associado a uma ideia de democracia definida pela sua mera oposição ao totalitarismo. Ele identificou a ideia de liberdade com o modelo de livre mercado contra qualquer tipo de coletivismo entendido como estatismo.

A saída individual do último Foucault de uma estetização da existência a partir de uma outra ética é expressão da adesão do filósofo, pós revolução iraniana, à ideologia neoliberal (pouco importa se de forma consciente ou inconsciente) e ao seu paradigma individualista, ou àquilo que Nancy Fraser chamou de neo liberalismo progressista.

Para tirar o programa de transformar a vida em obra de arte da seara neoliberal, para que possa se generalizar ao conjunto da sociedade e para que não se esbarre com os limites impostos pela alienação, pela mercantilização das relações e pela fetichismo da mercadoria, é preciso avançar para aquilo que, como Tonelo apontou em Michel Foucault: o Nascimento da Política e a Análise do Neoliberalismo, Foucault sempre escondeu ao tratar do marxismo: a comuna, a democracia de conselhos, capaz de planificar a sociedade desde a base. É essa a base material, a dos conselhos, que pode permitir, como desenvolve Maiello, que a cooperação social (ocultada no capitalismo) se torne evidente e que a política se transforme em prática de autogestão e de governo de si coletivo (sem governo dos outros). Nesse organismo, a individualidade e a liberdade individual se desenvolvem a partir das potencialidades abertas pela coletividade – nada mais distinto disso do que a planificação burocrática stalinista. É essa perspectiva de socialismo que poderia libertar a humanidade da necessidade e possibilitar de fato a implosão dos códigos morais impositivos e opressivos, permitir que os indivíduos tenham tempo para o cuidado de si e abrir espaço para novas formas de vida e de estetização da existência,  também no campo da sexualidade mas para o conjunto da vida.

Zizek, autor que não me disperta muita simpatia por suas constantes declarações problemáticas, em Nossa resposta ao Talibã, artigo de 2021 que analisa a tomada do poder pelo Talibã no Afeganistão após a saída das tropas norte americanas, retoma o encontro de Foucault com o Irã em convulsão. Afirma que o que intrigou o filósofo francês no islã foi não apenas os rituais e martírios, mas o engajamento e o compromisso coletivo, tão distantes das práticas de cuidado de si do individualismo liberal em que cada um está focado em pequenas coisas que dão prazer à sua vida. O esloveno afirma ainda que o marxismo é o exemplo europeu (e moderno) do tipo de engajamento que Foucault viu no Irã (faltou dizer que o marxismo não é apenas europeu e que possui potencial emancipatório, diferente do islã fundamentalista). Para enfrentar as atuais crises, segundo Zizek, como a climática (ainda não presenciava a escalada bélica atual), seria preciso de “uma ação coletiva em grande escala que demandará suas próprias formas de martírio, o sacrifício de muitos prazeres aos quais nos acostumamos”. Afirma ainda que “se realmente quisermos mudar todo o nosso modo de vida, o ‘cuidado de si’ individualista que gira em torno do uso dos nossos prazeres terá que ser superado” e será necessário “uma ciência enraizada no mais profundo engajamento coletivo” – o marxismo.

Neste sentido, como militante político, defende uma ética revolucionária que seja capaz de questionar o código moral burguês e suas consequentes opressões e assujeitamentos, limitantes da liberdade, e que esteja em função das necessidades de uma práxis coletiva, não para criar modos de vida alternativo, mas para a revolução social que ponha de pé um socialismo desde a base que permita a humanidade desenvolver a mais absoluta liberdade e que cada indivíduo desenvolva a mais plena criatividade. Pela práxis, essa ética revolucionária também permite o desenvolvimento da individualidade através do engajamento coletivo ao projeto emancipatório. Um bom exemplo é apresentado por Pierre Broué em O Partido Bolchevique quando descreve os jovens revolucionários russos que fizeram 1917 durante os anos de formação do partido: 

A moral destes homens é de uma solidez a toda prova: oferecem o que tem de melhor de si, com o convencimento de que só assim podem expressar todas as possibilidades que fervilham em suas jovens mentes. Sverdlov, clandestino desde os dezenove anos e enviado pelo partido para organizar os operários de Kostroma, no norte, escreve a um amigo: “Às vezes sinto falta de Nizhny-Novgorod, mas, definitivamente, estou contente por ter partido, pois lá era impossível abrir as asas que acredito possuir. Em Novgorod aprendi a trabalhar e cheguei aqui possuindo alguma experiência. Conto com um amplo campo de ação onde posso aplicar minhas forças”. Preobrazhenski, principal líder do partido ilegal nos Urais durante o período de reação, é detido e julgado. Quando Kerenski, seu advogado, tenta negar os crimes dos quais o acusam, se coloca de pé num salto, desautoriza-o, afirma suas convicções e reivindica a responsabilidade de sua ação revolucionária. Naturalmente, é condenado. Somente depois, com a vitória da revolução, descobrirá o partido que este homem, revolucionário profissional desde os dezoito anos, é um economista de enorme valor.

Abnegação e desenvolvimento da individualidade dentro de um projeto coletivo caminham juntos. Penso que aí se encontram as mais significativas práticas de liberdade e as mais belas estetizações da existência que é possível dentro do capitalismo. Impossível pensar a vida como uma obra de arte mais bonita. 

Bibliografia

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FOUCAULT, M. História da Sexualidade II: O Uso dos Prazeres. São Paulo, GRAAL, 2003b. 

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MAIELLO, M. Apontamentos sobre a luta das ideologias para além da Restauração Burguesa, 2024.

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TONELO, I. Michel Foucault: a crítica à modernidade e a arqueologia do saber (parte 1), 2024.

TONELO, I. Michel Foucault: fundamentos filosóficos da genealogia do poder (parte 2), 2024.

TONELO, I. Michel Foucault: o nascimento da política e a análise do neoliberalismo (parte 3), 2024

ZIZEK, S. Nossa Resposta ao Talibã, 2021.

 

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