Revista Casa Marx

Parditude, uma contradição

Renato Shakur

Esse artigo tem como objetivo debater o conceito de parditude desenvolvido por Beatriz Bueno a partir da perspectiva crítica do marxismo, apontando questões conceituais, teóricas e políticas que envolvem sua elaboração, tal como o sentido estratégico que está submetido enquanto uma proposta política antirracista.

Imagem: Maxwell Andrade

1. O que é parditude?

O conceito de parditude elaborado por Beatriz Bueno tem um propósito duplo. Enquanto proposta política antirracista se baseia na “anunciação de sujeitos mestiços”, isto é, no “discurso da mestiçagem” e enquanto conceito se baseia na relação entre o histórico “multirracial” brasileiro e a conformação de uma “consciência mestiça” 12 . Em certo sentido, Beatriz Bueno tenta definir quem é negro no Brasil, uma questão atravessada pela teoria da democracia racial que estabeleceu dificuldades ao indivíduo negro de pele clara em se autodeclarar negro, onde o Estado criou uma serie de nomenclaturas para designar a identidade deste setor, como o pardo.

Beatriz Bueno parte desta suposta indefinição acerca da identidade negra para definir este “não-lugar” da identidade negra, conceituando a categoria “pardo” a fim de dar conta da experiência racial de um amplo setor da população brasileira que sofre racismo, mas por conta da combinação entre fatores fenotípicos e elementos ideológicos, não se reivindica negra.

A parditude como conceito, propõe uma explicação através do dito passado “multirracial” brasileiro acerca de uma determinada “identidade racial”, ressignificando o processo de miscigenação, tanto em sentido político-social no que toca a conformação de uma “identidade racial parda” quanto em sentido cultural, buscando as formas hibridas da cultura brasileira, conferindo aos pardos ou mestiços a composição de um grupo social distinto do negro, do branco e do indígena.

A parditude propõe uma nova perspectiva para analisar o pardo e o negro, se distanciando da ideia de que o mestiço seria a expressão da identidade nacional, ao mesmo tempo negando a ideia que o pardo seria negro. Para ela, este grupo social possui uma posição singular enquanto grupo racial, porque recria um novo discurso sobre suas características fenotípicas e, portanto, sobre sua própria “identidade racial”.

Para Beatriz Bueno foi se cristalizando ao longo de anos de luta do movimento negro uma tentativa de “eliminação das identidades mestiças” a partir da birracialidade para reafirmar a luta antirracista, defendendo que “pardo não existe” ou “pardo é negro”. Esse processo, segundo ela, se confunde com a reivindicação da hipodescendência por parte do movimento negro e de intelectuais para definir os grupos sociais envolvidos na luta por direitos no Brasil.

O conceito de hipodescendência tem sua origem no racismo científico ao definir que o “cruzamento” de grupos raciais e inter-étnicos tem como resultado racial um “indivíduo do grupo racial inferior”. Uma teoria reacionária que tentou de todas as maneiras reforçar a exploração e a violência racista, indicando que biologicamente as “raças” negras e indígenas degenerariam a sociedade como um todo, caso seguissem o caminho de sua perpetuação. Entretanto, é criticado pela autora, com objetivo de afirmar que o “resultado racial” daquele cruzamento é o indivíduo mestiço e não negro ou indígena. 

A parditude é, portanto, a negação desta concepção monorracial supostamente adota pelo movimento negro e a reivindicação de um passado multirracial expresso numa reinterpretação da mestiçagem em chave positva.

2. Mestiçagem

A mestiçagem como expressão da violência de colonizadores europeus contra africanos e indígenas, foi largamente abordada como objeto de estudo não apenas pelo “racismo científico”, mas também pelo pensamento social brasileiro, isto é, ora foi estudado como um fator da explicação da “degeneração” social e moral nos trópicos, ora como o fator singular da identidade nacional brasileira. 

Beatriz Bueno propõe uma nova interpretação sobre a mestiçagem se distanciando dessas duas correntes de pensamento. Para ela, a contradição da miscigenação se expressa no corpo. Há ênfase exacerbada na explicação da mestiçagem desde os traços fenotípicos (como cabelo, cor da pele, tamanho da boca e nariz, etc) como única forma capaz de definir a “identidade racial” da população tida como “parda”.

“Ainda que a raça seja, do ponto de vista biológico, uma construção social, seus efeitos sociopolíticos são absolutamente reais —e se manifestam de forma diferente conforme a materialidade corporal dos sujeitos” 3 .

Sua posição leva a concluir que, para além do corpo, não existe muita coisa que conforma a identidade, ignorando que há uma série de fatores que são elementares para a formação da identidade negra como por exemplo a cultura, a linguagem, a estética, os processos de luta, etc. Além disso, a identidade deixa de ser parte da construção coletiva, sendo exclusivamente resultado de características físicas, isto é, uma perspectiva individual e biologizante. 

A maneira de enxergar o racismo de um ponto de vista individual deita raízes em outras elaborações teóricas. Em parte, Beatriz sustenta esse ponto de vista se baseando na categoria de “preconceito de marca” em comparação ao “preconceito de origem” desenvolvido pelo sociólogo Oracy Nogueira nos anos 1950. 

Segundo o autor, a compreensão de quem é branco ou não no Brasil, varia de acordo com o grau de “mestiçagem” na relação do indivíduo com outro indivíduo em função da região e da classe a que pertence. Sua intenção era denunciar o racismo vivido por negros e negras naquele período, ao mesmo tempo que findava a argumentação de que o Brasil teria relações raciais mais amenas em comparação aos Estados Unidos já que possuía leis de segregação racial, ao contrário daqui.

“Onde o preconceito é de marca, como no Brasil, o limiar entre o tipo que se atribui ao grupo discriminador e o que se atribui ao grupo discriminado é indefinido, variando subjetivamente, tanto em função dos característicos de quem observa como dos de quem está sendo julgado, bem como, ainda, em função da atitude (relações de amizade, deferência etc.) de quem observa em relação a quem está sendo identificado, estando, porém, a amplitude de variação dos julgamentos, em qualquer caso, limitada pela impressão de ridículo ou de absurdo que implicará uma insofismável discrepância entre a aparência de um indivíduo e a identificação que ele próprio faz de si ou que outros lhe atribuem” 4 .

Oracy opera com tipos ideais para diferenciar o racismo nos Estados Unidos e no Brasil. Em perspectiva weberiana, ressalta nas relações raciais o conceito de ação social, isto é, a interação subjetiva entre indivíduos que organiza comportamentos sociais atento ao sentido, finalidade, de sua ação sobre o outro, para compreender as relações raciais em ambos países. Nos Estados Unidos bastaria algum traço negroide para algum indivíduo poder definir o outro como negro, no Brasil o quadro seria totalmente diferente, a indefinição característica do racismo em nosso país estaria confinada na intenção e critérios do observador sobre indivíduo observado que podiam variar segundos os critérios/variáveis já mencionados.

Ao distinguir as relações raciais dos dois países, Oracy Nogueira vê que a contradição da mestiçagem se encontra na ação social, na razão da definição de um indivíduo sobre o outro acerca de sua identidade, isto é, para ele a contradição está na intenção do observador caracterizar se o indivíduo é negro ou não. Nessa equação de Oracy Nogueira, outras determinações que permeiam as relações raciais como o Estado, a cultura, o trabalho, etc, ficam do lado de fora da análise.

Com objetivos distintos, o conceito de “parditude” e de “racismo de marca” se tornam quase complementares. Quando o primeiro desloca a contradição para o corpo, ou seja, a definição da identidade negra corresponde apenas aos traços fenotípicos e quanto o segundo desloca a contradição para a ação social, a reivindicação da identidade negra não é expressão da própria vontade e desejo do negro, mas lhe é externo, o negro não é sujeito de sua própria história e sua identidade se torna refém ora de suas caracteríticas biológicas ora do olhar intensionado de algum observador.

Nem no corpo, nem na ação social, a contradição está na história. A identidade negra é forjada como resultado de um processo de choques sociais e culturais e enfrentamentos na sociedade atrelados a um exercício de autoconsciência. No caso brasileiro, isso significa dizer que a burguesia que nasceu espremida entre a revolta negra e a espoliação imperialista, encontrou na democracia racial uma forma ideológica de atenuar as contradições sociais próprias da superexploração do capitalismo brasileiro que se combinava a elementos repressivos de caráter preventivos. Nesse sentido, quanto mais “mestiço” podia imaginar-se um trabalhador, mais a classe dominante sabia que o passado de lutas, greves, revoltas, quilombos, etc, se afastava do movimento operário. Essa era uma das garantias de que a Casa Grande poderia dormir mais um dia tranquila.

3. Localizando um conceito

Para além de precisar o conceito, também se faz necessário localizá-lo politicamente. Em nossa perspectiva, a maneira pela qual Beatriz Bueno desenvolve este deslocamento da história para o corpo, se encaixa perfeitamente no momento político que vive o país. Como desenvolvemos mais a frente, a parditude é uma teoria que prevê um sujeito negro sem autoatividade, já que como abordamos ele não pode ser sujeito de sua própria história. Essa perspectiva se encaixa perfeitamente na política levada à frente pelo governo Lula que combina a existência de dois tipos de política que aparentam ser diametralmente opostas para à questão negra, sendo na verdade complementares uma à outra.

Por um lado, essa política está representada na tentativa de estatização ou institucionalização da questão negra através do Ministério da Igualdade Racial e de uma ministra negra no Ministério dos Direitos Humanos. Ao mesmo tempo, vemos uma política que se materializa no aprofundamento da violência policial, especialmente na Bahia, São Paulo e Rio de Janeiro, mas também na aprovação da Lei Orgânica da Polícia Militar e Bombeiro Militar. Ambas têm de fundo um objetivo de conter as massas negras, seja pela expectativa passiva de que suas demandas sejam alcançadas pela via institucional, seja pelo controle social imposto através da violência de Estado. Em ambas, há uma tentativa de que o negro aliene sua capacidade de transformação seja abrindo mão da luta e depositando toda confiança em medidas institucionais, seja pela falta de uma resposta à altura ao ataque frontal à identidade negra com  altos níveis de violência policial.

A violência policial e a tentativa de estatização das demandas negras permitem um equilíbrio de poder que assegura que sejam essas mesmas massas negras as que mais sofram as consequências econômicas do racismo e do capitalismo com o trabalho precário, informal e as consequências da reforma trabalhista, da previdência, da terceirização, moradias precárias entre outras questões, etc. O Estado busca impedir as massas negras de responder contra o racismo e aos problemas econômicos, tarefa essa em que é auxiliada pelo papel que as burocracias cumprem ao separar a questão negra das demandas econômicas dos trabalhadores nos sindicatos. Por outro lado, vemos a  população rechaçando tanto os super-ricos quanto escalas de trabalho precário como a escala 6 por 1, ao mesmo tempo sem que isso tenha aberto espaço para a classe trabalhadora entrar em cena. Atualmente a ideia de que não há contradições fundamentais entre oprimidos e opressores, ou ainda a relativização da reinvindicação da identidade negra, isto é, as mil e uma formas que o Estado se utiliza para negar autodeclaração como as bancas de heteroidentificação, por exemplo,  confluem com a perspectiva de que o negro seria despojado de autoatividade. Nesse sentido, os elementos políticos inerentes à reivindicação da identidade e o potencial que essa tem na perspectiva de combate à ordem dominante se perdem. 

Essas ideias que apartam o negro de seu exercício de autoconsciência crítica e de enfrentamentos à classe dominante, se encaixam perfeitamente com os objetivos da Frente Ampla. A parditude é nada mais nada menos que mais um filho legítimo da tentativa de estatização da questão negra que reconhece a reivindicação de direitos à população negra através da “luta institucional” e do MIR, relegando ao negro antes a possibilidade de lutar contra o racismo, mas apenas falar de sua negritude ou o pardo da parditude. Quanto mais ao negro e ao indígena só tenha o discurso sobre sí mesmo como única forma de denunciar o racismo, mais o governo Lula e a Frente Ampla encontram um caminho para aprofundar ataques, fortalecendo setores reacionários como o agronegócio e aprofundando a relação entre racismo e trabalho precário.

E se apenas lhe resta o discurso, poucas armas estão à sua disposição para se enfrentar materialmente através da luta de classes contra o Estado e a violência policial, ou seja, a parditude como outras vertentes teóricas e políticas como a branquitude e o capitalismo negro, acabam por blindar o Estado de qualquer crítica. O potencial da identidade negra como força moral e parte da história de luta da classe trabalhadora e de todos os setores oprimidos é deixado de lado, aceitando a fragmentação e as divisões que a burguesia impõe, com auxílio das burocracias. 

Não é de se estranhar que Beatriz Bueno desenvolva o conceito de parditude frente a dois debates presentes na atualidade como as bancas de heteroidentificação e o colorismo, sem tocar no tema da autodeclaração. A autodeclaração vai muito além de um discurso sobre traços fenótipos, porque a afirmação da identidade negra tem um caráter cultural e político enfrentado contra o Estado que quer de todas as formas negá-la.

Nesse debate, ela se coloca contra contra o argumento sustentado por um setor colorista de que negros de pele clara não sofrem racismo e questiona os resultados das aferições feitas por tais bancas em vestibulares os quais negou o acesso a universidade federais e estaduais para estudantes negros nos últimos anos – que na visão da autora são pardos ou mestiços. Ao mesmo tempo, não menciona que as bancadas de heteroidentificação muito aquém de ser um eficaz remédio contra os fraudadores, na realidade vem barrando vários estudantes negros, lhes negando institucionalmente com o aval de várias reitorias, seu direito de autodeclaração.

Mas ainda que faça a crítica correta, se posiciona de forma ambígua, porque ao fazer isso não defende que essas pessoas são negras, ao contrário, desenvolve uma fórmula sociológica contraditória em si mesma que pessoas que sofrem racismo podem não ser negras ou indígenas. Ou seja, ao mesmo tempo em que responde a uma ala do movimento que defende o colorismo como forma de diferenciar negros de pele clara de negros retintos, afirmando que esses primeiros não sofrem racismo e ao defender que estes não sejam excluídos em bancas de heteroidentificação, se adapta tanto às bancas como ao próprio setor colorista ao afirmar que negros de pele clara não são negros, são pardos, mestiços, etc.

Em última análise, a proposta de Beatriz Bueno não resolve a contradição fundamental que envolve a afirmação da identidade no capitalismo brasileiro arraigado na ideologia da democracia racial que revela o sentimento de negros não retintos, de se sentirem como pessoas racializadas que sofrem racismo (expressos nos índices de desigualdade e violência policial) e ao mesmo tempo terem dificuldade de reivindicarem a identidade negra, justamente pelo enorme peso histórico do racismo em nosso país e de ideologias como a própria democracia racial.

4. O negro e o Estado

Beatriz Bueno tem uma preocupação legítima com as políticas públicas de acesso a direitos, como as cotas para ingressar na universidade, uma demanda importante que aumentou o número de negros nas universidade e que cada vez mais é atacada pela direita racista. Em sua resposta ao Silvio Almeida, especialmente, se contrapondo a afirmação feita por ele que a parditude seria uma “invenção individualista”, Beatriz Bueno compreende o papel do Estado em duplo sentido: perpetrador da ideologia do branqueamento e do racismo, ao mesmo tempo que integra o grupo negro às políticas de Estado para depois questionar se de fato terão acesso às políticas públicas.

“Em primeiro lugar, é preciso afirmar que: a parditude não é uma invenção individualista, tampouco uma tentativa de fragmentar o movimento negro. Trata-se de uma resposta crítica a um processo histórico e epistêmico de manipulação da massa multirracial no Brasil: um grupo ora instrumentalizado para o branqueamento da população e os interesses eugenistas, ora cooptado para fortalecer estatísticas e reivindicações baseadas na lógica da hipodescendência, para depois das agendas aprovadas, questionar se todos os pardos terão ou não direito a acessar as mesmas políticas e conquistas. Milhões de brasileiros classificados como “pardos” pelo IBGE vivem uma racialização ambígua, frequentemente deslegitimada — tanto no acesso a políticas públicas quanto no pertencimento a espaços coletivos de luta” 5 .

O papel do Estado nunca foi “cooptar” os negros para “fortalecer estatísticas e reivindicações” de grupos sociais racializados, tampouco o que está em jogo para o Estado é a manipulação da “massa multirracial” para que se reivindiquem negros ao invés de mestiços. O Estado tem a função de garantir as melhores condições para exploração do trabalho com a repressão e leis que possam regulamentar o direito à propriedade, não à toa desde que trabalhadores livres e escravizados conquistaram a Abolição da escravidão, foram relegados aos piores postos de trabalho, à pobreza e repressão policial enquanto o Estado estimulava a imigração.

As cotas e o direito de se autodeclarar negro que está expresso na formulação do Estatuto da Igualdade Racial foram resultado de anos de luta dos negros e negras. O que devemos questionar são justamente os mecanismos que o Estado junto às reitorias das universidades criam para restringir o acesso às políticas públicas como as bancas de heteroidentificação e o vestibular, um filtro social e racistas, que exclui o povo negro e pobre das universidades, enquanto os grandes monopólios da educação lucram com o ensino privado.

Na perspectiva da parditude, bastaria o Estado adotar medidas de inclusão social mais “justas” ou abandonar a perspectiva “monorracial” que todo o problema estaria resolvido. Mas ao contrário disso, o Estado burguês é o garantidor da exclusão dos negros a todos os direitos sociais e, nesse sentido, não só a garantia de direitos, mas também a reivindicação da própria identidade negra sempre existiu em contradição com o Estado, porque era vista como um elemento explosivo e disrruptivo da classe trabalhadora.

Se olharmos novamente para a história veremos que a identidade negra foi forjada no enfrentamento contra as formas de dominação, ou seja, é uma identidade enfrentada contra o Estado, tanto contra seus elementos de cooptação quanto de repressão. Talvez o caso mais emblemático dessa constatação histórica seja Zumbi e o Quilombo dos Palmares. A Coroa portuguesa a todo momento tentou “negociar” com Zumbi, oferecendo a ele e sua família a liberdade e aos palmarinos e palmarinas, a escravidão, acordo que previa essa troca para que Palmares se entregasse. Enquanto isso, fazia investidas militares contra o quilombo que resistiu durante mais de cem anos à repressão. Zumbi e o Quilombo dos Palmares nunca se curvaram à cooptação ou repressão, lutaram até a morte de forma irreconciliável contra a Coroa portuguesa em defesa da liberdade, sem aceitar nenhuma negociação com os senhores.

Analisando não só Palmares, mas também outras formas de organizações e luta dos escravizados, Clóvis Moura definiu bases importantes para refletir a relação entre identidade negra e luta de classes. Para ele é justamente no confronto com aqueles que lhe oprimiam que os negros escravizados impunham através da luta de classes a dinâmica da sociedade colonial e ao mesmo tempo  afirmavam a sua identidade e também a sua humanidade 6 . A elite escravocrata  utilizava-se do racismo como uma arma ideológica de dominação que visava justificar uma suposta inferioridade do negro, para garantir sua escravização e o tráfico de escravizados, buscando reduzir o escravizado a um objeto que não tem qualquer poder de decisão sobre sua vida. A ideologia racista vem associada à imposição pela violência e pela força do trabalho compulsório através do “controle social” através dos castigos físicos e todo tipo de tortura que visava manter o controle e o equilíbrio da dominação, o que passava por derrotar as inúmeras formas de insubordinação negra, das quais os quilombos são um símbolo incontestável. A identidade negra para Clóvis Moura, portanto, surgia desses enfrentamentos como uma negação da ideologia racista e trabalho escravo.

Lélia González, forneceu outros elementos para pensar a relação do negro e o Estado, observando que o exercício de autoconsciência política do negro era uma fundamental na luta contra o racismo, cunhou uma expressão que nenhum ativista ou militante antirracista pode fugir ao tomar para si a luta contra o racismo: não nascemos negros, nos tornamos negros. É uma conquista o tornar-se negro 7.  Para ela, o processo de autoconsciência ia desde os choques do inconsciente com a ideologia da democracia racial até expressões conscientes de luta antirracista em defesa da cultura negra e contra a exploração capitalista, em particular a condição de exploração e opressão da mulher negra trabalhadora. A identidade negra, para ela, foi forjada em combate contra o racismo e por isso era um processo de reconhecimento individual da negritude combinada com a luta coletiva.

A história dessa relação entre o negro e o combate ao racismo remontam tempos passados e não apenas é parte constitutiva da nossa identidade hoje, mas também são parte da vasta e longa tradição de luta dos trabalhadores. Na medida em que nos tornamos negros, reivindicamos cada luta, cada greve, cada africano e africana que deu sua vida na luta por liberdade, como parte de nossa própria história. Acredito que para termos uma visão gráfica dessas transformações que relacionam história, luta de classes e identidade negra, podemos voltar um pouco no tempo, e rememorar a revolução do Haiti (1804) e seus desdobramentos.

Em Recife, circulou no século XIX, pouco tempo antes da insurreição praieira, segundo as autoridades à época, um liberto de alcunha Divino Mestre. Ele carregava pra cima e pra baixo uma bíblia onde estavam grifadas as passagem sobre o fim da escravidão e um poema intitulado o ABC do Haiti, uma homenagem a revolução. 

Esse pequeno exemplo era parte de um medo geral dos proprietários de escravizados no Império do Brasil, chamado haitianismo, porque a revolução do Haiti havia colocado fim à escravidão. Segundo Susan Buck-Morss, a dialética senhor-escravo desenvolvida por Hegel teve como inspiração o processo revolucionário do Haiti 8 . A dialética senhor-escravo compreendia essa relação através da mediação do trabalho em relação ao próprio senhor 9 , isto é, os escravizados sabiam que o que movia a colônia de São Domingos era sua a força de trabalho explorada e por isso eram reprimidos pelos colonizadores franceses para que aquilo não se transformasse na luta pela liberdade. 

“No dia 22, uma tormenta tropical eclodiu, com relâmpagos e rajadas de vento e pesadas torrentes de chuva. Carregando tochas para iluminar o caminho, líderes da revolta se reuníram em uma clareira na floresta densa de Morne Rouge, uma montanha acima de Le Cap. Lá, Boukman deu as últimas instruções e,após, fazer uns encantamentos de vodu e beber o sangue de um porco imolado, estimulou seus seguidores com uma canção proferida em créole…” 10

Assim se iniciava revolta de escravizados em 1791 em São Domingos que só teria fim com a vitória final. A oração dentre várias coisas, impelia os revolucionários a ouvir a “voz da liberdade”, a mesma voz estimulava que os negros vingassem as “afrontas sofridas” pelos colonizadores. Os espíritos invocados no ritual vudu se transformavam numa força guerreira, os escravizados e escravizadas utilizavam os espaços de culto ao vudu para conspirar contra os senhores. Ali organizaram as fugas e os próximos passos da guerra, cientes de que os senhores acreditavam que era religião “inofensiva”. Toda sua cultura estava a serviço da liberdade total, os conhecimentos herbológicos eram utilizados para envenenamento e os geográficos para tornar uma guerra difícil para os colonizadores, tudo isso guiado pelo desejo de uma terra sem senhores. A identidade negra ganhava outros contornos até então desconhecidos, onde a cultura se transformava em uma arma de combate.

Os jacobinos negros davam uma outra cara para o sentido da luta pela liberdade daquele criado pelo jacobinismo francês, ao mesmo tempo que era influenciado por ele. Quando chegou a notícia da abolição da escravidão se abriu uma nova etapa no processo de revoltas iniciado em 1791. Quando todos sentiram o gosto da liberdade as diferenças entre os negros livres, de pele mais clara que eram pequenos proprietários de terra e os recém libertos, negros de pele escura, passaram a confluir. No decorrer da luta a garantia da liberdade só poderia ser plena se avançassem sobre a propriedade dos senhores e na medida que o programa final da revolução se via próximo, mais os colonizadores viam todos negros como um inimigo só, independente da tonalidade de cor. A garantia da abolição da escravidao só poderia ser conquistada pelos proprios negros e expulsando os franceses e todos os proprietários terra, tomando elas para si.

Esse grande exemplo tão inspirador ficou marcado na primeira Constituição do Haiti de 1805:

“Todas as distinções de cor necessariamente desaparecerão entre os filhos de uma e a mesma família, onde o Chefe de Estado é o pai; todos os cidadãos haitianos, de aqui em diante, serão conhecidos pela denominação genérica de negros”11

Ali se mostrou que as distinções raciais eram uma invenção da classe dominante racista e como ela não deveria existir mais para se garantir a tão sonhada liberdade, todas suas ideias e ideologias de divisão entre os negros deveria acabar. Aos negros deveria se estabelecer a unidade revolucionária que pôs fim a escravidão. Com ela se estabeleceu que não haveria mais diferenças raciais e de tonalidade de pele entre o povo haitiano revolucionário.

Em resumo, a defesa que fazemos da identidade negra corresponde a nossa luta histórica pela liberdade como uma tradição do movimento operário. Nossa identidade e  tudo que conquistamos até hoje não foi nos dados, mas arrancado com luta. Se hoje podemos construir conscientemente nossa identidade através da cultura, arte, cosmovisões africanas, etc, é porque em 1857 houve uma greve negra na Bahia, existiram os Malês, um Divino Mestre, Maria Felipa, Malunguinho, Luiza Mahim, etc, mas, especialmente, porque em cada negro e negra deste país vive de corpo e alma a memória de Palmares.

5. Democracia racial, um ponto de retorno 

Há poucos meses, Beatriz Bueno afirmou em sua réplica na Folha de São Paulo, “Parditude não se confunde com a obra de Gilberto Freyre”, ao historiador Roberto Pereira, que a formulação conceitual política de parditude se distancia da proposta de Freyre.

“O trabalho de Freyre foi uma leitura da formação racial brasileira marcada por um tom romantizado, idealizado e conciliatório, que suavizou as tensões do racismo sob a ótica de uma suposta harmonia entre as “três raças”. Há, portanto, um abismo epistemológico e político entre a Parditude e a narrativa freyriana: o que está em jogo não é apenas o objeto de análise — a mestiçagem —, mas com que finalidade política se constrói o discurso” 12 .

A perspectiva apontada por Beatriz Bueno, decerto, se distancia e muito da obra Casa Grande & Senzala, por denunciar o racismo. Mas, ao contrário de como a autora argumenta, nesse “abismo epistemológico” entre duas teorias com objetivos aparentemente distintos, seus efeitos políticos têm pontos de contato. 

A tese de Gilberto tinha o objetivo de negar a existência do racismo, se contrapondo às teorias eugenistas que tinham bastante força à época. Na medida que afirmava o brasileiro, isto é, o mestiço como expressão da fusão desigual do negro, português e o indígena conformado a identidade nacional sob a direção do português, havia uma opração de afastamento do passado escravista dos anos 1930 com o objetivo de apartar o negro de seu passado de luta.

Gilberto Freyre encara esse processo de fusão dando ênfase aos elementos culturais que ajudaram a supostamente conformar a identidade nacional. No prefácio à primeira edição da obra Casa Grande & Senzala, a memória que tem da Bahia expressa essa ideia:

“É justamente a melhor lembrança que conservo da Bahia: a da polidez e da sua cozinha. Duas expressões de civilização patriarcal que lá se sentem hoje como nenhuma parte. Foi na Bahia que nos deu alguns dos maiores estadistas e diplomatas do Império; e os pratos mais saboroso…” 13 .  

O ângulo em que Beatriz Bueno interpreta esse processo de fusão é totalmente distinto, para ela não se trata de compreender o desenvolvimento da identidade nacional tendo o português como um guia civilizacional do desenvolvimento do país. Não se tratava de reconhecer no “mestiço” hábitos do negro e do indígena, tampouco do português, mas sim dele ser a expressão real de que a identidade negra e indígena já não poderia ser mais facilmente vista em traços fenotípicos. Sua ênfase, portanto, dava ao “mestiço” o reconhecimento como tal, por conta de seus traços físicos, isto é, biologizante de raça

Essa visão inverte toda a lógica de reivindicação de identidade, porque Beatriz Bueno interpreta, assim como Freyre, que o mestiço é a representação de uma “nova identidade”, para ela racializada e atravessada pelo racismo, para ele culturalmente amalgamada e expressão da nação brasileira. Assim, qualquer reivindicação das identidades negra e indígena passariam a ser mera especulação, isto é, reivindicar-se como negro seria se contrapor-se a essa “nova identidade” que surgiu para Gilberto Freyre e para Beatriz Bueno em meio ao povo brasileiro.

Por isso, nesta réplica a Roberto Pereira, Beatriz Bueno afirmou categoricamente que o que estava em jogo para os ativistas e o movimento negro nos anos 1970, era a reinvindicação de “uma identidade monorracial” que “rejeitava identidades mestiças” 14 . Como havíamos dito, se reivindicar negro à época significava se enfrentar contra a repressão do regime militar, isto é, o que estava em jogo para população brasileira naquele momento não era negar o surgimento de uma “nova identidade”, mas sim de que a identidade negra era enfrentada contra o Estado.

Um olhar atento à história nos mostra que negar a identidade negra a esses setores era um objetivo estratégico da democracia racial que a burguesia brasileira sempre apoiou. Decerto, não se trata aqui de colocar um sinal de igual entre parditude e democracia racial, mas de ver que se assemelham quando definem o “mestiço” em contraposição ao negro.  O que parece ser um afastamento, nada mais é que um ponto de retorno, como se numa pista de atletismo dois atletas corressem em caminhos opostos, quanto mais se distanciam, mais se aproximam do mesmo objetivo. 

Os debates abertos nos anos 1930, ganharam um novo contorno. O conceito de parditude diferentemente do cunhado por Gilberto Freyre, não nega a existência da identidade negra, mas ao afirmar que existe uma identidade parda ou mestiça que surge em detrimento da identidade negra, opera bem próximo de Freyre, que enxerga a mesma relação entre a identidade nacional e as identidade negras e indígenas.

O conceito de parditude insiste em negar que a dificuldade de um negro em se enxergar como negro não é por conta de uma suposta “consciência mestiça”, mas sim, porque que os fatores sociais e psicológicos que fazem o negro negar sua identidade é resultado do próprio racismo. Essa identidade mestiça que nunca existiu, ora o indivíduo se enxerga como branco ora como negro, mas teve na tese de Gilberto Freyre seu advento e mostra caminhos de continuidade no conceito de parditude, apesar de seus “abismos epistemológicos”.

De todo modo, se trata de uma proposta “nova” em relação à tese da democracia que reforça a ideia de que de fato há tais “abismos”. A parditude simboliza um movimento tardio que organiza uma resposta ao racismo como a novas expressões de identidade que servem mais para qualificar as diferenças do que para unificar em torno de elementos comuns. Essa dinâmica de fragmentação própria das teorias surgidas no neoliberalismo tem seus correlatos estratégicos.

A hegemonia burguesa sempre se utilizou das diferenças para dominar, a velha fórmula “dividir para dominar” não apenas foi um grande guia da luta de classes contra os povos oprimidos no mundo inteiro, mas no Brasil, particularmente, teve capítulos bastante sangrentos como forma de dominação do território indígena. Mas a burguesia brasileira ao mesmo tempo em que encontrava inúmeras maneiras para apartar os povos oprimidos de uma de suas maiores fortalezas que é se organizar e lutar em unidade. Ao mesmo tempo em que dividia suas formas de reconhecimento, não pensava duas vezes oprimir e explorar a classe trabalhadora de forma “unificada”. Decerto, um conceito que alude a possibilidade da divisão entre os negros e não sua unidade, não pode senão, por mais que defenda as melhores de suas intenções antirracistas, corroborar à hegemonia da classe dominante e não a unidade dos povos oprimidos.

6. O Quarto de Despejo

O conceito de parditue enquanto proposta política antirracista pretende ser uma “comunidade de acolhimento”, ou seja, um “espaço terapêutico” onde a “identidade racial mestiça” seja validada entre seus iguais, longe de qualquer exclusão que possa sofrer em espaços políticos dos negros ou do racismo de pessoas brancas.

“Além disso, Parditude é uma comunidade de acolhimento para pessoas mestiças, que frequentemente se veem excluídas tanto pelos brancos quanto pelos espaços afirmativos negros. Muitas dessas pessoas não se sentem plenamente parte de nenhum dos grupos. Nosso objetivo é criar um espaço seguro e terapêutico, onde possam se sentir validadas e amadas, porque, como afirmam estudiosos e terapeutas, quando indivíduos com dores semelhantes se encontram e se reconhecem, isso pode ser um processo de cura. E é isso que falta: um lugar seguro para aqueles que, mesmo enfrentando o racismo, se sentem isolados ou abandonados, simplesmente porque sua aparência mestiça não se encaixa nos modelos raciais convencionais” 15 .

Decerto, batalhamos para que cada negro ou negra de pele clara afirme sua identidade com unhas e dentes em qualquer espaço de luta coletiva, combatendo fortemente o racismo e qualquer tipo de opressão. Nos inspirando nos diversos exemplos dos militantes do final dos anos 1970 que lutavam contra a ditadura e que definiram como negros, todos aqueles que tinham traços negroides, independente da tonalidade da cor de sua pele.

Aqueles militantes acompanhavam um “sentimento de época” naquele período, onde havia um questionamento de massas à democracia racial, algo nunca antes visto na história do país. Isso se expressava na reivindicação da identidade negra por amplos setores de trabalhadores e jovens nos bailes blacks que reuniram milhões de pessoas pelo Brasil inteiro, mas iam além com uma intensa atividade cultural da capoeira, afoxés, movimento negro, etc.

Nossa batalha combina a defesa da autodeclaração com a unidade de negros de pele clara e retinta e de todos os setores oprimidos, lutando para que se unifiquem também negros e indígenas, homens e mulheres, pretos e brancos, trabalhadores nativos e imigrantes, com o objetivo de golpear a classe dominante que nos explora e oprime. Abandonar esse objetivo estratégico, significa na prática abandonar as possibilidades de acabar de uma vez por todas com todo sofrimento cotidiano causado pelo racismo presente na violência policial, no adoecimento psicológico, na superexploração, etc.

Beatriz Bueno não apenas se opõe a essa tradição, como também formula uma proposta que está bem aquém de preparar negros de pele clara e retintos para a luta cotidiana contra o racismo. A criação de “espaços terapêuticos” para que possamos nos sentir bem entre iguais não consegue agarrar o problema em sua raiz. Na realidade já foi amplamente comprovado que a realidade do setor que o Estado se refere como pretos e pardos é a mesma, ou seja, ambos estão suscetíveis aos mesmos problemas sociais, raciais e econômicos, evidenciando que essa divisão entre pretos e pardos não corresponde à complexa realidade social brasileira.

Tal realidade tem na formulação de Maria Carolina de Jesus na obra O Quarto de despejo uma ilustração sem paralelo. Carolina de Jesus para tratar da própria realidade e a de milhões de negros e negras trabalhadoras nas periferias e favelas brasileiras atravessadas pela fome e o trabalho precário, afirma que o problema deste setor é que são um objeto em desuso do quarto de despejo, isto é, um objeto com pouca serventia e prestes a serem jogados fora (16).

A analogia que podemos fazer com aquela realidade dos anos 1950 retratado no Quarto de Despejo e a de hoje, levando em consideração essa definição de Maria Carolina de Jesus é que hoje o objeto em desuso tem uma outra cara que é marcada pelos ataques à classe trabalhadora mais recentes como a terceirização irrestrita, a escala 6×1, reforma trabalhista, a violência policial, etc. Qualquer proposta antirracista que não coloque como eixo a revogação das reformas, o fim da escala 6×1 com redução da jornada para 30 horas semanais sem redução do salário ou ainda o fim das operações policiais, tribunais militares e o fim de todas as polícias, não pode superar a condição que o capitalismo brasileiro tenta impor às massas negras, não pode senão ser mais uma teoria que pretende reformar esse sistema racista e decrépito que é o capitalismo.

Além disso, o cenário internacional convulsivo atravessado por guerras, uma extrema direita racista e lgbtfóbica, o genocídio em Gaza, o armamento da Europa, guerras tarifárias e ingerência do imperialismo norte-americano no Oriente Médio e no Brasil, também lança desafios importantes para os setores anti-racistas em nosso país e no mundo inteiro. São eles que irão levantar a bandeira por um Palestina livre, operária e socialista e o fim do apartheid racista do Estado de Israel, pelo fim da política reacionária do Trump contra as lgbts e imigrantes, contra toda ingerência imperialista no Brasil e contra o armamento das potência europerias que só pode levar a mais guerras.

Conclusão

O conceito de parditude comporta uma contradição em si mesma, porque mais se aproxima da democracia racial do que a supera. Beatriz Bueno insiste em negar que a dificuldade de ver que o fato de se enxergar como negro não é por conta de uma suposta “consciência mestiça”, mas sim, porque que os fatores sociais e psicológicos que fazem o negro negar sua identidade é resultado do próprio racismo. O termo pardo, mulato ou qualquer outro criado ao longo da história, foram utilizados pelo Estado para tentar esconder as contradições raciais e econômicas do Brasil, reificando-as a tal ponto que o negro não pudesse lutar contra o racismo. De um outro ponto de vista, vemos também que a matriz foucaultiana de incorporar o discurso como uma forma de luta contra o Estado, não passa de estabelecer uma forma de abandonar toda a luta do mundo real, tampouco a criação de uma nova identidade que funciona para quebrantar a unidade dos negros, só pode estar a serviço de preparar mais derrotas.

A contradição do conceito de parditude, consiste exatamente nisso, colocar um sinal positivo frente à miscigenação, ignorando seu conteúdo histórico ao restringir à identidade a fatores biológicos. O caráter histórico da contradição do racismo, não apenas indica que há outras determinações que conformam nossa identidade, mas, sobretudo, que não há espaço para políticas antirracistas que se proponham a reformar o capitalismo como se fosse possível viver num sistema de exploração mais ameno. Nessa perspectiva, ignora-se algo fundamental: o racismo surgiu com o capitalismo e junto a ele deve perecer. A tarefa da nossa geração é recuperar o que tem de mais radical da luta dos negros no Brasil e no mundo, uma teoria da ação e transformação social capaz de fazer conectar novamente, assim como foram em vários processos históricos, os elos que atam a Revolução e o Negro.

Notas

1. Beatriz Bueno. “Parditude, mestiçagem e identidade no Brasil: uma Crítica à Rigidez Binária e a suas Implicações para a população parda”, 2023.

2. Beatriz Bueno. “A parditude não se confunde com Gilberto Freyre”, 2025.

3. Beatriz Bueno. “A parditude não se confunde com Gilberto Freyre”. Op. cit.

4. Oracy Nogueira. “Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem: sugestão de um quadro de referência para interpretação do material sobre relações raciais no Brasil”. Revista Tempo Social da USP, v. 19, n. 1, nov 2006.

5. Beatriz Bueno. “Ao professor Silvio Almeida sobre Parditude”, 2025.

6. Clóvis Moura. “Brasil: as raízes do protesto negro”, [1983] 2023, p. 58.

7. Lélia Gonzalez. “A cidadania e a questão ética”. In.: “Por um feminismo afro-latino-americano”, 2020, p. 234.

8. Susan Buck-Morss. “Hegel y Haiti”, 2017.

9. Georg Hegel. “A fenomenologia do espírito”, [1807] 1992.

10. C.L.R. James. “Os jacobinos negros”, [1938], 2010, pp. 92-93.

11. Constitucíon Imperial de Haití. Biblioteca Ayacucho, 1805.

12. Beatriz Bueno. “A parditude não se confunde…” Op. cit.

13. Gilberto Freyre. “Casa Grande & Senzala”, [1933] 2006, p. 30.

14. Beatriz Bueno. “A parditude não se confunde…” Op. cit.

15. Beatriz Bueno. “Quem é Beatriz Bueno”. In.: https://parditude.com/quem-e-beatriz-bueno/

16. Maria Carolina de Jesus. “Quarto de Despejo; diário de uma favelada”, [1960] 2015.

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