Revista Casa Marx

Debate. Os dilemas da LIT-QI em sua autocrítica a Nahuel Moreno e a atualidade da revolução permanente

Danilo Paris

Iuri Tonelo

Confira o artigo em debate com a obra teórica de Nahuel Moreno, que foi tema de reflexão critica pelo PSTU e LIT em artigo recente, e que no presente artigo o abordamos criticamente. Nesse sentido, apresentamos reflexões sobre os caminhos necessários para uma crítica que tente ir na raiz dos problemas dessa tradição, assim como mostrar as consequências politicas dessas concepções teóricas.

Recentemente, tomamos conhecimento do texto intitulado Sobre las situaciones de la lucha de clases en nivel nacional e internacional, 1 , publicado somente em espanhol e com pouco destaque, mesmo estando inserido na seção teórica da Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT). Por não apresentar assinatura, compreendemos que se trata de uma formulação coletiva de sua direção internacional, elaborada no contexto de debates internos, uma vez que o próprio documento faz referências a outros textos produzidos no mesmo âmbito.

Esse texto demanda uma análise mais aprofundada, uma vez que a LIT propõe um exercício de autocrítica referente à aspectos relevantes e históricos de sua tradição teórica, vinculada especialmente às elaborações de Nahuel Moreno. A nosso ver, essa tentativa de reelaboração se relaciona com elementos que já haviam sido apontados pela Fração Trotskista (FT) desde os primeiros anos da década de 1990, período de conformação de nossa corrente a partir da ruptura com aspectos teóricos chamados por Nahuel Moreno de “correções” 2  em relação à teoria da revolução permanente 3 .

Destacamos a seguir alguns pontos centrais dessa tentativa de repensar a teoria e a própria tradição no texto da LIT. A tônica geral do artigo, inclusive em sua conclusão, é marcada pela ênfase na necessidade de evitar um apego formal das categorias teóricas, defendendo uma perspectiva de análise das transformações concretas da realidade como critério. Seguindo a partir disso, podemos elencar alguns aspectos:

  • 1. O primeiro ponto está relacionado com a própria categoria de revolução. A LIT propõe uma reflexão sobre a diferenciação esquemática que historicamente se estabeleceu entre “revolução de fevereiro” e “revolução de outubro”, distinção que se encontra na base de suas reflexões sobre a revolução democrática, expressas nas formulações sobre os “fevereiros triunfantes” ou as chamadas “revoluções inconscientes”. O texto busca fazer uma revisão crítica desses conceitos, justificando que eles teriam contribuído para interpretações equivocadas acerca de processos revolucionários contemporâneos.
  • 2. Em segundo lugar, os autores revisitam criticamente a utilização da categoria “etapa”, anteriormente aplicada para delimitar grandes períodos históricos em escala internacional. Ao definir o final da década de 1980 como uma “etapa revolucionária internacional”, período iniciado a partir de 1943, a LIT interpretou que eventos como a queda do Muro de Berlim e a restauração capitalista na URSS, ao derrubar velhos aparatos do stalinismo, terminavam consequentemente em resultados progressistas ou revolucionários. No entanto, ao ocorrerem esses processos no contexto do neoliberalismo, e após importantes derrotas do período anterior, esses acontecimentos puderam ser hegemonizados pelo capital e o imperialismo e ganharam um sentido de restauração burguesa, abrindo caminho para uma das mais agressivas ofensivas reacionárias do capitalismo global: o neoliberalismo. Diante dessa constatação, a LIT reconsidera nesse texto tanto a caracterização do período quanto os fundamentos teóricos que embasavam sua avaliação, incluindo a própria categoria de “etapa”, revalorizando os conceitos clássicos do marxismo de “situação” e “conjuntura” como instrumentos mais adequados para a análise do desenvolvimento histórico concreto.
  • 3. Por fim, no plano nacional, o texto revisita uma das formulações fundantes do PSTU, erro que guarda relação com a interpretação do neoliberalismo enquanto parte de uma etapa revolucionária. Estamos nos referindo à transição democrática no Brasil. Ao invés de uma ruptura impulsionada pelo ascenso operário contra a ditadura, o que de fato ocorreu em 1984 foi uma transição negociada com frações da burguesia, ou seja, uma saída pactuada “por cima” que incluiu a promulgação da Lei da Anistia e a preservação do aparato repressivo do regime militar. E ao contrário dessa avaliação, de maneira chamativa, Nahuel Moreno chegou a qualificar esse processo como “revolução”, chegando inclusive a advertir, em cartas dirigidas à militância da Alicerce, que esses militantes não estariam compreendendo que o país atravessava uma revolução 4 . No texto em questão, pela primeira vez, dizem que Moreno se equivocou em falar em revolução e mais ainda em “revolução vitoriosa”5 .

Ainda que de forma tardia, o reconhecimento de equívocos representa um passo relevante, e todo esforço de autocrítica merece consideração. Contudo, para que tais reelaborações se traduzam em transformações efetivas, é fundamental que se vá além da admissão abstrata dos erros, identificando os problemas que persistem na LIT em relação a questões centrais da política internacional. Nesse sentido, permanece inalterada sua orientação em conflitos decisivos, como a Guerra da Ucrânia, sua linha histórica no Oriente Médio desde os levantes da chamada Primavera Árabe, bem como sua compreensão de processos diretamente atravessados pela intervenção imperialista, como foi o caso do golpe institucional ocorrido no Brasil em 2016. Este último, em particular, constitui um marco traumático e notadamente pouco tematizado pela direção do PSTU. A ausência de uma reavaliação crítica desse momento, inserido em um contexto de profundo reacionarismo que culminou na eleição de Jair Bolsonaro à presidência, é uma lacuna importante da atual reflexão.

Diante desse quadro, propomos uma análise centrada em dois elementos fundamentais ainda reivindicados pela LIT a partir do legado teórico de Nahuel Moreno, os quais consideramos estruturantes de equívocos que ainda se mantêm.

1. O primeiro refere-se à unilateralização da defesa da consigna “República democrática” como eixo programático e político frente a regimes ditatoriais, levando a organização a interpretar como vitórias a queda de governos ou mobilizações de quaisquer tipos, independente do setor que a impulsiona, da intervenção burguesa e imperialista e dos resultados que alcançam estrategicamente. Essa formulação decorre de uma leitura equivocada realizada por Moreno da obra de Trótski, leitura que a LIT não apenas mantém, como aprofunda. Essa concepção tem conduzido à incorreta caracterização de “revoluções democráticas” mesmo em contextos de regimes burgueses.

2. Um segundo elemento, intimamente articulado ao anterior, diz respeito à formulação teórica sustentada pela LIT com base na ideia de que vivemos uma “etapa revolucionária” histórica, na qual as mobilizações populares tenderiam, de forma quase inevitável, a seguir o curso da luta de classes em direção progressiva, como se tudo fosse “a favor da maré”. Essa premissa resultou, ao longo do tempo, na sistemática subvalorização das intervenções da burguesia e, principalmente, do imperialismo nos processos políticos concretos. Esse problema se expressa de maneira clara em casos como o dos levantes no mundo árabe ou, mais proximamente, nas mobilizações ocorridas no Brasil contra o governo Dilma Rousseff. Nesses episódios, a LIT não desenvolveu o necessário esforço estratégico de análise concreta das relações de classe em movimento, restringindo-se, em geral, à observação da ação das massas subalternas e negligenciando o papel ativo e decisivo da burguesia e do imperialismo na condução e inflexão dos processos. Esse problema teórico remonta a uma concepção formulada por Nahuel Moreno, que chegou a qualificar como uma “lei” a ideia de que o imperialismo atuaria como um “bombeiro louco”, cujas tentativas de conter a maré revolucionária terminariam por alimentá-la involuntariamente, “apagar o fogo com gasolina” 6 . Essa leitura, evidentemente equivocada, impôs um alto custo político e estratégico à LIT, pois frequentemente levou a posicionamentos que, ainda que movidos por intenções distintas, acabaram por se assemelhar, em sua resultante prática, às posturas de setores abertamente reacionários. Isso foi particularmente notável no caso do golpe institucional de 2016 no Brasil, em que a ausência de uma caracterização rigorosa dos agentes políticos e das forças de classe envolvidas comprometeu a intervenção da LIT e do PSTU diante de um dos episódios mais decisivos da história nacional recente.

Apresentamos, assim, este breve estudo dedicado aos dois pontos destacados, com o objetivo de contribuir para a reflexão crítica a respeito da permanência de problemas centrais da teoria da revolução, tal como formulada por Nahuel Moreno, nas atuais concepções da LIT. A isso agregamos que a própria evolução da LIT tem sido parte de formular posições teórico-políticas ainda mais equivocadas daquelas que Moreno formulou. Em nossa avaliação, enquanto essa corrente não realizar um balanço profundo e consequente desses aspectos, seguirá trilhando uma trajetória marcada pelo impasse teórico e estratégico, um verdadeiro beco sem saída, caracterizado por sucessivas crises.

Sobre a concepção de queda de regimes ditatoriais por fora dos sujeitos históricos e suas direções

No interior da reflexão apresentada pelo texto da LIT, apesar de enfatizarem a expressão autocrítica e reverem aspectos teóricos como mencionamos, um aspecto importante da elaboração teórica morenista, baseada na “correção” de Trótski, se manteve intacto: os eixos da revolução quando se enfrentam regimes fascistas, ditatoriais ou bonapartistas, que são pensados de forma unilateral em termos de “derrubada de governos ou queda de regimes”, independente dos sujeitos que intervém ou desviam esses processos, bem como seus resultados estratégicos. A passagem do texto da LIT é elaborada da seguinte forma, referindo-se às contribuições de Moreno:

“[…] a caracterização das revoluções que se chocam com ditaduras como parte da revolução permanente e seu consequente eixo programático contra as ditaduras. Essa elaboração permanece extremamente válida, como demonstrado nas revoluções do Norte da África e do Oriente Médio. Não é necessário chamá-las de “revoluções de fevereiro” para continuar usando essa base teórica e programática.”

Evidentemente, o problema não é a inclusão do eixo programático “abaixo a ditadura”. Como parte de um processo real, as massas incluem isso nas suas reivindicações, como parte de seu questionamento ao estado das coisas. O que queremos sublinhar está em considerar um triunfo de uma “revolução democrática” a queda de ditaduras em si mesmo, independente do sujeito histórico e a forma como cai essa ditadura, mesmo que seja substituída por um regime burguês de contenção e desvio das massas, em alguns casos por intervenções imperialistas que conformam regimes tão ou mais repressivos (como vimos no caso do Egito durante a primavera árabe e vamos analisar adiante). Tampouco isso é desvalorizar os processos revolucionários e sua grandeza, mas antes não desvincular eles dos seus resultados.

Embora a direção da LIT critique a categoria “revolução de fevereiro”, em uma alusão ao fevereiro russo de 1917 – o que poderia dar a ideia de uma etapa da revolução democrática que derrubaria regimes ditatoriais –, continuam afirmando que é correto manter essa base teórica e programática em algumas circunstâncias, sendo algo da teoria que ainda parece válido e se demonstraria no mundo árabe. O problema é que terminam por unilateralizar essa tese, criando uma separação entre o programa democrático e o democrático-estrutural e socialista. É, portanto, precisamente nessa base que se verifica o amálgama entre uma autocrítica parcial e a manutenção de aspectos da teoria do dirigente revolucionário argentino.

Vamos voltar à teoria de Nahuel Moreno para compreender o que querem manter. Em As revoluções do século XX, Nahuel Moreno constrói seu argumento em torno de um “grave problema teórico” que teria cometido Leon Trótski. Sua argumentação é de que o fundador da quarta internacional, em sua elaboração teórica contra o stalinismo, desenvolveu a compreensão de que, na URSS, ao ter sido realizada a revolução social anteriormente, a nova revolução que deveria ocorrer era das massas contra o aparato de Estado stalinista, reconquistando a democracia operária a partir dos sovietes, portanto, como definiu Trótski, uma revolução política.

Esse processo é definido, portanto, como uma mudança de regime, e não de relações de produção e aspectos sociais, quanto ao caráter do país e Estado. Embora a maneira como Moreno reconstrói a visão de Trótski sobre a revolução política seja um tanto esquemática, até aqui está correto chamar a atenção para esse programa nos Estados operários. No entanto, em um momento de chamativa confusão teórica, aplica mecanicamente o mesmo raciocínio para um estado burguês sob regime fascista e conclui que existe uma lacuna teórica no pensamento de Trótski, dizendo que:

“O que Trótski não colocou, apesar de ter feito um paralelo entre o stalinismo e o fascismo, foi que também nos países capitalistas era necessário fazer uma revolução no regime político: destruir o fascismo para reconquistar as liberdades democráticas da democracia burguesa, mesmo que fosse no terreno dos regimes políticos da burguesia, ou seja, do Estado burguês. Concretamente, não colocou que era necessária uma revolução democrática que liquidasse com o regime totalitário fascista como parte ou primeiro passo do processo rumo à revolução socialista e deixou pendente esse grave problema teórico. 7

Para compreendermos claramente, o que Moreno chama de erro grave é que, diante de governos fascistas (aplicado também a bonapartismo e ditaduras), o “primeiro passo” deveria ser colocar o eixo político e programático em “reconquistar as liberdades democráticas da democracia burguesa”, sem mediações para dizer que “mesmo que seja no terreno dos regimes da burguesia”. E o ponto central é a conexão entre “colocar eixo” e o terreno no qual dizem ser possível atuar.

Aqui reside uma das raízes do que, caso desenvolvido como concepção teórica, pode desembocar em uma lógica de separar por etapas as “revoluções no regime” (ou até revoluções no governo), sobretudo diante de regimes caracterizados como “contrarrevolucionários”. Nahuel Moreno, em um curso de 1984, refletiu sobre esse tema do seguinte modo:

“Aqui há um problema político grave, enorme, que mencionei de passagem – se tivermos tempo, faremos um grande livro. Poderia parecer que o fato da contrarrevolução capitalista recolocou a necessidade de que haja uma revolução democrática. E ignorar que o que se propõe nos países avançados, onde há regimes contrarrevolucionários, também é uma revolução democrática, é maximalismo. É tão grave quanto ignorar a revolução democrático-burguesa nos países atrasados. Isso é muito importante. Não sei se está correto ou não. Se estiver correto, é preciso mudar toda a formulação das Teses da Revolução Permanente. Tenho a impressão de que está correto e que Trotsky apontava para isso. 8

E complementa essa visão com a seguinte consequência que poderia se ter ao abordar a possibilidade da revolução democrática nos países de capitalismo avançado:

“Se isso estiver correto, muda toda a nossa estratégia em relação aos partidos oportunistas e, em grande medida, em relação aos partidos burgueses que se opõem ao regime contrarrevolucionário. Como um passo em direção à revolução socialista, somos a favor de que venha um regime burguês totalmente diferente do regime contrarrevolucionário. Assim como éramos a favor da revolução democrático-burguesa e dizíamos que ela era diferente da outra – a revolução socialista –, que era preciso fazê-la, que era preciso derrubar o czar, que era uma tarefa democrático-burguesa específica, é preciso discutir se agora também não há uma tarefa democrático-burguesa específica, que é derrubar o regime contrarrevolucionário para que venha, mesmo que seja, um regime burguês.9

Levando em conta, para ser rigoroso com o texto em questão, que se trata de um curso, com intervenções orais, não se pode ignorar que Moreno sustenta claramente nessa passagem a possibilidade de uma mudança de regime no interior do capitalismo. Esse é o processo que ele qualifica como revolução democrática, considerando que isso implicaria em “mudar toda a formulação das Teses da Revolução Permanente”.

E por que Moreno aponta, de forma clara, nesse sentido de modificar as teses centrais da teoria da revolução permanente? Pois é conhecido o fato de que, na Revolução Russa, a linha teórica de Leon Trótski sobre a revolução não separava, diante de uma ditadura tzarista repressiva, as etapas da revolução democrático-burguesa das tarefas socialistas e do sujeito social dessas tarefas, o proletariado, conforme diz nas Teses da revolução permanente: “No decurso de seu desenvolvimento, a revolução democrática transforma-se diretamente em revolução socialista e torna-se assim uma revolução permanente” 10 . Com esse ponto, Lênin coincidiu na prática da própria revolução, perspectiva expressas em suas Teses de Abril. Quando se deu a derrubada do tzarismo, Lênin não buscou o regime de liberdades democráticas, mas apontou claramente para o conteúdo do que viria a ser Outubro, sem deixar o poder esvair para as mãos da burguesia via governo provisório.

O que queremos argumentar, do ponto de vista da revolução permanente, é que o enfrentamento a regimes ditatoriais, fascistas, ou monárquicos, como foi o tzarismo, não pode deixar de conectar os aspectos democráticos de luta (a derrubada desses regimes) com os aspectos democrático-estruturais (como foi a questão da terra aos camponeses na Revolução Russa), o que não pode ser realizado sem a hegemonia do proletariado. Afinal, como bem aponta Trótski, não foi a revolução de fevereiro que resolveu o aspecto democrático de dar terra aos camponeses, mas a Revolução de Outubro. Ou, no caso da luta contra o nazismo, não se poderia desconectar a luta contra o regime fascista de tarefas socialistas que se colocavam.

A articulação estratégica do combate às ditaduras: o caso do Brasil em 1984 e da Espanha

Se em Escola de Quadros Nahuel Moreno aventa como possibilidade dessa teorização sobre a “revolução democrática”, em seu livro As revoluções do século XX, o dirigente argentino formula a questão em algumas passagens, ligando o tema teórico com os processos históricos, entre as quais se destaca a que diz:

“Para terminar de esboçar este ponto, vejamos o programa dos nossos partidos. No Brasil (até abril de 1984) e na Espanha, o eixo político fundamental continua sendo a luta contra o bonapartismo. Todos os programas revolucionários devem ter como palavras de ordem central: “Abaixo o rei (ou o presidente militar)”, “Pela República democrática”, “Pelo direito do povo eleger seu governo!”.”

Uma das bases fundamentais que Moreno utiliza para argumentar que é em torno dos eixos que se deve assumir a luta é o caso brasileiro. O equívoco dessa separação (entre as demandas democráticas, deixando as democrático-estruturais e socialistas para o futuro) se torna claro quando analisamos um processo concreto da luta contra a ditadura, durante o processo das Diretas Já.

Nesse caso, existem erros de caracterização, políticos e teóricos. O primeiro, se refere a como Moreno caracteriza as manifestações das Diretas Já em 1984: “A partir da grande manifestação no Rio, houve uma crise revolucionária no Brasil. Naquele dia, para usar a famosa frase de Trótski referindo-se à greve geral com ocupações de fábricas na França, ‘começou a revolução brasileira’”. A caracterização é que a transição pactuada de 1984 era o “começo da revolução brasileira” (!). Essa caracterização é funcional à política de considerar que a transição pactuada, incluindo a Lei de Anistia, palanques com burgueses tradicionais do regime político e o resultado que virá de Sarney no governo é “um enorme triunfo das massas” contra o governo.

Para ficar apenas entre um dos intérpretes mais importantes desse período, chama atenção o contraste das caracterizações de Moreno, daquelas feitas por Florestan Fernandes. Considerando que o sociólogo brasileiro foi um deputado constituinte eleito pelo PT, mesmo assim não deixou de ser mais crítico do que a tradição morenista da transição pactuada. No polo oposto de Moreno, Florestan via que nesse momento:

“[…] os empresários e suas entidades corporativas agiram coletivamente: 1) para impedir uma passagem abrupta da ditadura militar para um governo democrático; 2) para que se convocasse não uma Assembleia Nacional Constituinte exclusiva*, livre e soberana. Preferiram o penoso “acordo conservador” (…); a “transição lenta, gradual e segura” se viu elevada à categoria de princípio intocável, protegido pelo poder do fuzil; e se instituiu um Congresso Constituinte organicamente preso à referida forma de “transição democrática” e ao seu Estado de segurança nacional disfarçado. 11

Pois bem, pelo que entendemos, a LIT depois de quarenta anos está disposta a repensar esse erro grave de Moreno ao analisar a situação brasileira. E por que manter o fundamento teórico, que inclusive utiliza o Brasil de 1984 na passagem citada, de que estava ocorrendo uma “revolução” no Brasil, momento no qual é necessário ter como eixo programático (e político) “pela república democrática”, “pelo direito do povo eleger seu governo”, independente dos atores que estão intervindo? Não se pode pensar as “consignas centrais” isoladas dos sujeitos e a articulação estratégica sem levar em conta que, depois do desvio da Revolução dos Cravos e a partir dos Pactos de Moncloa no Estado Espanhol e do governo de Jimmy Carter nos EUA, as transições democráticas foram utilizadas pelo imperialismo para evitar e desviar ascensos de massas e avançar com a ofensiva neoliberal ao final das ditaduras latino americanas.

Por que, ao contrário disso, os autores do texto não analisam as bases teóricas dos erros de Moreno, evidenciando que tais equívocos estão vinculados a determinadas reflexões estratégicas – como aquelas desenvolvidas na Escola de Quadros – que podem conduzir à formulação de uma teoria da revolução democrática? A conclusão necessária é que essa perspectiva tende a levar à subestimação dos mecanismos do regime político na realização de uma transição que preservou os aparatos repressivos herdados da ditadura: nenhum militar foi julgado por seus crimes, e o país mantém uma das polícias mais letais contra trabalhadores, pobres e negros.

A conclusão de que não havia revolução deve vir acompanhada da crítica à política burguesa da transição e, portanto, da teoria de que o eixo deve ser unilateralmente democrático burguês, uma ruptura histórica da corrente com a teoria da revolução permanente.

A mesma citação de Moreno traz outro exemplo histórico, que é o da Espanha. Aqui reside novamente a forma como os companheiros extraem apenas conclusões formais sobre a teoria de Trótski e não sua articulação estratégica, e vale voltar ao próprio Trótski da década de 1930 para extrair as principais lições do processo.

No seu famoso texto de 1931, A Revolução Espanhola e as tarefas dos comunistas, o dirigente revolucionário analisa o processo da revolução espanhola no início da década de 1930, marcado por forte instabilidade política e social, agravada pela crise econômica internacional de 1929. Nesse contexto, cai o regime ditatorial de Miguel Primo de Rivera (1923–1930); seu sucessor, o general Dámaso Berenguer, é incapaz de estabilizar o país e acaba sendo substituído. Após a vitória republicana nas eleições municipais de abril de 1931, o rei Afonso XIII abandona o país e é proclamada a Segunda República Espanhola. Nesse contexto, pouco antes da proclamação da República e diante da situação revolucionária, – ao mesmo tempo sem um partido revolucionário –, o arsenal estratégico de Trótski o leva a refletir sobre como, a partir de impulsionar as palavras de ordem democráticas, incluindo a da “República”, articulá-las com outros elementos programáticos, pensando sempre o proletariado (como sujeito hegemônico) e o campesinato como classes revolucionárias a frente dessas demandas.

A articulação concreta então, em diálogo com “defender a República”, é que se convoquem cortes constituintes (revolucionárias), que seriam instituições burguesas (parlamentares) nas quais as classes revolucionárias poderiam articular um programa. O que Trótski defende é que não se deve opor a palavra de ordem “ditadura do proletariado” às demandas democrático-estruturais, que têm força vital no contexto, entre as quais ele menciona a república, a revolução agrária, a separação da igreja do Estado, confisco dos bens eclesiásticos, livre determinação nacional, cortes constituintes revolucionárias. Além disso, Trótski coloca a consigna do armamento dos operários e camponeses (criação de milícias operárias), um programa radical de legislação social (para os desempregados), impostos progressivos e educação gratuita. E junto a todas essas demandas, expressando a lógica da revolução permanente, ele conclui:

“Ao mesmo tempo, é preciso, desde já, apresentar as reivindicações de caráter transitório: a nacionalização das estradas de ferro que, na Espanha, são todas propriedades privadas; nacionalização das riquezas subterrâneas; nacionalização dos bancos; controle operário da indústria; finalmente, regulamentação da economia pelo Estado. Todas as reivindicações inerentes à passagem do regime burguês ao regime proletário, preparam essa transição para, depois da nacionalização dos bancos e da indústria, se dissolverem no sistema de medidas da economia organizada que prepara a sociedade socialista. Só os pedantes podem ver uma contradição na combinação de consignas democráticas com as outras transitórias ou puramente socialistas. 12 [Grifo nosso]”

Portanto, é falso que na teoria da revolução permanente, no caso da Espanha, Trótski propõe como eixo unilateral a “República democrática” como forma de criar um regime burguês intermediário a partir da derrubada de um regime ditatorial e monárquico 13 . Essa é a base teórica da revisão de Moreno que irá se chocar contra a Teoria da Revolução Permanente, um erro teórico decisivo para entender os problemas estratégicos gerados na análise da LIT sobre a Primavera Árabe. Vale ainda mencionar que, embora não vamos abordar com centralidade esse tema, existe ainda um problema especificamente programático de fundo nesse ponto, que é a ideia de que, diante de uma etapa revolucionária, bastaria agitar “uma, duas ou três consignas essenciais para o movimento de massas” 14 , podendo ser meramente democráticas ou mínimas, que a história teleologicamente apontada para o socialismo trataria de configurar as mobilizações como “inconscientemente socialistas”. Esses elementos são parte do que leva a unilaterialização do programa democrático, isolado dos demais programas e dos sujeitos, em suma, da estratégia 15  e expressam que o outro lado da moeda do “objetivismo” da etapa está no “subjetivismo”, na forma como acreditam que mobilizações de qualquer tipo, motorizadas por consignas mínimas ou democráticas, apontam necessariamente em direção ao socialismo16.

Tendo isso em vista, entraremos agora, no plano concreto, aos aspectos equivocados em torno desse balanço. Agora é preciso ter em conta um segundo problema, junto ao de criar uma unilateralização de “eixo programático” contra a ditadura isolada dos sujeitos (e uma desdobrada teoria da revolução democrática): a subvalorização que a LIT tem feito da atuação da burguesia nesses processos de mudança de regime e, particularmente, do imperialismo. Sobre isso que vamos nos deter no tópico seguinte.

A cegueira diante da atuação do imperialismo: quando a “revolução democrática” se encontra com a contrarrevolução

O ano de 1989 é uma data emblemática, que deve ser considerada como uma inflexão para todos os que querem se dispor a estudar seriamente as revoluções e contrarrevoluções no século XX. Ela coloca em relevo um aspecto estratégico de primeira ordem que é a interpretação sobre a correlação de forças internacionalmente e o momento de expansão de uma das iniciativas do capitalismo mais ofensivas e nefastas para a classe trabalhadora: o neoliberalismo.

O neoliberalismo emergiu como um projeto político-econômico que redefiniu as estruturas de poder, ganhando contornos mais definidos a partir dos anos 1980. Após o laboratório neoliberal iniciado com a sangrenta ditadura pinochetista, o neoliberalismo ganha outro patamar internacional a partir dos reacionários governos de Ronald Reagan nos Estados Unidos e Margaret Thatcher no Reino Unido. Sua implementação significou um ataque sistemático às conquistas históricas da classe trabalhadora, alcançadas no período de prosperidade do pós-guerra, como direitos sociais, políticas públicas e melhores condições de trabalho, o que seria substituído por uma agenda de desregulamentação e supremacia do mercado.

Esse projeto não se limitou aos centros do capitalismo avançado. Por meio do Consenso de Washington 17 , o modelo neoliberal foi imposto às nações periféricas, enquanto nos antigos Estados socialistas burocratizados ele se articulou com processos de restauração capitalista. O discurso triunfalista capitalista, junto com toda sua ideologia, se amparou no esteio do fim do “socialismo real”, constituindo uma verdadeira contrarrevolução e restauração do capitalismo.

É precisamente neste ponto que adquire centralidade a discussão que pretendemos desenvolver ao longo destes próximos tópicos: o papel do imperialismo e seu projeto de expansão sobre a periferia do sistema capitalista, materializado historicamente no neoliberalismo e nas diretrizes do chamado Consenso de Washington. O que se tratava aqui era a implementação de um programa ofensivo contra as condições de vida e direitos sociais. Como destacou Perry Anderson, configurou-se como a ideologia mais “bem-sucedida da história”, tamanha sua capacidade de reorganizar o capitalismo global. No entanto, para Moreno, esse momento esteve longe de significar uma inflexão, ao contrário, a “etapa revolucionária” seguia de vento em popa.

Ancorado em um método de análise objetivista, Moreno interpretava as ações do imperialismo predominantemente como intervenções caóticas, contraproducentes e formas “incendiárias” de atuação que, ao invés de conter, acabariam por intensificar a crise revolucionária: a controversa teoria do “bombeiro louco” 18 . Ainda que reconheçamos que, em determinadas condições específicas, tal dinâmica possa de fato ocorrer, a experiência histórica demonstra que, em uma grande parte dos casos, o resultado das ações imperialistas tem sido o fortalecimento de projetos profundamente reacionários, que visam à restauração ou consolidação da ordem capitalista em sua forma mais agressiva.

Nesse ponto, destacamos dois processos históricos particularmente relevantes, pois ambos, a seu modo, evidenciam as consequências da subestimação do papel desempenhado pelo imperialismo nas dinâmicas contemporâneas da luta de classes. São eles: a Primavera Árabe e o golpe parlamentar-institucional ocorrido no Brasil em 2016.

No primeiro caso, nos referimos a uma série de mobilizações populares e processos revolucionários que eclodiram, majoritariamente, sob regimes ditatoriais no Norte da África e no Oriente Médio. Esses levantes colocaram em evidência os limites programáticos e estratégicos da teoria das “revoluções de fevereiro”, à medida que sua aplicação mecânica impediu uma análise concreta das múltiplas mediações políticas e das formas de intervenção imperialista que se articulavam nesses contextos.

No segundo caso, o golpe institucional de 2016 no Brasil foi conduzido no interior de um regime democrático-liberal, articulado a partir de uma manobra entre setores do Judiciário, do Parlamento, da grande mídia e do empresariado, com o apoio do imperialismo dos EUA, para impor uma agenda regressiva de ataques aos direitos sociais e trabalhistas. Essa operação não apenas agravou as condições de vida da classe trabalhadora, como é um momento chave para compreender a posterior ascensão de Jair Bolsonaro ao poder.

O papel do imperialismo para contra-atacar a Primavera Àrabe e a posição da LIT

Enquanto nos regimes democrático-burgueses as lutas se desenvolvem precisando se enfrentar com mediações políticas e organizações sindicais com raízes no movimento de massas – o que denominamos como Estado Integral, seguindo as definições de Antonio Gramsci –, a realidade egípcia apresentava um cenário radicalmente distinto. O país vivia sob um regime repressivo férreo de décadas, onde, embora formalmente houvesse instituições típicas civis, o aparato militar detinha o controle do Estado, do regime e do próprio governo, até então sob a gestão de Hosni Mubarak.

Esse modelo de dominação constituiu um pilar intocável tanto para a burguesia local quanto para as potências estrangeiras. Após a queda de Mubarak através de mobilizações multitudinárias e radicalizadas que contaram com a participação da classe trabalhadora com uma onda de greves e ocupações, a Irmandade Muçulmana, uma organização política que não escondia sua adesão aos ideais de “livre mercado”, surgiu como possível fiadora de uma “democracia controlada”.

O processo que derrubou Mubarak no início de 2011 apresentou uma dinâmica de classes reveladora do debate que queremos fazer. Embora o movimento na Praça Tahrir tenha sido majoritariamente composto por jovens das classes médias, desempregados e pobres urbanos, a intervenção da classe operária – ainda que não hegemônica – provou-se decisiva para acelerar a queda do regime, particularmente os portuários e industriais do canal de Suez, setor têxtil e do funcionalismo público. Essa convergência foi precisamente o que levou à saída de Mubarak, buscando evitar um aprofundamento revolucionário.

Eleita em 2012, a ascensão da Irmandade Muçulmana foi o início de um processo de desvio, para evitar o aprofundamento da dinâmica revolucionária no Egito e separar a enorme unidade que começava a se estabelecer entre a classe trabalhadora e as massas urbanas. Devido ao seu caráter burguês, a Irmandade Muçulmana não conseguiu atender às demandas mais elementares das massas, uma vez que buscou construir uma nova forma de regime político, mas mantendo os pilares do capitalismo egípcio, que impunha uma situação de miséria para as grandes maiorias sociais, mantendo intacto inclusive o poder das Forças Armadas no regime político.

O que se deu foi a continuidade da insatisfação popular, que produziu em 2013 um novo levante contra o governo, agora da Irmandade Muçulmana. No entanto, devido ao fato das Forças Armadas terem se preservado, foi precisamente esse setor que soube capitalizar o descontentamento geral, quando buscaram uma posição de “arautos da vontade popular” e derrubaram o então presidente Mohamed Morsi. Essa manobra não apenas consolidou seu poder, mas também lhes conferiu uma aura de legitimidade perante amplos setores da população. Estava iniciado o processo que encerraria a dinâmica iniciada em 2011.

O período subsequente foi marcado por uma intensa campanha de repressão política. Em um intervalo de poucos meses, o regime militar superou, em termos de violência e autoritarismo, o governo de Hosni Mubarak. Entre as principais medidas adotadas destacam-se a execução de opositores em uma escala sem precedentes, a criminalização sistemática das dissidências políticas, a restrição de liberdades civis fundamentais e a repressão direta a formas de organização da classe trabalhadora, com especial ênfase na perseguição a movimentos grevistas e sindicais.

Ao contrário de uma “revolução de fevereiro”, o processo egípcio de queda de Morsi instrumentalizada pelo exército em um golpe militar, caracterizou-se por uma inflexão que desviou o curso revolucionário, interrompendo uma dinâmica permanentista que começava a se desenvolver. Como já mencionado, as expectativas depositadas na vitória eleitoral da Irmandade Muçulmana desempenharam um papel central nesse desvio. Posteriormente, as Forças Armadas impuseram, por meio de um golpe de Estado, o encerramento violento das possibilidades de continuidade do processo revolucionário em curso.

Seguindo a lógica da LIT, qual teria sido o caráter do processo? Vejamos cada um dos momentos para compreendê-los. Primeiro, vale voltar ao começo do processo, a partir de sua definição publicada em 2011:

“A derrota de Mubarak foi um passo democrático, que desatou uma revolução que se enfrenta objetivamente contra a dominação imperialista. Por isso é uma revolução socialista, ainda inconsciente. 19

Esse é um primeiro aspecto fundamental de seu objetivismo: compreender que, ao serem revoluções dentro de uma etapa revolucionária, tendem teleologicamente para o socialismo, por isso são “inconscientes”. Se é verdade que a derrubada de Mubarak foi parte de um processo revolucionário com a intervenção das massas, definir esse passo como socialista, independente dos sujeitos que intervêm, começa a desarmar a compreensão para interpretar as maneiras nas quais a burguesia e o imperialismo podem intervir para mudar o curso das coisas. Essa é uma contradição que o artigo que estamos debatendo não consegue resolver. Por mais que critiquem as formulações de processos “inconscientes” e do objetivismo formulado por Moreno, não vinculam isso ao programa e as tarefas estratégicas para os processos reais.

Como afirmam, no caso particular de processos revolucionários que se desenvolvem sobre regimes ditatoriais, o eixo programático tomado de forma unilateral deve ser “Abaixo a ditadura”. Ao compreenderem o triunfo de uma revolução a partir da realização dessa tarefa, tendem a enfatizar o “caráter socialista” do processo, subestimando, assim, o fato de que, mesmo quando uma ditadura é derrubada pela ação das massas, o imperialismo pode intervir de diferentes maneiras com o objetivo de conter e desviar os processos revolucionários. Esse é um dos cernes da compreensão objetivista da realidade e a criação de uma categoria alheia ao marxismo, isto é, os processos chamados inconscientes e as revoluções democráticas como norte e eixo programático de uma primeira etapa do processo.

A contradição da teorização da LIT no caso do Egito ficou ainda mais aguda quando a queda não era de Mubarak, mas de Morsi, que resultou na ascensão do general Al-Sisi, até hoje no governo militar e reacionário do Egito. Em outro artigo, já com a queda de Mohamed Morsi perpetrado pelos militares, esse objetivismo se mostra novamente, buscando inserir uma continuidade de um processo revolucionário a partir de uma intervenção abertamente contrarrevolucionária:

“o signo geral do processo revolucionário de conjunto, […] não é de “derrota”, mas está marcado por duas enormes vitórias revolucionárias das massas (a saída de Mubarak e a de Morsi). Toda revolução passa por momentos de avanço e retrocesso. Em toda revolução atua, inevitavelmente, a contrarrevolução. Mas no caso do Egito, a contrarrevolução ainda se move no marco de uma revolução poderosa e em pleno desenrolar. 20 [Grifo nosso]”

Ou seja, para a LIT, apesar da intervenção do imperialismo, (ou poderíamos dizer, com sua ajuda?) as tarefas da revolução democrática se deram com a queda de Morsi, em um processo que se moveu objetivamente no marco de uma “revolução poderosa”.

No cerne dessa lógica contém uma combinação problemática entre a centralidade atribuída à consigna democrática de “República democrática” – que, na prática, passa a significar simplesmente “derrubar o governo” – e a desconsideração dos demais elementos estratégicos fundamentais, especialmente no que diz respeito ao papel do imperialismo, das frações burguesas locais e das forças armadas. Esse tipo de lógica atinge talvez o mais alto grau quando leva , no momento da queda de Morsi, a LIT a relativizar até mesmo um golpe militar. Vejamos a descrição nas palavras do texto da LIT:

“Durante o governo de Morsi, era obrigação dos revolucionários estar nas ruas, junto com as massas. Quando os militares, frente à mobilização das massas, deram um ultimato a Morsi, a posição dos revolucionários não podia mudar porque o “golpe” dos militares não significava um retrocesso, como seria se envolvesse a mudança de um regime democrático-burguês para uma ditadura. Tratava-se de um “golpe” nos marcos do mesmo regime militar. Ainda que o exército estivesse derrubando o governo pela força, estava satisfazendo a principal reivindicação do movimento de massas naquele momento: derrubar Morsi. 21

Uma passagem das mais emblemáticas dos erros cometidos pela “revolução democrática” morenista é esse na Primavera Árabe, quando defenderam o apoio à derrubada de governos em qualquer condição: já que as “massas” querem a queda de Morsi, mesmo que seja o exército que execute, “não podemos modificar nossa posição de apoio a derrubada”, ainda que resulte em um golpe militar.22

Os casos da Líbia, da Síria e Ucrânia: quando a OTAN é força decisiva

O mesmo erro se repetiu na Líbia, e agora sob o fogo direto da intervenção imperialista. Foi um processo ocorrido em 2011, como parte da Primavera Árabe que resultou na queda do regime de Muammar Kadafi. Após um longo processo de intensas revoltas populares, ocorreu uma intervenção militar internacional da OTAN para retirar Kadafi do tabuleiro e buscar desviar o processo que se desenvolvia.

Nesse momento, a LIT afirmava que, após a intervenção da OTAN no processo revolucionário, houve uma grande vitória do povo líbio e da Revolução Árabe. Mesmo com uma intervenção militar diretamente pelas armas e bombardeios da OTAN, a LIT não titubeou em definir como uma vitória das massas líbias. Para tentar amalgamar as categorias de revolução e contrarrevolução, afirmavam que o que ocorreu foi “um processo contraditório, uma combinação entre uma rebelião popular e uma intervenção militar da OTAN”, terminando por ver uma “unidade de ação” entre as massas líbias e a intervenção militar imperialista.23

Ao contrário disso, vale dizer que, no processo revolucionário na Líbia, se contrapuseram duas formas distintas de contrarrevolução. A primeira, encarnada pelo próprio Kadafi, buscou o esmagamento violento do movimento popular através de uma guerra civil sangrenta. A segunda estratégia, adotada pelo imperialismo após hesitações iniciais, emergiu como resposta às limitações da primeira via no contexto específico da Primavera Árabe e da crise do Estado líbio.

Nesse caso, diferente de uma revolução democrática, como afirma a LIT, o que ocorreu foi uma verdadeira intervenção imperialista, envernizada de retórica humanitária, que visava simultaneamente afastar Kadafi e conter o processo revolucionário e, assim, pavimentar o caminho para uma “transição controlada”. Fruto disso, hoje a Líbia é um Estado fragmentado, dividido entre diferentes frações burguesas que respondem a interesses de distintos imperialismos e que colaboram com a Europa para frear a entrada de migrantes africanos. Uma catástrofe fruto da intervenção da OTAN.

Mais uma vez, o eixo programático em ver exclusivamente às tarefas de derrubada de uma ditadura como o definidor da articulação estratégica, ou “revoluções de fevereiro”, desloca para outro plano a intervenção imperialista, transformando aquilo que viria a ser grandes derrotas de processos revolucionários em revoluções triunfantes.

Poderia se interrogar, diante da revisão crítica de algumas categorias de Moreno, se a LIT poderia estar corrigindo essas concepções. No entanto, mesmo em processo mais recentes, o erro permanece, expressando a mesma lógica aplicada a esses processos da Primavera Árabe.

Em 2024, diante da queda do reacionário ditador Bashar al-Assad na Síria por facções islâmicas, novamente a LIT denominou esse processo como “revolução democrática e popular24 ”, se adaptando mais uma vez ao campo burguês anti-Assad no qual nada menos do que potências como Israel, Turquia e o próprio imperialismo dos Estados Unidos buscaram se apoiar em benefício próprio.

Portanto, deixamos a pergunta aos autores do texto não assinado: qual a relação do objetivismo de Moreno com a caracterização e política levantada pela LIT nos processos que apresentamos? A lógica das “revoluções de fevereiro”, aplicada nos contextos de ditadura, não produziram erros políticos, teóricos e estratégicos graves? À luz de mais de uma década do início da Primavera Árabe, com os resultados que ela produziu (partindo da importância dos processos revolucionários de luta das massas), qual o balanço que a LIT faz das “revoluções democráticas triunfantes” no contexto de um Oriente Médio? Importante a pergunta quando vemos um cenário dominado por setores das burguesias árabes que cumprem um papel nefasto de apoiar o Estado assassino de Israel e toda sua ação de genocídio contra o povo palestino.

Por fim, trazendo o debate para uma questão bastante atual, em uma situação de guerra, como a da Ucrânia, a LIT reproduz uma lógica semelhante e, ao não considerar em sua política concreta o papel da OTAN, caracterizam a guerra apenas do ponto de vista de uma “resistência contra a invasão” e subvalorizam mais uma vez o papel do imperialismo. Obviamente nos posicionamos contra a invasão russa na Ucrânia, mas isso não significa assinar um cheque em branco para o imperialismo, que se unificou por trás do governo pró-ocidental de Zelensky – inclusive, Trump não pôde deixar de seguir o armamento da Ucrânia, obrigando Kiev a entregar seus recursos minerais e os países da Europa a contribuírem com mais orçamento militar para a OTAN. A LIT apoia militarmente o campo de Zelensky, inclusive exigindo armas aos países imperialistas – o que, digno de nota, ocorre desde o começo do conflito 25 .

Para justificar essa adaptação ao campo militar da OTAN, a LIT aplica formalmente a concepção defendida por Lênin e por Trotski, que corretamente argumentavam que era necessário apoiar um país oprimido diante das agressões militares de uma potência imperialista. A LIT, distorcendo essa concepção, chega ao absurdo de fazer uma analogia com a Guerra das Malvinas. O que não veem, ou se negam a ver, é justamente onde está o imperialismo em cada uma dessas guerras. No caso das Malvinas, o lugar do imperialismo era muito claro e estava representado em ninguém menos que Margaret Thatcher e o Reino Unido. No caso ucraniano, o que vemos são todas as potências imperialistas ocidentais por trás de Zelensky, oferecendo armamento e recursos para conquistar seus próprios objetivos.

Rechaçar e se opor à reacionária invasão russa não deveria levar ao apoio militar da OTAN e sua guerra por procuração. Pelo contrário, uma posição genuinamente independente e socialista deveria se fundamentar na convocação à luta dos trabalhadores de todos os países contra suas próprias burguesias e contra a escalada militar da OTAN, bem como contra a ingerência militar russa. Essa deveria ser a perspectiva na defesa do direito de autodeterminação da Ucrânia para pôr fim a uma guerra reacionária que não pode trazer nada de positivo para a luta do proletariado internacionalmente26 .

O golpe institucional no Brasil: quando a tragédia da transição se torna farsa na política da LIT

Mas não é apenas em ditaduras que a LIT não articula a análise da política do imperialismo e de setores de direita, com a sua própria. Também em regimes democráticos, incorreram nesse grave erro, agora com consequências mais importantes, uma vez que se deu no país onde está o maior partido da LIT, o PSTU brasileiro.

Esse grave erro foi se refletir durante os eventos do golpe institucional na ruptura de mais da metade de sua organização, sem qualquer balanço político até hoje sobre o que levou a esse cisma. Da mesma forma, a ausência de relacionar o processo brasileiro com a retomada crítica que fazem das categorias de Moreno revela um limite da sua atual revisão que, apesar de encontrar alguns sintomas do problema, não identifica as causas que o produzem.

Em 2016, diante da crescente ameaça de um golpe institucional – articulado por meio de manobras judiciais sob a liderança de Sérgio Moro, Eduardo Cunha e os setores mais reacionários do regime político brasileiro –, o PSTU adotou como eixo central a bandeira “Fora Todos e Eleições Gerais”. Ou seja, enquanto a direita e a extrema direita promoviam os atos com a camisa verde e amarela, a FIESP espalhava seus patos pelo país e o departamento de Estado americano treinava os juízes e promotores que atuavam na Lava Jata para conduzir um golpe parlamentar e institucional para depor Dilma, o PSTU engrossava o coro pela queda do governo com sua própria bandeira do “Fora Todos”.

Ainda que hoje digam que nunca foram a favor do impeachment, porque ele é um instrumento das classes dominantes, tampouco pode se encontrar qualquer artigo do PSTU se opondo à derrubada do governo do PT no contexto concreto que isso se dava pelas mãos da direita. Por isso, não foi por um acaso ou um descuido que seus cartazes com os dizeres “Fora todos eles” foram parar nos acampamentos em frente da FIESP dos setores mais radicalizados da direita 27 . Desse modo, negaram não só a existência de um golpe institucional em curso, como também se negaram a levantar qualquer luta contra ele. O próprio PSTU, em artigo intitulado Não teve golpe, afirma: “Lutar contra um golpe inexistente é uma farsa inventada para defender o “Fica Dilma 28 .”
Para sustentar essa posição, ignoraram as manobras do imperialismo norte-americano na região e, pior ainda, aceitaram o Judiciário atuando como árbitro e ator político. Com essa linha, longe de combater o reformismo e a conciliação de classes, o PSTU acabou se adaptando completamente a um regime burguês decadente, justamente em um momento decisivo de inflexão à direita.

Hoje, passados quase dez anos desse momento, após a ascensão de Temer e Bolsonaro e a aplicação de todas as enormes contrarreformas que atacaram as grandes maiorias populares, não resta pedra sobre pedra na defesa de que toda aquela articulação reacionária, que terminou com a consumação do golpe institucional, tinha que ser enfrentada sem hesitação pelos trabalhadores e suas organizações de massas.

Para justificar sua política, o PSTU precisou recorrer a uma teorização estreita de golpe, que considera apenas aqueles que ocorram através de um enfrentamento violento e armado:

“Em política, um golpe se dá quando uma disputa entre dois setores das classes dominantes termina em enfrentamento violento, ou seja, armado. Pode ser um golpe organizado por um setor das Forças Armadas, por um movimento fascista baseado em grupos armados ou por um grupo civil apoiado por forças militares. 29

Assim, fecham os olhos para as distintas formas de ingerência e atuação do imperialismo, que tem entre seus arsenais de intervenção os golpes de força apenas como uma de suas formas de atuação. Para o PSTU o método de atuação do lawfare, intervenção política através do sistema judiciário, artimanhas parlamentares, entre o sem número de artifícios de instrumentação política, são simplesmente ignorados. Diante das revelações da “Vaza Jato” e da comprovação das relações entre Sérgio Moro com o departamento de estado norte-americano, é ainda mais chamativo que até hoje não façam nenhum balanço dessas posições.

Não suficiente, por não tirar nenhuma lição desse processo, repetem o mesmo erro atualmente na Argentina, não só não se opondo à prisão da Cristina Kirchner, como também defendendo abertamente que ela seja presa, se localizando com a mesma política que hoje é sustentada pela extrema direita de Milei, Macri e Trump. 30

Voltando ao caso brasileiro, ao não ver quem era o sujeito da derrubada de Dilma e qual a direção, também no Brasil o PSTU repetiu o erro que foi parte da mesma lógica da definição de sua política, estratégia e programa para a Primavera Árabe. Aqui podemos ver um vínculo entre as teorizações de Moreno e os erros políticos do PSTU. Uma vez que a “etapa revolucionária” estava em curso em todo o mundo, tudo aquilo que se movimentava para derrubar o governo de plantão poderia ser considerado fenômeno que tendia à esquerda. Uma lógica formal e objetivista com resultados catastróficos e que até hoje marcam essa organização.

Mais uma vez insistimos, revela-se com toda clareza o núcleo teórico do chamado objetivismo morenista. Nahuel Moreno, ao pretender “atualizar” a teoria da revolução permanente de Trótski, na prática realizou uma revisão que significou uma estratégia que abandonou o princípio da independência de classe. Seu método estabeleceu uma separação formal entre os movimentos políticos concretos e as direções políticas que os comandavam. Assim, não havia problema nenhum em levantar a consígna do Fora Todos, no momento que a direção desse processo era uma fração pró-imperialista e de direita. Do mesmo modo, levou a uma adaptação completa ao judiciário, que buscou se alçar como uma força bonapartista no regime político.

Algumas conclusões

Conforme argumentamos, é possível sintetizar o argumento do seguinte modo: a esquemática morenista de que estamos em uma etapa revolucionária desde 1943 se chocou brutalmente com a realidade do neoliberalismo, um período de restauração burguesa e de ofensiva do capital internacionalmente. Ao preservar a lógica da etapa, era necessário “exagerar” as mobilizações para se encaixarem nesse esquema. Ao mesmo tempo, abriam a possibilidade de interpretação de “revoluções” contra regimes contrarrevolucionários – ainda que com eixos programáticos orientados à construção de um novo regime burguês (como indicam as formulações da Escola de Quadros) —, incluindo a derrubada de governos em processos que, no fundo, eram “inconscientemente socialistas”, mesmo aqueles dirigidos por forças burguesas. Essa constatação é feita pelo texto da LIT, no entanto sem buscar efetivamente suas causas, quando afirmam:

“A generalização dos “fevereiro” como “fevereiro recorrentes” muitas vezes nos leva à vulgarização da categoria “revolução”. Por exemplo, às vezes chegamos a chamar de “revolução” qualquer queda de um governo no âmbito da democracia burguesa por meio da mobilização das massas. 31

Quando a generalização do conceito de “revolução” é tratada, é importante ressaltar uma distinção fundamental entre o “mundo” sob o qual Moreno teorizava e o “mundo” no qual a LIT vêm consecutivamente afirmando posições cada vez mais erráticas.

Conforme o próprio artigo da LIT aponta, a teoria de Moreno já errava ao considerar como regra os eventos ocorridos na segunda metade do século XX, especialmente o aspecto de que as revoluções do pós-guerra não foram dirigidas por partidos revolucionários com hegemonia da classe operária, o que moldou o caráter (deformado) desses novos Estados operários, com importantes consequências na revolução internacional. Mas Moreno incorreu nesses erros assistindo processos que foram gerados por condições muito particulares, pois ele elaborou sua teoria-programa em base a processos reais que acabaram por expropriar suas burguesias, indo além das intenções de suas próprias direções, mesmo aquelas pequeno-burguesas e camponesas, como é o caso de Cuba e do Vietnã.

Outra coisa, completamente distinta é enxergar como positiva ou parte de um processo “contraditório” a intervenção direta do imperialismo como parte integrante de “grandes revoluções”, como faz a LIT atualmente. Nesse sentido, o que fazem é não apenas manter as categorias de Moreno, como também “exageraram” o alcance delas, chegando a posições bastante equivocadas, sem qualquer proximidade com a tradição dos grandes revolucionários.

Curiosamente, o próprio Moreno em As revoluções do século XX chega a formular que “a burguesia tenta frear a revolução por meio de manobras, aproveitando as ilusões das massas” chamando esses processos de “reação democrático-burguesa” 32 . No entanto, o que “escapou” das conclusões de Moreno, e que são pano de fundo das atuais teorizações da LIT, foi os impactos da política do imperialismo que começa a se gestar em meados da década de 1970 e que vai se aprofundar nos anos 1980 com o fim da Guerra Fria. Para impedir a ascensão da revolução proletária, como forma de compensar o declínio de sua hegemonia após a derrota no Vietnã, os EUA passaram a apoiar “transições democráticas” em diferentes partes do mundo. Esse processo abarcou mudanças em diferentes tipos de regimes, como os antigos regimes stalinistas de partido único na esfera soviética, ditaduras como a de Franco na Espanha ou a de Salazar em Portugal, nos países imperialistas mais débeis, ou as ditaduras militares como as da América do Sul. Ao contrário de “revoluções democráticas”, foram verdadeiras reações ou mesmo contrarrevoluções “democráticas” operadas a partir das coordenadas do imperialismo, para impedir que lutas antiditatoriais e anticoloniais assumissem contornos mais radicalizados que pudessem desatar processos revolucionários mais agudos.

Daí que provém também o erro histórico da LIT em considerar que a “revolução brasileira” começou em 1984 durante as Diretas Já, com fortes consequências para a reflexão sobre a transição no Brasil. No caso do mundo árabe, em que tivemos um primeiro momento de processos revolucionários, perderam-se em reafirmar as categorias de “revolução democrática”, “socialismo inconsciente”, forçando e deformando a realidade, chegando a estar no mesmo lado da barricada do golpe militar no Egito porque cumpria a tarefa das massas de “derrubar Morsi”. Com a mesma lógica, estiveram no campo da OTAN na Ucrânia e Líbia porque supostamente estavam com as massas ou em defesa de uma nação oprimida.

Essa perspectiva foi definitivamente colocada à prova pela própria dinâmica histórica com a ascensão de uma corrente internacional de extrema direita, que teve no golpe do Brasil uma experiência significativa, antecedendo inclusive a eleição de Trump nos Estados Unidos. O que mudava? É que as “mobilizações de massas” agora também poderiam ser puxadas e conduzidas pela direita, como as que ocorreram em 2015-2016 e depois no bolsonarismo. Seguindo sua teoria, o PSTU “apoiou as massas” para “derrubar o governo” Dilma, num formalismo objetivista que terminou com sua consigna de “Fora Todos” fazendo coro com o golpe institucional, que criou a correlação de forças que levaria o país a Bolsonaro.

Por que não era possível, com uma análise dialética e uma política consequente, ser contra a intervenção imperialista e o golpe no Brasil, de forma independente do PT e inclusive mostrando que a conciliação de classes abriu espaço para a direita?

A falta dessa visão dialética terminou na primeira grande cisão da LIT e do PSTU brasileiro, com a ruptura de quase metade da organização para uma corrente que hoje tem uma política oportunista e reformista, mais próxima ao petismo. Dez anos depois os companheiros indicam que estão fazendo debates e apontam autocríticas. Mas, como diz Marx, ser radical é agarrar as coisas pela raiz. Nesse sentido, perguntamos, porque não dialogam com o fato de que faz 30 anos que a FT aponta esses erros que agora começaram a analisar na teoria de Moreno, ou ao menos dialogam com os textos que fazem essas críticas para que o debate avance?

Internacionalmente, assistimos a um mundo em que se recolocam embates entre as classes e fenômenos clássicos como crises econômicas, guerras comerciais, conflagrações militares, genocídios e a retomada de projetos bonapartistas e fascistas. A história nunca se repete, por isso, não compreendemos a reatualização do que foi denominado por Lênin de época imperialista como uma simples retomada das teorias do início do século XX, como se respondessem a todas as questões da atualidade. A própria teoria da revolução permanente deve ser enriquecida com o conjunto das novas experiências e problemas teóricos, inclusive pensando sua forma a partir do contexto concreto da luta de classes, que tem implicado em grandes revoltas e rebeliões, e que em breve podem desatar inclusive revoluções. Nosso intuito com este texto, portanto, não é propor apenas uma “volta a Trótski” a partir da reavaliação das “correções” morenistas e interditar debates sobre atualizações teóricas. Ao contrário, é perceber que os desvios de rota nessas “correções” passadas estavam em não perceber a enorme inflexão que significou o neoliberalismo, e que esquemas teóricos levavam a subvalorizar a intervenção do imperialismo nessas décadas O desafio agora é perceber a inflexão que significou a crise de 2008 e pensar todos os aspectos da luta de classe à luz desse novo tabuleiro econômico, geopolítico e da luta de classes.

Essa é a perspectiva que nos colocamos para debater, interpretar e buscar intervir nessa realidade cada vez mais convulsiva. Realizaremos em dezembro deste ano a conferência de nossa organização internacional, a FT-QI, que ocorrerá no Brasil. Queremos fazer esse debate à luz da importante intervenção que viemos tendo em diferentes partidos da nossa organização, como o PTS na Argentina, o Révolution Permanente da França, o MRT do Brasil, o Left Voice dos EUA, além de dezenas de outras organizações da América Latina, América Central e Europa.

Para nós, a construção de uma alternativa política internacional dos trabalhadores é uma tarefa de primeira ordem, para contribuir na construção de fortes partidos revolucionários que tenham como centro de gravidade de sua atuação a luta de classes. É buscando contribuir com essa perspectiva e diante desse enorme desafio que colocamos em consideração os problema teóricos, políticos, programáticos e estratégicos daquelas organizações provenientes do trotskismo. Isso porque o reexame teórico de experiências passadas e a análise estratégica e programática das experiências políticas e da luta de classes na atualidade é um exercício fundamental e um método revolucionário no sentido da emergência de uma alternativa internacional e socialista para os trabalhadores, que para nós passa pela reconstrução da IV Internacional.

 

REFERÊNCIAS:

1. LIT-CI. Sobre las situaciones de la lucha de clases en nivel nacional e internacional. LIT-CI, nov. 2024. Tese 26. Disponível em: https://litci.org/es/sobre-las-situaciones-de-la-lucha-de-clases-en-nivel-nacional-e-internacional/

2. Nahuel Moreno (1984). Escuela de cuadros: Argentina 1984. Documento interno del PST; primera edición en libro: Ediciones Crux, Buenos Aires, 1992, p. 18

3. Como temos debatido há anos, entendemos que esses elementos apontam para a conformação de uma teoria particular sobre a “revolução democrática”. Ver: Manolo Romano. “Polémica con la LIT y el legado teórico de Nahuel Moreno”. Revista Estrategia Internacional N.º 3 (dic ’93–ene ’94). Disponível en Estrategia Internacional – Revista N.º 3 (1993-1994)

4. Nahuel Moreno. Carta à direção de Alicerce. In: ____. Revoluções do século XX. Buenos Aires: CEHuS – Centro de Estudios Humanos y Sociales, 1984. Apêndice 1. Tomado de Cuaderno de Formación n. 3, Editorial Antídoto, 1986. p. 49.

5. LIT-CI. Sobre las situaciones de la lucha de clases en nivel nacional e internacional. LIT-CI, nov. 2024. Tese 26.

6. Nahuel Moreno. Manifesto Internacional – 1985. Buenos Aires: LIT-CI, 1985. Disponível em: http://www.nahuelmoreno.org/escritos/Manifiesto-Internacional-1985.pdf., p. 6

7. Nahuel Moreno. As revoluções no século XX. São Paulo: Sundermann, 2003 P. 61

8. Nahuel Moreno (1984). Escuela de cuadros: Argentina 1984. Documento interno del PST; primera edición en libro: Ediciones Crux, Buenos Aires, 1992, p. 49

9. Idem

10. Leon Trótski. O que é a revolução permanente? Teses. Esquerda Diário, [s. l.], 25 abr. 2017. Disponível em: https://www.esquerdadiario.com.br/Leon-Trotski-O-que-e-a-revolucao-permanente-teses

11. Florestan Fernandes, A Constituição inacabada, p. 308. Ver artigo completo isso no artigo Apontamentos sobre Florestan Fernandes e a Constituição de 1988. Disponível em: https://esquerdadiario.com.br/ideiasdeesquerda/?p=174#_ftn4

12. Leon Trotski. “A revolução espanhola e as tarefas dos comunistas”. In: A revolução espanhola. São Paulo: Iskra, 2014, p. 59

13. Esse aspecto fica tão ou mais claro na teoria de Trótski quando analisa o caso italiano ao dizer que: “Isso significa que a Itália não pode voltar a se tornar, por algum tempo, um Estado parlamentar ou uma ’república democrática’? Considero – e creio que concordamos plenamente nisso – que essa eventualidade não está excluída. Mas isso não será fruto de uma revolução burguesa, e sim o aborto de uma revolução proletária insuficientemente madura e prematura. Se eclodir uma profunda crise revolucionária e ocorrem batalhas de massas nas quais a vanguarda proletária não tome o poder, possivelmente a burguesia restaurará seu domínio sobre bases ’democráticas’”. Disponível em: https://ceip.org.ar/Problemas-de-la-Revolucion-Italiana-780

14. Nahuel Moreno; Mercedes Petit. Conceptos políticos elementales. Buenos Aires: Movimiento al Socialismo, 1986. 〈PDF〉. Disponível em: https://www.nahuelmoreno.org/escritos/conceptos-politicos-elementales-1986.pdf . Acesso em: 15 jul. 2025, p. 16

15. Para um aprofundamento dessa reflexão, ver texto de Emilio Albamonte e Fredy Lizarrague. La estrategia soviética en la lucha por la república obrera. Colab. Manolo Romano. Estrategia Internacional, n. 4/5, jul. 1995. Disponível em: https://ceip.org.ar/La-estrategia-sovietica-en-la-lucha-por-la-republica-obrera

16. Para a compreensão desse aspecto subjetivista da obra de Nahuel Morena, ver: Claudia Cinatti. De saberes revolucionarios y certezas posmodernas: una reflexión sobre la teoría marxista a propósito del libro Verdades y saberes del marxismo…. Revista Lucha de Clases, n. 6, p. 147–186, jun. 2006. Disponível em: https://www.academia.edu/5325032/De_Saberes_revolucionarios_y_certezas_C_Cinnati. Acesso em: 15 jul. 2025.

17. O Consenso de Washington foi um conjunto de medidas econômicas neoliberais (como liberalização comercial, privatizações e disciplina fiscal) defendidas por instituições, como FMI e Banco Mundial na década de 1990, que impuseram o modelo neoliberal para os países da periferia do capitalismo.

18. Nahuel Moreno. Manifesto Internacional – 1985. Buenos Aires: LIT-CI, 1985. Disponível em: http://www.nahuelmoreno.org/escritos/Manifiesto-Internacional-1985.pdf., p. 6

19. Revolução e contra-revolução no Egito: Disponível em: https://litci.org/pt/2011/12/27/revolucao-e-contra-revolucao-no-egito/

20. A revolução Egípcia e as tarefas da esquerda. Disponível em: https://litci.org/pt/2014/03/24/a-revolucao-egipcia-e-as-tarefas-da-esquerda/

21. Nenhuma confiança no novo governo fantoche dos militares e do imperialismo! Disponível em: https://www.pstu.org.br/nenhuma-confianca-no-novo-governo-fantoche-dos-militares-e-do-imperialismo/

22. Essa relativização de apoiar até mesmo um golpe militar, levou a LIT a justificar a repressão à Irmandade Muçulmana, polêmica que está desenvolvida neste artigo: https://www.ft-ci.org/Golpe-contrarevolucionario-represion-y-el-desbarranque-teorico-de-la-LIT-CI

23. Líbia: revolução ou golpe do imperialismo? Disponível em: https://www.pstu.org.br/libia-revolucao-ou-golpe-do-imperialismo/

24. Declaração LIT-QI: Viva a vitória da revolução Síria! Nenhuma confiança no HTS! Pela formação de conselhos populares para governar o país! Fora tropas estrangeiras! Disponível em: https://litci.org/pt/2024/12/17/80194/

25. É o que manifestam de forma clara por exemplo quando dizem: “tal como a declaração das sessões da LIT-QI da Europa e dos EUA manifesta, devemos apoiar ativamente os esforços dos ucranianos para adquirir armas e suprimentos para se defenderem. Nesse marco, acreditamos que seja totalmente correto mobilizar-se para exigir dos governos (em especial dos países imperialistas) que entreguem à resistência ucraniana as armas e todos os materiais necessários (munições, alimentação, medicamentos) diretamente e sem nenhuma condição”. ITURBE, Alejandro. Polêmica: sobre a consigna “Não à guerra” na Ucrânia. Liga Internacional dos Trabalhadores – Quarta Internacional (LIT-QI), 15 mar. 2022. Disponível em: https://litci.org/pt/2022/03/15/polemica-sobre-a-consigna-nao-a-guerra-na-ucrania/

26. Debates do PSTU sobre Venezuela, Cuba ou Nicarágua poderiam ser pensados à luz do mesmo problema que estamos apontando. Mas para não abrir diferentes tópicos teóricos no texto, optamos por centrar a reflexão nos temas que os próprios autores do texto elencam, particularmente do mundo árabe.

27. Acampados da FIESP concordam com cartazes da esquerda ’Eleições gerais’. Disponível em: https://www.esquerdadiario.com.br/Acampados-da-FIESP-concordam-com-cartazes-da-esquerda-Eleicoes-gerais

28.  Polêmica: Não teve golpe. Disponível em: https://www.pstu.org.br/polemica-nao-teve-golpe/

29. A crise do governo Dilma e a farsa do golpe. Disponível em: https://www.pstu.org.br/a-crise-do-governo-dilma-e-a-farsa-do-golpe/

30. Um posicionamento que se choca até mesmo com as posições morenistas enquanto Moreno ainda estava vivo, quando apoiou a luta por liberdade a Isabel Perón. Ver artigo completo: https://www.laizquierdadiario.com/Otra-vez-la-teoria-de-los-campos-burgueses

31. Sobre las situaciones de la lucha de clases en nivel nacional e internacional. Liga Internacional de los Trabajadores (LIT‑CI), publicado aproximadamente 8 meses atrás. Disponível em: https://litci.org/es/sobre-las-situaciones-de-la-lucha-de-clases-en-nivel-nacional-e-internacional

32. Nahuel Moreno. As revoluções no século XX,São Paulo: Sundermann, 2003, p. 29-30

Carrinho de compras
Rolar para cima