Revista Casa Marx

Revolução Permanente: forma atual, formas elementares e formulação ampliada

Juan Dal Maso

O esvaziamento da democracia burguesa levado adiante pelo capitalismo sob a ofensiva neoliberal e o atual período de “caos sistêmico” sugerem que não se pode dar por superada “a era da revolução permanente”. No entanto, as dificuldades para o desenvolvimento de processos como os pensados por essa teoria nos colocam a necessidade de delimitar sua forma atual, o que requer, por sua vez, pensar primeiramente suas formas elementares.

Introdução

Em 1964, Isaac Deutscher escreveu que, muito possivelmente, o século XX seria visto pela posteridade como o século da revolução permanente. Hoje poderíamos apontar que foi também um século de burocratização, revolução passiva e restaurações. O século XXI, que traz seus próprios e novos problemas, tem como ponto de partida o cenário, as condições e as relações de forças que restaram dessas confrontações. Uma das questões centrais dessa herança foi a perda do horizonte da revolução no movimento de massas, como produto da restauração capitalista na URSS e nos antigos Estados operários que haviam expropriado o capitalismo. Daí a forma de revoltas de múltiplos processos que vêm ocorrendo nas últimas décadas, com a exceção parcial das revoluções que aconteceram no processo da “primavera árabe” (que, igualmente, tiveram desfechos desfavoráveis por questões ideológicas e de direção política). O esvaziamento da democracia burguesa levado adiante pelo capitalismo sob a ofensiva neoliberal e o atual período de “caos sistêmico” sugerem que não se pode dar por superada “a era da revolução permanente”. No entanto, as dificuldades para o desenvolvimento de processos como os pensados por essa teoria nos colocam a necessidade de delimitar sua forma atual, o que requer, por sua vez, pensar primeiramente suas formas elementares. Isso tentaremos nestas linhas. Mas, para fazer esse trabalho, indicaremos também a possibilidade e necessidade de uma formulação ampliada da teoria da revolução permanente.

A teoria da revolução permanente e suas posteriores ampliações por Trotsky

A teoria da revolução permanente, cuja formulação mais sistemática aparece no livro de Trotsky intitulado A Revolução Permanente (1930), abrange três dimensões: a transformação da revolução “democrático-burguesa” em socialista, o caráter internacional da revolução que impede que ela se limite às fronteiras de um país, e o caráter constante das mudanças políticas, sociais, econômicas e culturais na sociedade posterior à revolução. Após sua formulação, Trotsky realizou pelo menos três elaborações teóricas e políticas que ampliaram seus alcances, embora todas possam ser incluídas como especificações dentro desses três aspectos já mencionados e não tenham sido sistematizadas por Trotsky em uma nova formulação das teses da revolução permanente que as mencionasse explicitamente. Vamos enumerá-las por ordem cronológica.

A primeira ampliação é a que ele realiza em sua História da Revolução Russa (1931-32) a propósito da dualidade de poderes. Ao generalizar a dualidade de poderes para todas as revoluções, Trotsky destacou dois problemas fundamentais que também implicam na relação entre revolução democrático-burguesa e socialista: 1) antes da revolução, a classe trabalhadora precisa construir hegemonia em relação a todas as camadas sociais oprimidas; 2) nesses momentos, ocorre uma “situação contraditória de Estado” em que coexistem dois poderes de signo oposto, uma questão fundamental para vincular as lutas sociais e políticas anteriores à revolução com a própria revolução (que de outra forma pareceria um acontecimento messiânico).

A segunda ampliação tem a ver com a questão das demandas democráticas, que na tese de 1930 são democrático-estruturais, ou seja, a revolução agrária e a independência nacional. Trotsky realizou uma ampliação em dois sentidos: 1) diante do crescimento do fascismo e da consequente ideologia de defesa da democracia por parte do reformismo, ele incorporou com força as demandas democrático-radicais, quando afirmou, sobretudo para o caso da França em 1934, que quem quisesse defender a democracia deveria fazê-lo com os métodos da Convenção jacobina e não com os da IIIª República, incorporando as clássicas medidas daquela, retomadas pela Comuna de Paris; 2) indicou que essas demandas eram uma forma de avançar em uma relação de forças mais favorável para a luta pelo poder operário. Pode-se discutir se é correto incluir essa elaboração como parte da teoria, pois se refere a momentos da luta de classes anteriores à revolução e não à concatenação de lutas democráticas e socialistas dentro da própria revolução. No entanto, a centralidade que Trotsky indicava para as transições desaconselha estabelecer uma distinção rígida e sugere que podemos fazer essa incorporação, destacando também o posicionamento de Lenin sobre o fato de que essas formas políticas (que Trotsky considerava parte de uma “democracia mais generosa”) já eram em si mesmas formas de transição para uma democracia proletária 1.

A terceira incorporação, de maior alcance teórico que as anteriores, por sua importância na própria evolução do pensamento de Trotsky e por sua significação para a compreensão do século XX, envolve tanto a questão da relação entre os aspectos nacional e internacional da revolução quanto o processo de transição pós-revolucionária. Refiro-me à sua teoria sobre a burocratização da URSS, composta por diversas conceituações fundamentais: a definição de sua economia como uma economia de transição entre o capitalismo “atrasado” russo e o socialismo futuro (ou seja, uma fase prévia às duas famosas fases socialista e comunista indicadas por Marx em sua Crítica do Programa de Gotha, a indicação do caráter dual do Estado soviético (“socialista” na medida em que “defende a propriedade coletiva dos meios de produção” e “burguês” na medida em que “a distribuição dos bens é realizada por meio de medidas capitalistas de valor”), as periodizações sobre o Termidor e o bonapartismo soviéticos (com base na distinção entre regime social e regime político) e a formulação de um programa de revolução política para deslocar a burocracia e estabelecer uma democracia operária multipartidária, junto com a recuperação da perspectiva internacionalista.

Considerar essas elaborações como fragmentos a serem incorporados dentro da formulação geral da teoria da revolução permanente nos permite pensar nas características de sua forma atual em geral e de suas formas elementares atuais em particular.

O problema da “forma atual”

Para discutir a relação entre hegemonia e revolução permanente, Gramsci utiliza a expressão “forma atual”, destacando que “a doutrina da hegemonia” é a “forma atual” da “doutrina quarentiochesca da ‘revolução permanente’” (C10 I §12). Acredito que se pode pensar que a expressão “forma atual” vai além da típica distinção entre forma e conteúdo, implicando mais precisamente a questão da “atualidade da revolução” (não necessariamente como iminente em uma conjuntura imediata, mas como forma específica que assume em um período histórico). No caso de Gramsci, a “forma atual” é a forma que o processo de revolução permanente assume na contemporaneidade (a do “Estado integral” e da “guerra de posições”). Assim, a hegemonia aparece como superação e “forma atual” da “fórmula” de revolução permanente característica do jacobinismo e das revoluções de 1848. Dedicamos outros trabalhos a este tema, especialmente ao que essas formulações implicam para pensar as relações entre revolução permanente e hegemonia, tanto para os conceitos quanto para as teorias correspondentes. Portanto, não nos repetiremos neste ponto. O que destacaremos é que a compatibilidade entre hegemonia e revolução permanente também implica que ambas as teorias enfrentam atualmente dificuldades para estabelecer suas dinâmicas clássicas, e o que dissermos sobre a questão da “forma atual” da revolução permanente também vale para a “forma atual” da hegemonia. Mencionamos anteriormente que a “forma atual” da revolução permanente que Gramsci tentava pensar correspondia a um contexto histórico caracterizado pelas mudanças nas formas do poder estatal (“Estado integral”) e a “guerra de posições” (lutas prolongadas com ampla acumulação de forças, que implicam um maior peso da luta ideológica e pela hegemonia como direção intelectual e moral com base em uma nova relação de forças, que tem sua continuidade em uma mobilização total que implica certo esmaecimento da unicidade do momento insurrecional e sua subordinação a uma dinâmica de guerra civil). Atualmente estamos em um período de pós-restauração burguesa, e a ofensiva neoliberal implicou, em muitos aspectos, um enfraquecimento das formas típicas do “Estado integral”, assim como a centralidade do proletariado como sujeito político foi questionada de múltiplos ângulos, especialmente devido à sua fragmentação, apesar de sua sobre-extensão como sujeito social. Finalmente, a primazia das revoltas sobre as revoluções parece fechar o círculo para o adeus à revolução permanente. No entanto, a incapacidade do capitalismo de resolver de maneira integral e efetiva inúmeras demandas sociais, econômicas, culturais e políticas de amplas camadas populares, que veem degradar-se cada vez mais suas condições de vida, às quais o capitalismo oferece guerras, democracias degradadas (na melhor das hipóteses) e restrição de direitos em todos os âmbitos, sugere que a luta por articular essas demandas em uma dinâmica que vá além do capitalismo ainda é possível e necessária.

Contudo, a dificuldade de pensar a “forma atual” da revolução permanente reside, simples e grosseiramente, na ausência de revoluções. Se houvesse revoluções democrático-burguesas transformando-se em socialistas na periferia, ou revoluções socialistas nos países metropolitanos, estendendo-se do plano nacional ao internacional, ou realizando mudanças constantes na transição, o problema da “forma atual” estaria resolvido. Bastaria apontar essas experiências, com as particularidades que pudessem ter.

Isso não nos impede de destacar algumas questões fundamentais que podem ser extraídas das formas de luta e organização que surgiram nos processos recentes e que serão colocadas com maior acuidade em situações mais avançadas:

1.Centralidade do espaço urbano como cenário de luta de massas, com a consequente necessidade de controle territorial e posições estratégicas em transporte e serviços, assim como uma maior potencialidade da unidade operário-popular.

2.Multiplicidade de movimentos com objetivos limitados e com orientações políticas contrárias à sua mútua articulação, ou seja, à transformação de uma política democrática geral em uma política socialista.

3.Fragmentação da classe trabalhadora do ponto de vista de sua unidade interna e a localização subjetiva do movimento operário como agente de luta sindical e não como sujeito político.

4.Necessidade de gerar instâncias de organização e luta dentro e fora dos sindicatos, que tendam a romper a estatização do movimento operário e dos movimentos sociais. Isso inclui a possibilidade e necessidade de novas formas de organização.

5.Necessidade de ressignificar tanto a questão de classe quanto a política hegemônica, hoje muito mais entrelaçadas pelos pontos anteriores: para conseguir a unidade da classe, é preciso abordar demandas que envolvam reivindicações que abrangem outras problemáticas, com o que a política hegemônica se torna interna e externa à classe ao mesmo tempo. Isso implica um modelo de hegemonia mais “híbrido” ou “aberto” que o clássico.

Considerando todas essas questões, e sua importância em termos de certas precondições que não podem ser ignoradas para o estabelecimento de uma dinâmica revolucionária como a pensada na revolução permanente, uma possível conclusão provisória é que a “forma atual” da revolução permanente (pelo menos nas últimas décadas e até o presente) consiste na dificuldade de articulação de seus elementos componentes para dar lugar à sua mecânica típica, prevista na formulação teórica de 1930, ou mecânicas semelhantes, embora não típicas. Daí se pode pensar também que a “forma atual” da revolução permanente consiste em sua redução às suas formas elementares. A elas nos referimos a seguir.

As formas elementares

O conceito de “formas elementares” alude à existência de estruturas comuns entre processos iniciais ou menos desenvolvidos e outros mais desenvolvidos derivados dos primeiros. No caso em questão, é necessário introduzi-lo porque, pelas próprias características da teoria da revolução permanente, não é possível complementá-la com concepções de desenvolvimento gradual nos marcos do sistema, e isso coloca o problema de como essa teoria pode ser útil para pensar as questões preparatórias da revolução. Com essa afirmação, não estamos rejeitando políticas de acumulação de forças, mas a suposição de que essas acumulações podem ser realizadas com uma política reformista. Ao mesmo tempo, encarar essa indagação nos permitiria pensar a atualidade da teoria da revolução permanente em um contexto de ausência de revoluções (pelo menos até agora). Refletir sobre as formas elementares da revolução permanente tem a ver com a possibilidade de projetar as dinâmicas pensadas na formulação original para situações de luta de classes como a atual. Para isso, também utilizaremos os aspectos da “fórmula ampliada” mencionados no início. Podemos identificar, em resumo, as seguintes formas elementares:

1.Independência de classe, anti-imperialismo e política hegemônica. Uma primeira questão se refere à dinâmica mais geral das lutas sociais. Pensá-las do ponto de vista de construir as formas elementares da revolução permanente envolve a tentativa de articular as lutas (em todas as dimensões indicadas anteriormente) com uma perspectiva anticapitalista, socialista e comunista. Isso também afeta os programas a serem propostos para cada uma delas (buscando articular demandas do conjunto e não apenas por setor, assim como a afetação dos interesses capitalistas cuja defesa está diretamente relacionada com a não satisfação dessas demandas, em suma, uma política hegemônica e anticapitalista concreta, além de socialista genérica). Isso inclui, é claro, as demandas clássicas de independência nacional (plano em que há proliferação de independências formais e crescimento da sujeição material ao imperialismo) e revolução agrária (um dos terrenos onde o capital avançou na desapropriação camponesa e integração das áreas rurais à valorização, mudando os termos da questão agrária), onde tiverem centralidade.

2.Autoorganização e programa democrático-radical. A segunda tem a ver com o ponto que destacamos sobre a dualidade de poderes. De passagem, aproveitamos para corrigir certa ambiguidade nas formas como o tema foi interpretado em diversas posições afins. A estratégia revolucionária não persegue o “duplo poder”, mas o poder operário e popular. A dualidade de poderes é uma situação que surge da existência de organismos de poder operário que começam a disputar a soberania com os do poder burguês, mas essa dualidade não é a estratégia do marxismo, e sim sua substituição por um novo poder que prevaleça sobre o poder contrário, derrotando-o e estabelecendo uma nova relação de forças. Para nossa busca das formas elementares da revolução permanente, o central é a luta pela constituição desses organismos de poder, ou seja, da prática da autoorganização, que unifique a classe trabalhadora e setores populares afins em instâncias de decisão sobre todos os problemas vitais, sociais, econômicos, culturais e políticos, no local de trabalho e no plano territorial. A referência à dualidade de poderes deve, no entanto, ser mantida, para destacar a impossibilidade de que esses organismos existam por si mesmos por longos períodos, sem confronto com o poder existente. Em relação a essa questão, também surge como fundamental a das consignas democrático-radicais frente às formas tradicionais de representação política. A luta por demandas como a revogabilidade de todos os representantes e que recebam o mesmo salário que um operário ou uma professora, a unificação dos poderes Executivo e Legislativo, bem como a eleição de juízes e a abolição da figura presidencial, são demandas que colocam a centralidade de um igualitarismo democrático-radical que deve ser mantido em uma democracia operária e popular e cuja implementação indicaria um passo em sua direção, ao menos no plano das relações políticas. Ambas as dinâmicas, a da autoorganização e a das demandas democrático-radicais, estão estreitamente vinculadas ao ponto anterior, que Trotsky sintetizou uma vez, em Resultados e Perspectivas, como a passagem de uma “política democrática geral” para uma “política de classe”. Por razões de espaço e para nos circunscrevermos à questão da teoria da revolução permanente, não analisaremos a relação dessas questões com a tática de Frente Única, mas na prática está colocado relacioná-las.

3.Luta ideológica e conformação de uma trama político-cultural. A questão da autoorganização e da “democracia mais generosa” implica uma preparação para a vida política da sociedade pós-revolucionária (que Trotsky reelaborou em termos de multipartidarismo soviético com base em suas formulações sobre o significado da burocratização). E aqui cabe destacar um último aspecto a incorporar dentro das formas elementares da revolução permanente, que é a conformação de uma trama ideológica e cultural em disputa pela hegemonia, que não pode ser deixada para depois da revolução, pela simples razão de que faz parte do trabalho de preparação ideológica com o objetivo de constituir uma subjetividade revolucionária, assim como para difundir e desenvolver as ideias socialistas e comunistas.

No quadro que estabelecemos anteriormente, a identificação das formas elementares da revolução permanente permitiria pensar como abordar as lutas sociais, econômicas, democráticas, feministas e ambientais como parte de uma dinâmica que promova uma acumulação de forças em sentido socialista e revolucionário. Isso implica constatar e, ao mesmo tempo, lutar para gerar certas “estruturas comuns” (como mencionamos antes) entre os processos preparatórios e os das futuras revoluções.

A título de conclusão provisória: rumo a uma formulação ampliada da revolução permanente

No início deste artigo, apontamos as elaborações de Trotsky que podem ser consideradas como elementos que ampliam e/ou especificam aspectos fundamentais da teoria da revolução permanente. Ao mesmo tempo, sugerimos, embora não tenhamos abordado por já o termos feito em outro lugar, suas afinidades com a teoria da hegemonia de Gramsci, da qual extraímos a questão da “forma atual” da revolução permanente (questão que também se aplica à própria teoria da hegemonia), da qual derivamos, finalmente, a definição de suas “formas elementares”. Considero que as três questões devem ser levadas em consideração como parte de uma “formulação ampliada” da teoria da revolução permanente, pois permitem não adiar sua atualidade até o momento em que explodam revoluções, ou afirmá-la de maneira prescritiva, politicamente irrepreensível de uma perspectiva classista, mas abstratamente inadequada do ponto de vista descritivo (pela ausência de revoluções que já mencionamos). A combinação entre a formulação típica, especificações/ampliações posteriores, forma atual e formas elementares, poderia nos aproximar de uma visão mais flexível que permita tornar a teoria operativa na atualidade, embora até o momento estejamos longe de sua dinâmica típica ou virtuosa.

Notas de Rodapé

1. Uma análise semelhante pode ser pensada para a abordagem geral do Programa de Transição.

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