Revista Casa Marx

A cooperação como potência da classe trabalhadora e a luta pelo socialismo

Emilio Albamonte

Matías Maiello

Este texto foi publicado originalmente em espanhol no dia 14 de julho de 2024 no Ideas de Izquierda da Argentina, parte da rede internacional de La Izquierda Diario.

O discurso de que não há alternativa ao capitalismo aglutina o liberalismo e o peronismo. De um lado, Milei sustenta que o mercado não se engana, que os capitalistas são “heróis” e que o futuro do país passa por um alinhamento incondicional com o capital financeiro. Do outro, CFK afirma que o capitalismo é “o modo mais eficiente de produzir” e insiste no fracassado projeto de “regular” as grandes corporações através do Estado. A esquerda anticapitalista e socialista propõe uma alternativa a este beco sem saída, um programa próprio do povo trabalhador para que a crise seja paga pelos capitalistas e para reorganizar a sociedade sobre novas bases. A ideologia oficial diz que é impossível. Assim seria se a classe trabalhadora fosse apenas a expressão de um interesse corporativo a mais, um mero conjunto de assalariados ou consumidores. Mas como classe produtora da sociedade, é a portadora potencial de novas relações de cooperação, de uma força social e produtiva com um potencial criador, tanto no terreno econômico como no político, que pode abrir caminho para uma nova sociedade. A que nos referimos?

A classe trabalhadora como classe produtora

Um senso comum altamente arraigado em nossas sociedades diz que os empresários são os que criam trabalho. Mas desde Marx sabemos que os capitalistas não são os que “criam trabalho”, mas sim que o que fazem é roubá-lo “legalmente”. O capitalista compra a força de trabalho, a capacidade de produzir de um trabalhador ou trabalhadora por um determinado tempo, que dura a jornada de trabalho. No entanto, o valor que essa força de trabalho produz, suponhamos durante 8 horas, é superior ao seu valor expresso no salário. Na apropriação desse trabalho não pago que Marx chamava de “mais-valia” está o segredo do lucro capitalista. É o que faz com que, quando o capitalista vende suas mercadorias no mercado, possa fazê-lo por um valor maior do que lhe custou colocar em movimento os meios de produção, as matérias-primas e a força de trabalho. Não é o capital que cria trabalho, mas a força de trabalho que permite ao capital se reproduzir em uma escala ampliada.

A magnitude da força de trabalho não paga de que os capitalistas se apropriam não é uma abstração, pode ser calculada pelo menos aproximadamente. Por exemplo, na Argentina em 2021, no setor privado, os números macroeconômicos indicam que, após deduzir todos os outros custos de produção, o trabalho pago por meio dos salários representou em média 39% do total da jornada de trabalho e o trabalho não pago (o que fica com o empresário) constituiu os 61% restantes 1 . Para que esse mecanismo funcione, o capital precisa que a força de trabalho seja considerada como mais uma mercadoria, como um insumo como são as matérias-primas, os edifícios, as máquinas. O trabalhador seria “capital humano”. Mas a força de trabalho não é uma mercadoria qualquer, é a única capaz de gerar novo valor. É a única capaz de “vivificar”, de colocar em movimento todo o “trabalho morto”, ou seja, o trabalho passado acumulado contido nas máquinas e no sistema técnico-científico.

A concepção da sociedade como um conjunto de indivíduos isolados em competição uns com os outros remonta às origens da burguesia, o neoliberalismo apenas radicalizou essa ideia. Sob essa ótica, o indivíduo se torna sujeito racional através do reconhecimento da possibilidade de maximizar suas capacidades e gerir suas condutas a fim de obter o maior benefício com os menores custos. A funcionalidade dessa ideia do ponto de vista do capital é ótima, pois fomenta a competição entre os trabalhadores e evita o questionamento dos privilégios dos capitalistas. No entanto, esse tipo de individualismo burguês é a representação mais elementar e ideológica de uma base coletiva que não é assumida conscientemente, mas sem a qual o capitalismo e a sociedade como a conhecemos não poderiam existir. Sua força fundamental é a cooperação, que hoje em dia atingiu níveis nunca antes vistos na história.

A força produtiva e criadora da cooperação

O capitalismo precisou e precisa se apropriar da cooperação dos trabalhadores como força produtiva essencial. A cooperação em sua acepção mais elementar é, como define Marx em “O Capital”: “a forma de trabalho de muitos operários coordenados e reunidos conforme um plano no mesmo processo de produção ou em processos de produção distintos, mas entrelaçados”. A cooperação não tende apenas a potencializar a força produtiva individual, mas cria “uma força produtiva nova”. É a força do trabalho social através da qual o trabalhador ou a trabalhadora supera suas limitações individuais e desenvolve uma capacidade de criação superior.

A cooperação em sua forma simples coincide com a produção em grande escala. Historicamente, com o desenvolvimento da manufatura, aparece a cooperação baseada na divisão do trabalho e na combinação de trabalhos parcializados. Com a grande indústria, a grande maquinaria aparece como fator objetivo que torna indispensável a cooperação, funcionando apenas com o trabalho diretamente coletivo. A respeito disso, Marx aponta que:

Na cooperação simples, e mesmo na que se torna especificada devido à divisão do trabalho, o deslocamento do trabalhador isolado pelo operário socializado continua sendo algo mais ou menos casual. A maquinaria […] só funciona nas mãos do trabalho diretamente socializado ou coletivo. O caráter cooperativo do processo de trabalho, portanto, se torna uma necessidade técnica ditada pela própria natureza do meio de trabalho. 2 

Em termos gerais, essa força produtiva do trabalho social que surge da cooperação produz quantidades maiores de valores de uso com menor tempo de trabalho do que a soma de cada uma das jornadas de trabalho individual incluídas no processo. Dessa forma, diminui o tempo de trabalho necessário para obter um determinado produto. Ou seja, contém a potencialidade de liberar tempo vital dedicado ao trabalho como imposição para a subsistência e transformá-lo em tempo disponível e livre para o trabalhador e a trabalhadora.

No entanto, a cooperação dos trabalhadores assalariados em nossa sociedade tem como condição a concentração de grandes massas de meios de produção (fábricas, máquinas, terras, etc.) nas mãos de cada capitalista. Graças ao fato de possuir esses meios de produção sociais, é o capitalista quem reúne os trabalhadores e lhes impõe despoticamente os métodos de produção e seu próprio plano produtivo a fim de maximizar seu lucro. Como dizia Marx: “O comando supremo na indústria se transforma em atributo do capital, assim como na época feudal o comando supremo na guerra e na justiça era atributo da propriedade territorial”. 3 

A partir desse esquema, as formas de cooperação foram se modificando historicamente de acordo com os diferentes modos de organização do trabalho impostos pelos capitalistas. No modelo do fordismo (linha de montagem, produção em série, padronização, controle rígido dos ritmos de trabalho, etc.), que se impôs a partir das primeir as décadas do século XX, o trabalhador é concebido como uma espécie de objeto mecânico que deve acompanhar o ritmo da linha de produção sem pensar. Depois veio o modelo do toyotismo, que se difundiu a partir da década de 1970 e impôs a ideia do trabalhador flexível, da “polivalência”, propondo explorar as capacidades do trabalhador para resolver problemas, trabalhar em equipe (através dos “círculos de trabalho”), assim como seus conhecimentos. Dessa forma, envolveu também a subjetividade do trabalhador para aumentar o nível de exploração. Assim, com diversos métodos, os capitalistas foram expropriando e extraindo cada vez mais ampla e sofisticadamente a potência da cooperação da classe trabalhadora.

A reestruturação capitalista das últimas décadas foi apresentada como um processo de descentralização através da terceirização e do aumento do trabalho precário. Mas, na realidade, esses fenômenos andaram de mãos dadas com uma maior concentração e centralização do capital em quase todos os âmbitos da produção de bens e serviços 4  . No contexto da chamada globalização, houve um salto significativo na cooperação a nível local, regional e global. Longe de ter gerado uma sociedade “pós-industrial”, criou o que podemos chamar, seguindo Corsino Vela, de um “fordismo disperso” 5  . Cada vez mais aspectos da produção estão interligados em cadeias de suprimentos “just in time”. Ligado a isso, houve uma “revolução na logística” com enormes centros de transporte, grandes armazéns e centros de distribuição, aerotrópoles, portos em uma escala muito maior, redes de transporte intermodal que concentram dezenas de milhares de trabalhadores em espaços geográficos adjacentes às grandes áreas metropolitanas.

A eficácia produtiva da cooperação cresce com sua complexidade. Nunca antes a sociedade a nível global dependeu tanto da força produtiva da cooperação, nem esta tinha adquirido a escala que tem atualmente. No entanto, essa enorme potência da cooperação do trabalhador coletivo, sob a direção despótica dos capitalistas, se transforma para os trabalhadores e trabalhadoras em uma imposição externa cujo principal objetivo é o lucro do capitalista. O fundamento disso é que a cooperação surge no mesmo momento em que o trabalhador perde sua liberdade pelo tempo de duração da jornada de trabalho ao vender sua força de trabalho ao capitalista. Assim, a cooperação se apresenta ao trabalhador como uma propriedade alheia de um poder que o domina. Mas não é assim de fato.

O mesmo ocorre com a força produtiva do general intellect ou conhecimento social geral contido no desenvolvimento técnico-científico acumulado pela humanidade. Em meados do século XIX, em seus Grundrisse, Marx já ressaltava até que ponto as condições do processo de vida social haviam ficado sob o controle do general intellect e haviam sido remodeladas conforme ele. O desenvolvimento de máquinas, locomotivas, ferrovias, o telégrafo elétrico, etc. eram, segundo Marx, “órgãos do cérebro humano criados pela mão humana; força objetivada do conhecimento” que se transformavam em órgãos da vontade humana, mostrando até que ponto o conhecimento social geral havia se convertido em força produtiva 6  . Hoje, a esses “órgãos do cérebro humano” foram adicionados inúmeros desenvolvimentos que vão desde os microchips, os satélites, as redes de internet, até a genética, a robótica e a IA. O general intellect adquiriu dimensões que superam em muito as de toda a história anterior.

No entanto, como também apontou Marx, “a acumulação do saber, da habilidade, assim como de todas as forças produtivas gerais da inteligência social, agora são absorvidas pelo capital que se opõe ao trabalho: elas aparentam ser uma propriedade do capital ou, mais exatamente, capital fixo” 7 . Sob o capitalismo, o conhecimento social geral se transforma em propriedade privada desde sua própria gênese. Legiões de cientistas e técnicos povoam os departamentos de “pesquisa e desenvolvimento” das grandes corporações. Seus produtos passam a ser propriedade do capitalista – individual ou coletivo – que os encerra dentro da medida miserável do lucro, limitando sua difusão potencialmente livre com meios jurídicos (patentes, licenças, etc.). Depois, permanece encerrado nessa propriedade quando se objetiva em capital fixo aplicado à produção. Muitas vezes, é também aplicado a fins militares, transformando o que eram forças produtivas em forças de destruição. Em todos os casos, o general intellect se enfrenta ao trabalhador coletivo como algo alheio.

Contra o discurso hegemônico, que une liberais e peronistas, sobre a impossibilidade de superar o capitalismo naturalizando essa expropriação, a possibilidade do socialismo se baseia, justamente, em assumir conscientemente a potência da cooperação, assim como do general intellect, e recuperá-la para a classe trabalhadora das mãos dos capitalistas. Dessa forma, é possível apropriar-se coletiva e democraticamente das possibilidades técnicas e sociais, ao mesmo tempo em que refuncionalizá-las 8  para reduzir o tempo de trabalho e minimizar as tarefas repetitivas e unilaterais, bem como para socializar o trabalho reprodutivo, retirando-o do âmbito privado onde se sustenta no trabalho não pago das mulheres, e conquistar uma relação equilibrada com a natureza.

Nisso reside a base para construir uma sociedade onde os produtores se associem livremente, trabalhem com meios de produção coletivos e unam suas forças individuais como uma grande força de trabalho social. Nunca na história esteve tão colocado, do ponto de vista do desenvolvimento da cooperação e do general intellect, a possibilidade de avançar em um projeto socialista desse tipo.

Cooperação, poder constituinte e revolução

A potência da cooperação não se refere apenas à produção e reprodução econômica da sociedade, mas também é o substrato político do poder constituinte da classe trabalhadora, aquele que fundamenta a pretensão do Manifesto Comunista de que se transforme na classe dirigente da sociedade. A questão aqui é como a classe trabalhadora pode liberar aquela potência da cooperação que lhe é própria para desdobrá-la como poder constituinte de uma nova sociedade.

Uma das investigações mais sistemáticas sobre esse problema foi realizada pelo intelectual e político autonomista italiano Tony Negri em seu livro O poder constituinte 9 ... Em um de seus capítulos, ele analisa O capital de Marx, buscando os mecanismos pelos quais a cooperação produtiva se torna sujeito político e sua potência produtiva se transforma em poder constituinte. Ele encontra um ponto de partida nas páginas em que Marx estuda as lutas pela redução da jornada de trabalho. Ali, o poder de mando do capitalista e a cooperação do trabalhador coletivo se apresentam um contra o outro, cada um expressando “seu” direito. O “direito” do capitalista consiste em utilizar pelo máximo tempo possível a força de trabalho que comprou. Mas qual é o direito dos trabalhadores quando lutam para reduzir a jornada de trabalho? A isso Negri responde que:

“É uma tentativa de reapropriação contra a expropriação, é a pretensão de que a organização da produção pode ser pensada através da cooperação, da igualdade, da inteligência. É a ideia de que a potência produtiva não pode ser alienada, mas que, pelo contrário, deve se transformar em poder constituinte, continuamente aberto e desenvolvido.” 10 

Sob essa perspectiva, Negri vê na abordagem de Marx sobre as lutas pela duração da jornada de trabalho a indicação de um novo processo constitutivo instalado na potência da cooperação, na subjetividade da classe operária. Nessas lutas pode-se notar como um poder constituinte baseado na cooperação se torna uma força material, já que, como assinalava Marx: “Somente a rebeldia da classe operária, cada vez mais acirrada, obrigou o Estado a reduzir à força a jornada de trabalho…”. Para Negri, isso explica que possamos encontrar em O capital de Marx o esboço de uma nova teoria do poder constituinte e a definição das condições formais do processo antagônico que decorre da cooperação. De um ponto de vista, ele tem razão.

Quando Marx e Engels diziam que o comunismo é “o movimento real que anula e supera o estado de coisas atual”, seu ponto de partida tinha muito a ver com isso. Este movimento real parte da luta constante da classe operária para sacudir o jugo do trabalho que se manifesta espontaneamente na resistência surda de todos os dias: a tentativa de roubar minutos do patrão e da máquina ou no absenteísmo. Esta mesma tendência se expressou e se expressa a um nível superior nas lutas históricas pela redução da jornada de trabalho e da semana de trabalho, por férias pagas, por diminuir os ritmos de produção, pela organização no local de trabalho contra a ditadura patronal, pelo controle operário da produção. São expressões de uma tendência profunda a rejeitar o comando do capital e reafirmar a cooperação como potência da classe trabalhadora.

No entanto, este é apenas o início, já que aquelas tendências, embora mostrem a potencialidade para isso, não subvertem a expropriação da cooperação pelo capital. Ao contrário do que sustenta Negri, a força produtiva da cooperação não é nem livre nem imediatamente constituinte, enquanto, como assinalava Marx, se encontra dominada pelo capital. A potência da cooperação só pode se desdobrar como ruptura, como potência revolucionária frente ao capital que monopoliza os meios de produção sem os quais a cooperação atual seria impossível. O que muitos teóricos, entre eles Negri 11 , apresentaram como o advento de uma sociedade pós-industrial onde o trabalho se tornou “imaterial”, tornando mais ou menos supérflua a propriedade dos meios de produção, é expressão de uma realidade muito diferente.

O capitalismo enfrenta, há décadas, uma crescente impossibilidade de encontrar espaços de acumulação rentáveis na produção, o que se traduz em sua crescente dependência da especulação financeira e da “acumulação por despossessão”, ou seja, o saque. A acumulação capitalista baseada na apropriação do tempo de trabalho excedente como mais-valia torna-se cada vez mais crítica e é uma fonte permanente de crises 12 . O que isso expressa é a crescente incapacidade do sistema de conter, dentro dos estreitos limites da produção para lucro, as enormes forças produtivas da cooperação e do intelecto geral que se desenvolveram na sociedade. Historicamente, quando isso acontece, o capitalismo dá lugar a crises catastróficas ou guerras que destroem massivamente forças produtivas. Daí que situações do capitalismo mundial como a atual não tenham saída progressista por fora da perspectiva de novas rupturas revolucionárias que levem a classe trabalhadora ao poder para se apropriar dos meios de produção e arrancar a cooperação do comando do capital.

Nessa luta, a primeira e principal ação autônoma da classe trabalhadora passa por se libertar da influência política e ideológica da burguesia e construir sua própria organização política revolucionária para recuperar as potências que lhe foram expropriadas. Claro que seria ilusório pensar que, sob as relações capitalistas que descrevemos, toda a classe em bloco possa se desprender daquela influência. Por isso, a construção de um partido que lute pela revolução socialista agrupa, em primeiro lugar, os setores mais conscientes e decididos da classe. É em situações revolucionárias, quando a consciência das massas varia vertiginosamente, que um partido desse tipo pode adquirir influência sobre a maioria da classe e dos setores oprimidos. São justamente esses momentos onde irrompe o poder constituinte dos explorados.

Democracia dos conselhos, planejamento econômico e hegemonia

No século XX, os conselhos ou soviets – segundo a transliteração do russo – emergiram como forma inovadora daquele poder constituinte. Foram um produto genuíno da criatividade política da classe trabalhadora. Expressaram uma nova prática potencialmente antagônica à prática burguesa da política. Sua estrutura flexível e elástica, com deputados revogáveis eleitos a partir do tecido que constitui a produção e reprodução da sociedade – hoje diríamos as fábricas, as empresas, os escritórios, os campos, os hospitais, as escolas, as universidades, entre outros – permite articular as diversas reivindicações e formas de luta para criar um poder alternativo.

Organismos desse tipo não se desenvolveram apenas na Rússia (1905 e 1917), mas também na Alemanha com os räte (1918), na Itália com os conselhos de fábrica (1919-1920), na Revolução Húngara (1956) com os conselhos de operários e camponeses, na Revolução Portuguesa (1974) com os comitês de fábrica, inquilinos e soldados, na Revolução Iraniana (1979) com os shoras, no Chile com os Cordões Industriais (1972-1973), entre muitos outros. As Coordenadoras Interfabriles da Argentina em 1975 expressaram, em menor medida, a mesma tendência. No entanto, essas expressões do poder constituinte estiveram submetidas, em todos os casos, a uma enorme pressão, não apenas repressiva, mas também de assimilação dentro dos regimes burgueses. Mostrou-se indispensável a ação de um partido revolucionário para impulsioná-los além e transformá-los em verdadeiras instituições revolucionárias.

Ao contrário da democracia capitalista, que estabelece a separação entre um conceito formal de democracia política enquanto deixa a economia sujeita ao comando despótico do capital, a democracia dos conselhos liga a democracia política à emancipação econômico-social. Em O poder constituinte, Negri assinala com razão que: “Depois de Marx e Lenin não é possível falar de liberdade política sem falar de liberdade econômica, de livre produção, do trabalho vivo como fundamento político. A liberdade se tornou libertação, a libertação é poder constituinte” 13 . Já não pode haver democracia política que não seja democracia econômica, que não seja reapropriação do poder constituinte pelas massas nos mecanismos de produção e de reprodução social. A pergunta é como produzir essa reapropriação que conjuga democracia política e econômica.

O socialismo não surge preformado das entranhas do capitalismo. Toda revolução socialista triunfante em um país ou grupo de países nasce condicionada no tempo – por uma situação econômica, política e social herdada – e no espaço – rodeada de um mundo capitalista. Daqui surge a necessidade de um período transitório entre o capitalismo e o socialismo para a transformação da vida econômica, política, social e cultural, bem como para sua extensão internacional. Durante esta transição, especialmente nos países atrasados, enquanto não houver triunfos revolucionários em países centrais, um Estado dos trabalhadores precisa que a planificação econômica possibilite desenvolver as forças produtivas acima de certo patamar que permita satisfazer as necessidades fundamentais da sociedade e avançar na redução significativa da carga de trabalho.

Essa problemática coloca uma determinada relação entre os soviets como forma prática da democracia proletária e o partido revolucionário como operador estratégico em direção aos objetivos socialistas. A propósito de como Lênin abordou este problema durante a Revolução Russa, Negri propõe a ideia de um “compromisso leninista” entre soviet e partido que vale a pena retomar. “O compromisso entre o soviet e o partido – diz ele – é um compromisso entre o trabalho vivo e a perspectiva de uma nova acumulação primitiva, que deveria desembocar na determinação das condições do comunismo” 14 . Em sua opinião, aquele compromisso se transformou rapidamente em curto-circuito devido à institucionalização dos soviets como organizadores da produção, reproduzindo sob novas formas as “normas da empresa” associadas ao comando “de cima” da cooperação do trabalho para poder enfrentar as necessidades daquela “acumulação primitiva”. Embora Negri não aborde isso, esse foi um dos debates centrais na URSS após a morte de Lênin e tinha termos muito mais amplos que incluíam, como elemento crítico, a relação entre o campesinato e a classe operária.

Há três respostas para o problema levantado, que tiveram sua expressão no debate soviético dos anos 1920. Os fundamentos de cada uma delas podem ser encontrados respectivamente nos desenvolvimentos de Bukharin, de Preobrajenski e de Trotski. A Revolução Russa estava isolada após a derrota do ciclo revolucionário na Europa Ocidental (1918-1923). Precisava superar, não apenas o peso do atraso e os resquícios feudais, mas as consequências de quatro anos de guerra mundial e três anos de guerra civil. Nesse contexto, a partir de 1921, adotou-se a Nova Política Econômica (NEP). Concebida por Lênin como uma “retirada forçada”, a NEP restabeleceu parcialmente o livre comércio e a economia monetária. O objetivo era aumentar a produção e a troca entre o campo e a cidade para enfrentar a difícil situação econômica. Mas seus efeitos eram contraditórios, pois possibilitavam a acumulação entre os camponeses mais ricos, introduzindo uma cunha na aliança entre o campesinato e a classe trabalhadora 15 .

Para Bukharin, a simples destruição do Estado burguês bastava para assegurar a superioridade da indústria “socialista” em sua competição com o setor privado. Nesse contexto, o desenvolvimento de mecanismos de mercado dentro da URSS melhoraria a cooperação, dando impulso à transição para o socialismo. Ele afirmava: “Não chegaremos diretamente ao socialismo através do processo de produção; chegaremos através da troca, através da cooperação” 16 . Havia nesse argumento um apelo à cooperação espontânea independentemente de sua relação com o capital. Bukharin rejeitava que o novo Estado devesse ter entre suas prioridades aumentar a produtividade da indústria, sua consigna era “industrialização a passo de tartaruga”. Junto com isso, apelava aos incentivos espontâneos para a acumulação – possibilitados pela NEP – sob a consigna “camponeses, enriqueçam-se!”.

Para Preobrajenski, autor de A Nova Economia (1925), a prioridade era desenvolver uma “acumulação primitiva socialista” que permitisse contrabalançar as bases econômicas atrasadas como condição para avançar na transição para o socialismo. Ele opinava, com razão, como posteriormente se demonstrou, que a ação espontânea da economia mediante o desenvolvimento das relações de mercado implicava um inevitável crescimento da diferenciação social no campo e que a minoria de camponeses enriquecidos pela NEP se voltaria contra o Estado. Para evitar isso, propunha um forte processo de industrialização que aumentasse a produtividade do trabalho impulsionado pelo Estado, tomando recursos dos camponeses ricos e lhes dando como compensação maquinaria, eletrificação, redes de transporte, etc., de que necessitavam. Isso se traduzia em maiores impostos para os camponeses com capacidade de produzir excedentes e apoio estatal para favorecer o camponês pobre.

No entanto, nem Bukharin nem Preobrajenski eram apenas teóricos. O primeiro, entre 1925 e 1928, esteve à frente da URSS em aliança com Stalin. Sua política foi a que efetivamente se aplicou durante esse período. Coincidiu com os anos de consolidação da burocracia – no Estado e no partido – após a liquidação da democracia soviética e com o abandono da perspectiva internacionalista em favor da ideia de que o socialismo poderia ser construído em um só país. Por sua vez, Preobrajenski foi um destacado dirigente da Oposição de Esquerda, internacionalista e defensor da democracia soviética. No entanto, quando em 1928 sua predição se cumpriu e os camponeses ricos pararam de vender grãos às cidades, viu no giro político de Stalin, que passou do “camponeses, enriqueçam-se” à coletivização forçada da terra mediante repressão, uma política necessária que deveria ser apoiada apesar de seus métodos. Sob o argumento da necessidade, rompeu com Trotski e capitulou diante de seu antigo perseguidor.

Como dissemos, houve uma terceira resposta, que foi a de Trotski. Sua oposição à política de Bukharin era total e ele compartilhava grande parte do diagnóstico feito por Preobrajenski. O Estado deveria agir sobre a situação econômica através da planificação, fortalecendo a indústria e o proletariado por meio de algum tipo de transferência de recursos dos setores mais ricos do campesinato. “Em última instância – afirmava Trotski – a classe operária pode manter e fortalecer seu papel dirigente, não mediante o aparato do Estado ou o exército, mas através da indústria que dá origem ao proletariado” 17 . No entanto, e essa era a chave que o diferenciava das outras duas alternativas, ele concebia a planificação intimamente ligada ao desenvolvimento das tendências democráticas e de auto-organização da classe operária. Essa era a única base sobre a qual poderia se estabelecer uma planificação que preservasse a hegemonia da classe trabalhadora. Como afirmará em A Revolução Traída: “A arbitrariedade burocrática deverá ceder lugar à democracia soviética. O restabelecimento do direito de crítica e de uma liberdade eleitoral autêntica são condições necessárias para o desenvolvimento do país” 18 .

Trotski defendia assim, nas condições particularmente adversas do isolamento da URSS, aquele “compromisso leninista” entre soviet e partido. Embora este último devesse lutar constantemente pelos objetivos estratégicos da revolução socialista, o que implicava fortalecer o proletariado e impulsionar a acumulação até o ponto de tornar materialmente possível continuar a transição, não se tratava de fazê-lo de qualquer modo. As medidas necessárias para isso deveriam ser realizadas através da confrontação política, persuasão e negociação diante das massas em conselhos como organismos democráticos do Estado e sempre vinculadas à perspectiva de desenvolver internacionalmente a revolução. Daí que, precocemente, desde os primeiros êxitos da NEP, Trotski propusesse o aumento do investimento na indústria através de impostos progressivos aos camponeses ricos para antecipar o agudo conflito que se avizinhava no horizonte e que, quando Stalin, anos depois, atacou os camponeses ricos para impulsionar o desenvolvimento da indústria, denunciou sua política como aventureira e burocrática.

Tony Negri critica que sob o “compromisso leninista”, “o soviet tende a se reduzir a um instrumento democrático de ‘organização do consenso’” em vez de se configurar como um momento do processo de extinção do Estado. No entanto, no pensamento de Lênin e de Trotski, ambos os aspectos andam de mãos dadas. Sem a organização do consenso para levar adiante as medidas necessárias para o avanço em direção ao socialismo, não há via possível para a extinção do Estado.

Um futuro além do capitalismo

O que expusemos nessas páginas mostra que, ao contrário dos relatos místicos sobre o indivíduo isolado empreendedor como força motriz da sociedade, o individualismo que se manifesta na apropriação individual da riqueza se tornou anacrônico na mesma medida em que a produção da riqueza se socializou cada vez mais. Retomando Gramsci, um novo individualismo proporia um tipo diferente de tensão de vontades da mesma natureza que determina o renascimento do indivíduo dentro da “coletividade” 19 . Ou seja, desenvolvido a partir da autogestão da vida coletiva, onde o indivíduo não se limita a aceitar passivamente a marca que lhe impõem, de fora, relações sociais inconscientemente assumidas e passa a ser protagonista consciente do governo e da planificação do coletivo.

Em termos de desenvolvimento da cooperação e do intelecto geral, nossas coordenadas estão a anos-luz das que existiam há um século. A perspectiva apontada por Marx de que “já não [seja], de forma alguma, o tempo de trabalho, a medida da riqueza, mas o tempo disponível” 20  é mais atual do que nunca. Mas a questão, antes como agora, passa por libertá-la das cadeias que o capital lhe impõe.

O tempo de trabalho como única medida da riqueza não é mais que uma imposição miserável que se sustenta – de forma cada vez mais crítica, provocando crises econômicas e políticas, destruição ecológica e guerras de magnitude crescente – pela persistência da dominação capitalista. Não há nada de “inevitável” na apropriação pelo capital do tempo disponível em forma de mais-valia. Tampouco há algo “natural” na produção de uma população excedente (desempregados, subempregados, etc.) que oferece tempo de trabalho disponível como alavanca para assegurar uma oferta e demanda de força de trabalho favorável ao capital. A alternativa a isso é que a classe trabalhadora se aproprie ela mesma de seu próprio trabalho excedente para convertê-lo em “tempo livre”, em tempo de ócio, uma palavra que, por razões óbvias, a “ética” do capitalismo sempre buscou degradar, mas que inclui – e de fato é o que torna possível – entre outras coisas, o desenvolvimento da cultura, da ciência e da arte e até mesmo o próprio exercício democrático da política para os trabalhadores e as trabalhadoras.

Daqui surge a atualidade da perspectiva internacionalista da revolução socialista, da construção de um poder próprio dos trabalhadores que arranque os meios de produção e de troca das mãos dos capitalistas e os coloque a serviço das necessidades das grandes maiorias e da redução ao mínimo do trabalho como imposição. Contra o individualismo anacrônico e reacionário do proprietário capitalista, trata-se de expandir a fraternidade, o companheirismo e a solidariedade humana que residem, como fundamento último, no poder da cooperação. O objetivo é poder libertar para sempre as faculdades criadoras do ser humano, as relações pessoais, a ciência, a arte de todas as amarras, limitações ou dependências humilhantes e alcançar uma relação mais harmônica com a natureza. É nisso que consiste o projeto socialista.

 

NOTAS

1. Este cálculo é desenvolvido em: Pablo Anino “O tesouro do tempo da obra divina”. Desde 2016, os capitalistas têm melhorado esta relação, com um primeiro salto desde o acordo com o FMI em 2018 sob Macri e um segundo salto em 2021 sob o governo de Alberto e Cristina. Um dos principais objectivos do plano Milei é expandir qualitativamente a proporção deste trabalho não remunerado apropriado pelo capital.

2. Karl Marx, El capital, Tomo I / Vol. 2, México, Siglo XXI.p. 470.

3. Karl Marx, El capital, ob. cit., p. 404.

4. Kim Moody, On new terrain, Chicago, Haymarket Books, 2017.

5. Corsino Vela, Capitalismo terminal. Anotaciones a la sociedad implosiva, Traficantes de Sueños, Madrid, 2018.

6. Marx, Karl, Elementos fundamentales para la crítica de la economía política (Grundrisse) 1857-1858, Tomo 2, México, Siglo XXI, 1997, p. 230.

7. Marx, Karl, Elementos fundamentales para la crítica de la economía política (Grundrisse) 1857-1858, ob. cit., p. 220.

8. Para um desenvolvimento sobre os debates em torno deste ponto, ver: Facundo Nahuel Martín, Ilustración sensible, Buenos Aires, IPS, 2023. También: Esteban Mercatante, “La ecología de la emancipación del trabajo”.

9. Para um debate mais de conjunto em torno deste livro, ver: Ver: Christian Castillo, “Una crítica marxista a Toni Negri y los autonomistas”

10. Tony Negri, El poder constituyente, Madrid, Traficantes de sueños, 2015, p. 338.

11. Imperio, escrito junto a Michael Hardt, foi um de seus livros mais populares onde desenvolveu esta tese. Para uma crítica de conjunto às posições de Negri, ver: Christian Castillo Estado, poder y comunismo, Buenos Aires, Imago Mundi, 2003.

12. Para uma polêmica com Tony Negri sobre este ponto, ver: Paula Bach, “Valor, forma y contenido de la riqueza en Marx y en Antonio Negri: Una diferencia sutil pero esencial”.

13. Tony Negri, El poder constituyente, ob. cit., p. 383

14. Ibídem, p. 372.

15. Isto implicou o enriquecimento de uma minoria sobre a grande maioria da população. Ao mesmo tempo, a baixa produtividade da indústria encarecia seus produtos, desestimulando o campo a realizar trocas com as cidades. Este fenômeno foi denominado “tesoura”, marcando um desequilíbrio crescente potencialmente explosivo entre o campo e a indústria.

16. Citado em Catherine Samary, “Planificación, mercado y democracia”, Cuadernos de estudio e investigación N° 7/8, 1989.

17. León Trotsky, “Tesis sobre la industria” (1923) en Naturaleza y dinámica del capitalismo y la economía de transición, Buenos Aires, Ediciones IPS-CEIP, 1999.

18. León Trotsky, “La revolución traicionada”, La revolución traicionada y otros escritos, Buenos Aires, Ediciones IPS-CEIP, 2014 p. 236.

19. Gramsci, Antonio, “Introducción al estudio de la filosofía”, Cuadernos de la Cárcel, Tomo 5, México, Ediciones Era, 1999, p. 201.

20. Marx, Karl, Elementos fundamentales para la crítica de la economía política (Grundrisse) 1857-1858, ob. cit., p. 231.

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