Revista Casa Marx

“Para além da poesia” e “Homoíne”: os horizontes em fogo das poesias africanas na segunda metade do séc. XX

Bianca Coelho

Neste texto, analisamos o poema “Para além da poesia”, do angolano Agostinho neto, buscando dar um panorama da produção artística do imediato pré-guerras de libertação (e o caldo cultural que vinha se formando em questionamento ao colonialismo), e ao final analisamos o livro “Homoíne”, do moçambicano Eduardo White, que vai discutir o período pós-independência (e as contradições desse período).

As décadas de colonização na época imperialista tornaram a África um dos centros da luta de classes do pós-segunda guerra. Buscando conter e evitar as revoltas do povo negro, que nunca parou de se rebelar contra o colonialismo e a exploração, as metrópoles França e Inglaterra tiveram de reconhecer formalmente a independência da maioria de suas colônias, embora ainda mantivessem um status dependente. O Império Português, decadente desde as Grandes Navegações e em plena ditadura salazarista, se agarrava às suas colônias africanas para manter a ilusão de ser uma potência. 

Essa ilusão caiu por terra com as heroicas guerras de libertação nacional que se iniciaram na década de 1960 em países como Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Frente a intransigência do regime colonial português, os processos de emancipação assumiram a forma principal de lutas armadas de guerrilha, com a conquista de extensas zonas rurais chamadas de “zonas libertadas”. Durante os quinze anos de guerra de libertação, houveram greves e formas espontâneas de resistência, mas foi sobretudo pela via militar em zonas rurais conquistadas que os movimentos independentistas consolidaram seu poder. Neste texto, nos interessa analisar um poema que busca dar um panorama da produção artística desse momento do imediato pré-guerras de libertação (e o caldo cultural que vinha se formando em questionamento ao colonialismo), e ao final outro poema que vai discutir o período pós-independência (e as  contradições desse período).

“Para além da poesia”: pré-guerras de libertação e a Casa dos Estudantes do Império

A poesia e a literatura foram dimensões orgânicas do processo de formação das lideranças africanas que protagonizaram as revoluções de independência em seus países, exercendo um papel inseparável da ação política e da estratégia desenvolvida por eles. Esse entrelaçamento entre escrita e militância permeia obras como a de Agostinho Neto, poeta e dirigente político, figura central — profundamente controversa, como explicaremos aqui — da história angolana. Analisemos a seguir seu poema “Para além da poesia”, escrito pouco antes do início da guerra de libertação em Angola. 

Para além da poesia

Lá no horizonte
o fogo
e as silhuetas dos embondeiros
de braços erguidos
No ar o cheiro verde das palmeiras queimadas

Poesia africana

Na estrada
A fila de carregadores bailundos
gemendo sob o peso da crueira
No quarto
a mulatinha de olhos meigos
retocando o rosto com rouge e pó-de-arroz 

A mulher debaixo dos panos fartos remexe as ancas
Na cama o homem insone pensando
em comprar garfos e facas para comer à mesa

No céu o reflexo do fogo
e as silhuetas dos homens negros batucando
de braços erguidos
No ar a melodia quente das marimbas

Poesia africana

E na estrada dos carregadores
no quarto a mulatinha
na cama o homem insone

Os braseiros consumindo
consumindo
a terra quente dos horizontes em fogo.

in “Sagrada Esperança”, Agostinho Neto, Obra Poética Completa, página 43 1 

É interessante o cenário descrito na primeira estrofe: há um horizonte em chamas, em que se vê a silhueta de “embondeiros de braços erguidos”. “Embondeiros” são grandes árvores presentes em várias regiões do continente africano, e são tradicionalmente um símbolo de acolhimento, sociabilidade, negociação e coletividade. É sob essas árvores que costumam ocorrer assembleias e cerimônias; elas oferecem sombra e são espaços de encontro comunitário. Essas árvores são personificadas neste cenário, descritas como figuras quase humanas, afinal estão de “braços erguidos” em meio ao fogo, uma postura que parece ambígua: são braços erguidos em posição de “rendição” diante do incêndio ou de resistência? Sigamos com a análise do poema para responder a essa questão.

É interessante verificar que o poema é composto pelo que parecem ser recortes que focalizam, em vários cenários, elementos típicos que representariam opressões na sociedade angolana: a fila de trabalhadores sendo explorados à exaustão; a mulatinha que retoca o batom rouge e passa o pó de arroz, que pode remeter à prostituição infantil ou mesmo à imposição de padrões estéticos ocidentalizados; há também o homem insone, preocupado em comprar garfos e facas, o que , no contexto colonial, passa a simbolizar modernidade, “civilização” e ascensão social — os talheres são um “white material” que marca a integração a valores coloniais de modernidade. São recortes metonímicos que buscam, através de algumas partes, construírem uma imagem de um todo. Estes recortes juntos vão montando um mosaico no poema, um mosaico de cenas opressivas típicas da opressão colonial, cenas que estão se queimando, como vamos analisar. 

Antes de entrarmos nesse aspecto do incêndio, vale nos determos neste mosaico de recortes do cenário. Este é um recurso poético bastante característico da arte moderna para a descrição do espaço, lembrando aspectos do cubismo. Segundo Anatol Rosenfeld, no texto “Reflexões sobre o romance moderno” 2 , a arte moderna vai buscar romper com uma arte que projetava o espaço em “perspectiva”. O princípio da perspectiva criava:

a ilusão do espaço tridimensional, projetando o mundo a partir de uma consciência individual. O mundo é relativizado, visto em relação a esta consciência, é constituído a partir dela; mas esta realidade reveste-se da ilusão do absoluto.  

Neste poema não há essa preocupação perspectívica de criar esse espaço tridimensional, pois vemos, quanto ao espaço, um mosaico de recortes que buscam tomar a parte pelo todo sem recorrer a minuciosas descrições do cenário. 

O advento da perspectiva na pintura e na arte como um todo a partir do Renascimento vinha de uma visão de que “já não é o mundo que prescreve as leis à nossa consciência, é esta que prescreve as leis ao mundo”. Ou seja, uma visão que coloca o indivíduo e sua consciência no centro. O século XX, porém, vai colocar em crise esse indivíduo todo-poderoso, diante de um cenário de crises econômicas e sociais, com duas guerras mundiais decorrentes do imperialismo e uma miséria absoluta nas colônias mesmo diante da prometida “modernização” do capitalismo, em que as massas, a classe trabalhadora e os povos oprimidos entram em cena na luta internacional, questionando a racionalidade e posição absoluta do indivíduo-burguês, e colocando em cena o sujeito social. É esse cenário que está impresso tanto na forma como no conteúdo deste poema. O artista moderno, assim, não acredita que seja possível construir uma realidade não ilusória através do recurso da perspectiva, e vai buscar outros recursos, como os que vemos aqui. 

Interessa verificar também o aspecto temporal do poema. Nestas cenas, as ações remetem a rotina e repetição de um cotidiano oprimido prestes a irromper,  indicando um estado cíclico, tendo até repetição (e subtração) nas cenas na penúltima estrofe “na estrada”, “no quarto”, “na cama” (o que depois veremos que é uma estagnação relativa, que está se rompendo). Apesar das cenas cíclicas, o poema mira o “horizonte” no aspecto espacial mas também temporal, referindo-se a um futuro.

Apesar das estruturas, que parecem estar estagnadas e cíclicas, há uma ação está ocorrendo: o  fogo “consumindo/ consumindo”, que vai queimando os “embondeiros”, a fila de trabalhadores sendo explorados, a mulatinha etc. Tudo desse cenário opressivo se queima, como os próprios versos também, em que as estrofes parecem imitar um incêndio: começam com versos curtos, que vão aumentando de tamanho e tomando um ritmo mais rápido, até que são cortados bruscamente pelos versos “Poesia africana”. E por que o eu-lírico insiste em repetir esses versos? O que este poema incendiário das estruturas opressivas tem a dizer sobre o que é a “poesia africana”? O poema busca trazer uma reflexão metalinguística nesse sentido que vale refletir.

Há um caráter distintivo da poesia africana moderna com relação à lírica moderna em geral. Sobre esta última, Hugo Friedrich 3 , analisa que seria uma poesia bastante marcada por evitar uma “intimidade comunicativa” (ou seja, evitar uma comunhão de sentimentos com o outro), sendo uma poesia que em geral busca causar estranhamento, não apenas no conteúdo, mas sobretudo na forma, que em muitos casos se torna de difícil compreensão. É uma arte com caráter bastante metalinguístico também, que reflete sobre o próprio fazer artístico. 

Em suas palavras, é uma arte marcada pela:

Interioridade neutra em vez de sentimento, fantasia em vez de realidade, fragmentos do mundo em vez de unidade do mundo, mistura daquilo que é heterogêneo, caos, fascinação por meio da obscuridade e da magia linguística, mas também um operar frio análogo ao regulado pela matemática, que alheia o habitual.

Esse caráter muitas vezes hermético, que dificulta a compreensão (às vezes tomando um aspecto “elitista” nesse sentido), por outro lado trazia um questionamento anti-burguês muito importante: a inovação estrutural e formal da lírica moderna cria um efeito poético de chacoalhar o sujeito moderno da “normalização” e acomodação com a vida habitual na sociedade capitalista, em que a burguesia buscava mascarar suas violências e exploração de classe.

A obra poética africana de resistência da segunda metade do século passado pode apresentar algumas dessas características, afinal é também moderna. Porém não seguiu de todo estes padrões, uma vez que vinha desentranhada de uma realidade em que, em primeiro lugar, a vida habitual não estava em nada “normalizada” e a exploração e as violências não vinham “mascaradas”: os grandes avanços econômicos e tecnológicos do capitalismo mundial eram alimentados pelas colônias onde se convivia com a mais absurda e arcaica degradação humana do trabalho forçado para a população negra. Como já analisa Roberto Schwarz (1977) 4  no caso brasileiro, o ideal “libertário” das revoluções burguesas europeias mostrava escancaradamente sua real face nas colônias, onde se garante a “liberdade, igualdade e fraternidade” apenas para a classe dominante, uma vez que o resto da população vive na mais profunda miséria e exploração. 

A consequência disso para as literaturas africanas desse período (e que permeou também diversos movimentos de arte engajada e “contracultura” no mundo todo 5 ) é que, em vez do estilo sombrio, fragmentário e hermético que Friedrich analisa para a lírica moderna, observa-se algo que se assemelha ao que Fanon (2005) diz no texto “Sobre a cultura nacional” 6 :

(…) estilo vibrante, pejado de imagens, porque a imagem é a ponte levadiça que permite que as energias inconscientes se espalhem pelas campinas circundantes. Estilo nervoso, animado de ritmos, de parte a parte habitado por uma vida eruptiva. Colorido, bronzeado, ensolarado. Esse estilo, que em sua época espantou os ocidentais, não é, como se insinuou, um caráter racial mas traduz antes de tudo um corpo-a-corpo, revela a necessidade em que se encontra esse homem de ferir-se, de deitar sangue realmente, sangue vermelho, de se livrar de uma parte de seu ser que já continha germes de podridão. Combate doloroso, rápido, no qual infalivelmente o  músculo devia substituir o conceito.

Esse estilo vibrante, nervoso, que “traduz antes de tudo um corpo-a-corpo”  ao qual Fanon se refere parece bastante com o que vemos neste poema de Neto. O poema parece dizer: a matéria de nossa produção artística, a nossa “poesia africana”, é justamente a combustão deste cenário opressor. Ao final, as silhuetas de árvores já não parecem nada “rendidas” como poderiam parecer na primeira estrofe, aparecem “silhuetas dos homens negros batucando / de braços erguidos”. O fogo não parece estar os queimando como na primeira estrofe, agora estão batucando e de braços erguidos, numa posição de ataque. “Batucando” em uma postura que se assemelha à de um batuque de guerra 7 , ou seja, uma música, uma arte, que se coloca a serviço da luta, como parece ser esse poema também. O título do poema, “Para além da poesia”, parece dialogar com o que Fanon afirma de “substituir o conceito” pelo “músculo”, com os intelectuais se inserindo diretamente nas guerras de libertação.

Essa inserção da intelectualidade nas guerras de libertação não se dá sem contradições. Foi o caso dos escritores africanos, como Agostinho Neto, que passaram pelo que se tornou um espaço de socialização anticolonial, a Casa dos Estudantes do Império em Portugal. Por iniciativa de estudantes angolanos, no ano de 1943, é criada em Lisboa, a Casa dos Estudantes de Angola. A iniciativa começa a ser replicada por outros jovens de outras colônias, o que preocupa o regime salazarista. A dispersão não só dificulta o controle dos associados como afrontava o ideal de unidade nacional além mar propagado pelo império. Assim, em julho de 1944, o ministério das Colônias funde todas as Casas dos Estudantes do Império 8 . A instituição se transformou em um ponto de encontro de estudantes provenientes das ex-colônias portuguesas, e desempenhou um papel fundamental na formação de uma nova elite intelectual e política. 

Estes estudantes eram parte de um grupo social particular, os “assimilados”, uma camada social que tinha acesso a escolarização superior e melhores condições de vida. O colonialismo buscava cooptar para si essa elite, no entanto os assimilados estavam em uma posição ambígua. Por um lado, eles eram vistos como modelos do colonialismo, cujas trajetórias educacionais e profissionais eram usadas para reforçar a ideia de que a colonização poderia levar à modernização das populações africanas. Por outro, alguns setores desta camada buscaram romper com essa condição, e utilizar o acesso ao conhecimento acadêmico para ajudar nos processos revolucionários. 

A literatura deste período é marcada pela tentativa desses intelectuais de se desvencilharem das amarras do colonialismo e por um “retorno ao seu povo”, como vemos neste poema. Esse retorno, porém, não vinha sem contradições. Muitas vezes era permeado por “generalizações”, apresentando uma ideia de “povo africano” como algo homogêneo, quase como uma massa amorfa e vista com bastante distanciamento. Vale verificar isso a partir da posição do eu-lírico deste poema. Não há um “eu” expressando sentimentos ou agindo (o que é uma ruptura própria da lírica moderna), há uma descrição bem objetiva do cenário que está se incendiando, entrecortada pelos versos “Poesia africana”. Quem é esse eu-lírico? Em que lugar desta sociedade ele se encontra? Ele está mais próximo dos “carregadores bailundos” que representam os oprimidos e explorados no poema? Ou estaria mais próximo dos opressores? O eu-lírico no poema parece observar tudo de cima, em um entrelugar.

O período durante as guerras de libertação, que se iniciam nos anos 1960, também é marcado também por intensa produção artística, que vamos abordar em um texto a parte. As guerras de libertação africanas, apesar de triunfarem até certo ponto, embateram-se com uma situação difícil frente a um cenário internacional de franca decadência do ascenso revolucionário mundial do século passado. O cenário de descenso foi construído por uma série de desvios e capitulações. Primeiro através da orientação reformista de partidos socialdemocratas que deixaram passar possibilidades revolucionárias em países como a Alemanha no começo do século. Depois pelo desvio burocrático difundido por partidos stalinistas, que com sua orientação de “revolução em um só país” e de “frentes populares” (aliando-se a burguesia nacionais), deixaram com que processos importantes de luta de classes em vários países não pudessem levar à tomada do poder. No caso das guerras de libertação africanas, partidos como o MPLA e a FRELIMO (que estavam influenciados pelo maoísmo, o guevarismo e o stalinismo) quando tomaram o poder não levaram adiante um programa socialista. 

Agostinho Neto se tornará presidente da Angola pelo MPLA e, lamentavelmente, foi responsável por um dos episódios mais sangrentos deste período. Em meio a guerra civil, em 1977, Neto acusa um setor do próprio partido de “fraccionismo” e de serem “agentes da CIA” (uma vez que estavam questionando medidas burocráticas e repressivas do governo). Comanda assim um massacre, em que o número de assassinados é até hoje desconhecido, mas estima-se mais de 80 mil, e junto a isso, a supressão dos principais organismos de auto-organização que a revolução deu origem. O número de membros do MPLA caiu de 110 mil para 32 mil. 

A gestão da fratura: poéticas contra a restauração burguesa

Por fim, o final da década de 80 ficou marcado em todo o mundo como um período de avanço cada vez maior da restauração burguesa, com a derrota de vários ascensos revolucionários, o que culminou na queda do muro de Berlim em 1989. Em Angola e Moçambique, os partidos que tomaram o poder do estado nas guerras de libertação (MPLA em Angola e FRELIMO em Moçambique) conformam uma nova classe dominante bastante repressiva, que se mantém no poder até hoje, e que nas últimas décadas foi responsável inclusive pela implementação do neoliberalismo nestes países.

Essa restauração burguesa também deixou marcas nas literaturas africanas, como podemos ver na obra poética do escritor moçambicano Eduardo White. White se insere em uma nova tradição de artistas moçambicanos que buscam uma renovação diante da chamada “poesia de combate” que marcou o período anterior (que tinha características do realismo socialista, que vamos abordar em outro texto) 9 . Escreve o livro Homoíne, em 1987, justamente diante de um massacre, desta vez na vila de Homoíne em Moçambique em 1987, que se deu em meio à longa guerra civil entre as forças do governo, a FRELIMO, contra a RENAMO, organização guerrilheira que se torna oposição (incentivada por fatores internos mas também financiada pelo imperialismo). A autoria do massacre não foi reivindicada por nenhum grupo e até hoje é envolto em controvérsias. A seguir, alguns trechos do livro.

VI
Os nossos mortos são muitos,
e não vive nenhum,
são muitos os nossos mortos
dentro das valas comuns.
e há dentro deles imagens e pensamentos,
há sonhos por acabar, mulheres por amar
e há cartas e filhos, filhos que possivelmente
de dentro dos nossos mortos já se não podem tirar
e há borboletas pousando por sobre o sangue
e há pássaros alegres que o estão limpando
e há uma cigarra vermelha, uma cigarra de sangue
que do coração dos mortos os está contando

VII
Ai que os nossos mortos são muitos,
não se os pode esquecer,
são muitos os nossos mortos
dentro das valas comuns
e é preciso que os tenhamos vivendo
armados e rígidos dentro de nós
e que um a um os tenhamos vingado
para que os nossos mortos saibam que não estão sós
Ai, os nossos mortos são muitos,
nem se os pode contar,
são muitos os nossos mortos,
dentro das valas comuns.

VIII
E falam do sangue e falam da vida
e falam do impiedoso silêncio que os anima
e falam tristes da imperceptível partida
e da escuridão que os prende e os incrimina
e falam aos filhos que não mais brincarão
do tédio da morte, da serenidade definitiva
e falam chorando a sua trágica
seus olhos vazados, sua voz esquecida
e falam aflitos e falam desesperados
do seu último minuto, dos seus últimos instantes
e gritam mortos, ai, gritam desolados
à vida e aos vivos que lhes acenam distantes
e batem no corpo e arranham o rosto
e insuflam os olhos numa aflição incontida
e não tardam a se aperceber em derradeiro desgosto
que a terra já desce com a morte vestida.
Mas o que os mortos não sabem nem imaginam,
é que no coração dos que ficam, no coração dos vivos
inteiros permanecem e decididos VIVEM.

Já de início, temos a estrofe que se repetirá outras 8 vezes ao longo do livro, que tem como base: “Os nossos mortos são muitos”, “dentro das valas comuns”. Vale notar que há não apenas nestes versos principais como em todo o livro a repetição dos “s” em todos os inúmeros plurais que o poema utiliza. Isso é interessante porque traz para a própria estrutura da obra a ideia de “muitos mortos”. Através da repetição dos “s” a ideia de “muitos mortos” fica como um sombrio eco em todas as estrofes.

O poema de White tem um tom muito mais sombrio que o de Agostinho Neto. Assemelha-se mais, inclusive, com o “grotesco” que é característico da lírica moderna, de acordo com Friedrich. Não é um poema que diretamente “chama à luta” pela positiva, nem que mostra claramente um horizonte de expectativas. Mas, de outra forma, pela angústia, pela revolta e pela inconformidade que apresenta, incita a que não possamos ficar inertes diante dessa realidade: apesar dos desvios e da burocratização que tomaram os rumos da trajetória revolucionária, ainda segue sendo necessário revivê-la.

É forte a imagem de uma “cigarra de sangue”, um inseto que faz barulho e vibra, “que do coração dos mortos os está contando”, um verso que pela própria repetição de consoantes oclusivas (“que”, “co-”, “mor-” “-tos”, “-tá”, “con”, “-tan”) parece o palpitar de um coração. É um esforço descomunal desse eu-lírico por não deixar esses mortos morrerem no esquecimento, o que está na primeira estrofe da sétima parte, “não se os pode esquecer”, e na segunda estrofe o poeta os quer vingar.

O fato de não ter uma estética ufanista de exaltar a nação moçambicana e a revolução nos termos em que a FRELIMO e MPLA a entende não faz dele um poema menor e nem menos “revolucionário”, pelo contrário, faz dele justamente uma necessária e brutal denúncia da situação em que se encontra a população moçambicana até hoje inclusive, quando essa situação se reatualiza diante dos protestos que ocorreram recentemente contra a fraude eleitoral, que foram reprimidos violentamente pela FRELIMO e contam com dezenas de mortos 10 . Uma situação que se reatualiza em Angola também, que no último mês teve protestos de camponeses contra as medidas do governo de bloqueios ao acesso às lavras na província do Uíge 11 . Um cenário também em que vemos imigrantes da diáspora de países africanos em todo o mundo sendo vitimados pela violência estatal, como nesta semana mesmo vimos com o ambulante senegalês Ngagne Mbaye, assassinado pela polícia racista de Tarcísio de Freitas. “Decididos VIVEM”, o poeta afirma, deixando claro que esses mortos estão decididos a não descansar, até que “(…) um a um os tenhamos vingado / para que os nossos mortos saibam que não estão sós”. 

 

NOTAS:

1. AGOSTINHO NETO. Sagrada esperança. Luanda: Maianga, 2004.

2. ROSENFELD, Anatol. Reflexões sobre o romance moderno. In. _____ . Texto / Contexto. São Paulo: Perspectiva, 1969.

3. FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna: da metade do século XIX a meados do século XX. São Paulo: Duas Cidades, 1991.

4. SCHWARZ, Roberto. “Ideias fora do lugar”. In: Ao vencedor as batatas: Forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades, 1977.

5. O contexto das guerras de libertação na África, assim como as revoluções cubana, chinesa, a guerra do Vietnã e uma série de processos revolucionários que ocorreram nesse período influenciaram artistas de todo o mundo, em movimentos de contracultura. No Brasil não foi diferente, e artistas brasileiros diretamente buscaram pontes inclusive com artistas de países africanos, como fizeram Gilberto Gil, Djavan, Jorge Ben Jor, o que seria todo um tema para um texto grande.

6. FANON, Frantz. Os condenados da terra. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2005, p. 255-256.

7. Utilizar-se de imagens que remetem a rituais de guerra que existem desde a ancestralidade na cultura de diversas etnias na África é algo bastante explorado em várias literaturas africanas, assim como Craveirinha (reconhecido poeta moçambicano) em seu livro “Xigubo” (nome dado a uma dança de guerra).

8. Para uma história da Casa dos Estudantes do Império ver: CASTELO, Cláudia. Casa dos Estudantes do Império (1944-1965): uma síntese histórica. Mensagem: Cinquentenário da Fundação da Casa dos Estudantes do Império, 1944-1994, p. 23-30, 1944.

9. Para uma análise mais detida disso, indicamos a tese “A gravitação das formas: gêneros literários e vida social em Moçambique (1977-1987)”, de Ubiratã Roberto Bueno de Souza, que aborda bem estes elementos.

10. ALCCOY, Philippe; SIMÕES, Raquel. “Situação tensa em Moçambique em meio a acusações de fraude e descontentamento social”. Esquerda Diário, 2024. https://www.esquerdadiario.com.br/Situacao-tensa-em-Mocambique-em-meio-a-acusacoes-de-fraude-e-descontentamento-social

11. UNGILA, Katró; DE REGINA, João. Camponeses protestam contra bloqueio de acewso a lavras na provincia do Uige. 2025 https://www.esquerdadiario.com.br/Camponeses-protestam-contra-bloqueio-de-acesso-as-lavras-na-provincia-do-Uige

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