Thiago Flamé
Os analistas da grande imprensa apenas deixam entrever o impasse estratégico em que se encontra a burguesia brasileira diante de uma “escolha de Sofia”. O impasse burguês é mais verdadeiro do que a quimera de que seria possível romper com EUA e avançar na soberania nacional por dentro do sistema capitalista.
A dependência estrutural aos EUA e à Otan é mais forte que a retórica lulista
Por mais que a integração da economia brasileira com a China tenha avançado de forma avassaladora e superado os EUA e a UE em várias frentes, o capitalismo brasileiro segue atado aos EUA e aos países da Otan por mil correntes. Em especial no setor bélico, que é foco deste artigo, a dependência dos EUA, Europa e Israel é gigantesca. Ao contrário do que Trump disse ao assumir a presidência, o Brasil e a América Latina têm um papel chave para o imperialismo dos EUA: sem conter a expansão chinesa e sem ter assegurado o domínio sobre a América Latina não pode nem sonhar em reverter a sua decadência histórica. Por isso Trump recorre a uma pressão extrema e arriscada, utilizando as tarifas como uma arma de guerra para obter concessões econômicas e geopolíticas.
Nos últimos dias, as terras raras brasileiras surgiram como uma proposta que amplos setores da burguesia brasileira consideraram negociável e para a qual Geraldo Alckmin deu apoio a partir dos EUA.
A linguagem da “Amcham Brasil e a US Chamber of Commerce” ajuda a dar corpo mais concreto à chantagem de Trump: “a combinação dos ativos de Brasil e Estados Unidos, reforçada por políticas setoriais mais robustas, pode gerar resultados promissores — desde que haja uma coordenação mais estreita entre as duas nações”.
Num movimento simultâneo, o encarregado de negócios da embaixada dos EUA procurou a interlocução de Raul Jungmann para reforçar o recado. Jungmann, que foi ministro de FHC e de Temer, é o atual presidente do Ibran (Instituto Brasileiro de Mineração) do qual o general Fernando Azevedo é vice presidente e tem relações com o Lide, de João Dória. Também Michel Temer ressurgiu “neste momento sombrio”’ para se oferecer como um facilitador do diálogo e do cálculo estratégico, contra as bravatas “de ambos os lados”.
A possibilidade de uma negociação para entregar mais riquezas brasileiras o imperialismo ativou os protagonistas do golpe institucional de 2016 e do giro rumo ao alinhamento incondicional aos EUA, que foi também o início do retorno dos militares à politica. A unidade nacional que se formou nos últimos anos poderia estar se desfazendo rapidamente, com a direita radical surgindo como a grande condutora de um novo pacto de subordinação
A dependência estrutural da indústria bélica brasileira: um gigante com armas de festim?
Em relação à América do Sul, o Brasil se destaca como o mais forte entre os vizinhos. Consolidou uma posição de liderança nova. Em 2024 teve um orçamento militar que é o dobro do que os outros cinco países mais importantes somados. Mesmo assim, sua margem de autonomia é escassa, seu poderio militar inferior ao de outras potencias regionais e sua dependência financeira e militar dos EUA e da Europa é enorme. Pela sua importância geopolítica, combinada com sua fragilidade estratégica, o Brasil é um elo débil dos Brics que pode estar se tornando um alvo prioritário para Trump.
O principal tanque no arsenal do exército brasileiro é o Leopard 1, alemão, cujo modelo começou a ser produzido nos anos 50/60 e sua última atualização foi nos anos oitenta, depois disso deixou de ser produzido. Em dois anos, sequer peças de reposição seriam garantidas. Dependendo da fonte, o Brasil teria entre 200 a 300 unidades de um tanque obsoleto. Como forma de comparação, o Egito conta com 2500, a Turquia mais de 2000, o Iran 1500 e a Arábia Saudita cerca de 500, mas ao contrário do Brasil, versões mais modernas e poderosas, como o Leopard 2, o Abrams ou o Merkava isarelense. Em todas as rubricas em que podemos comparar, o Brasil revela sua fragilidade militar. A frota de caças modernos é cinco a seis vezes menor do que a desses países e mesmo sua frota de navios e submarinos é inferior à desses países, todos com uma faixa costeira muito menor, se comparando apenas à da Venezuela.
Todo seu equipamento militar, em grande medida defasado, é fornecido pelos EUA ou pelas potências europeias, notadamente França e Alemanha. Apesar do protocolo que orienta a diversificação, o grosso do arsenal se concentra em 8 países. Os componentes mais avançados se concentram mais. A Elbit israelense, Saab sueca e a Bravo dos EUA. A plataforma que está sendo desenvolvida para unificar os sistemas e garantir a interoperabilidade entre as três forças está sendo desenvolvida pela empresa Israelense Elbit, assim como as das cabines de comando dos caças suecos, das torres de tiro do blindado Guarani e também colabora no desenvolvimento de componentes cruciais dos sistemas de mísseis Astros. Como se fosse pouco, é essa empresa que agora está desenvolvendo a criptografia militar mais avançada das forças armadas. Justamente a Elbit, que se beneficiou diretamente da lava-jato através da compra do braço de defesa vinculado à Odebrecht, ao mesmo tempo que outra empresa de Israel forneceu o software usado pela Polícia Federal.
Outros sistemas avançados dos caças são desenvolvidos pela Saab da Suécia. Os EUA participam do sistema de satélites de monitoramento das fronteiras e controla o sistema de rádio do exército, assim como outros sistemas de GPS. As correntes são bem reais. Para renovar a frota de tanques o Brasil já teve que descartar a chinesa Norinco, pois os EUA não autorizaram a adaptação para os tanques chineses e seria proibitivo o custo de uma mudança total da comunicação, que, mesmo se feita, iria gerar novos problemas, com os equipamento da marinha e da aeronáutica da Europa ou de Israel.
Mesmo nos seus principais projetos, propagandeados como exemplos da autonomia militar brasileira, a dependência é extrema. Para tomar o caso do blindado Guarani, a jóia da coroa do exército na modernização da frota de blindados e com potencial de exportação, que seria fundamental para ganho de escala e viabilizar a sua produção, enfrentou vetos para sua exportação para as Filipinas por parte da Alemanha, que fornece componentes essenciais, submetidos a acordos de controle de exportação. Mesmo nas suas pequenas façanhas, motivos de orgulho para o exército de Caxias, a dura realidade da subordinação aos EUA e à Otan se impõe.
Tomemos o programa espacial. É onde o Brasil tem a parceria mais bem sucedida fora da Otan. Desde 1988 desenvolve uma programa em comum com a China que lançou 5 satélites próprios ou em parceria e vai lançar o sexto, com tecnologia geoestacionária ( que possibilita ver através das nuvens e da vegetação), porém todo o sistema de vigilância da Amazônia e da fronteira marítima é dependente de tecnologia e componentes dos EUA e de Israel. No entanto, os pactos e tratados a que o estado brasileiro se submete impedem a interligação com softwares de comunicação chineses sem autorização norte-americana. A mesma dificuldade se coloca na licitação para uma nova linha de tanques para substituir os obsoletos Leopard 1. Apesar do melhor custo benefício dos blindados da chinesa Norinco, como todo sistema de rádio é dos EUA, a interligação com os sistemas do tanque Chinês teria que passar por autorização prévia, que obviamente não foi concedida. Lula pode ter ido às comemorações russas pela vitória contra o nazismo. Um recado forte, mas a tentativa de comprar o sistema antimisseis Pantsir da Rússia há alguns anos também fracassou por esbarrar no acordo firmado com a Otan em 2019 e por oposição do exército.
Os interesses dos EUA na Amazônia e no Atlântico Sul e a discreta ofensiva chinesa
A Operação Formosa, um exercício de guerra anfíbia numa localidade próxima à Brasília, foi um marco do acirramento das disputas geopolíticas no Brasil e na América do Sul. Se deu a curiosa e insólita participação de fuzileiros navais tanto dos EUA como da China. Apesar da projeção de poder militar chinês que esse exercício projetou, participando em pé de igualdade com os EUA, a imagem neste caso não corresponde à realidade da extrema dependência brasileira em relação aos EUA e dos países da Otan.
Essa denominação vem de longe e está no DNA das forças armadas. Lembremos que a primeira batalha reivindicada pelo exército como grande ato patriótico, foi na expulsão da Holanda do Brasil, levada adiante pelo exército colonial portugues, com apoio de parcelas da população local. Para confirmar essa tendência a um nacionalismo de palavra, para um exército submisso, o ato fundador do exército foram os combates contra as revoltas regionais e a guerra do Paraguai, um conflito por procuração à serviço da Inglaterra. A doutrina militar brasileira, que até o fim da II Guerra foi determinante, veio de fora, da missão militar francesa que formou os militares brasileiros no início do século XX.
No fim da II Guerra os EUA impuseram um acordo um acordo parecido com o que os EUA estão impondo para a Ucrânia. Pelos acordos de 1952, os EUA seriam abastecidos matérias primas do Brasil, e ficava com o comando das bases em Natal e no Nordeste. Esse tratado vergonhoso só caiu em 1978, mas as relações com o exército dos EUA nunca cessaram. Centenas de militares foram formados, e ainda são até os dias de hoje, na sombria Escola das Américas, campo de treinamento de torturadores. Depois da sua mudança de nome em 2001 até 2021, o Brasil enviou 82 militares para esse verdadeiro centro de treinamento golpista. Por lá passaram figuras como o general Williams Kaliman, que foi peça fundamental no golpe que depôs o então presidente Evo Morales e sete militares Colombianos que participaram do assassinato do presidente do Haiti, Jovenel Moise em 2021.
O golpe de 2016 significou um novo marco da dominação imperialista sobre o Brasil. Como dissemos, os pactos de 1952 foram desfeitos em 1978. Não aprofundaremos nas causas, mas foi uma combinação da insatisfação dos generais com as críticas que começaram a surgir nos EUA a favor de processos de transição à democracia e um retorno a tradicional postura de não alinhamento tradicional da diplomacia brasileira, postura que prevaleceu nos governos de FHC e Lula, e trouxeram o Brasil a nova situação da dupla dependência e que mais uma vez está sendo atacada por Trump, que exige a submissão completa.
Já na década de noventa a Nova República entregou para uma empresa dos EUA a construção do Sivam, num acordo que leva o selo imperial dos acordos draconianos dos EUA, integrando uma vasta rede de radares fixos e móveis, sensores aéreos e terrestres, e comunicações por satélite, com centros de processamento de dados em Manaus, Porto Velho, Belém e um centro de controle geral em Brasília.
A partir do golpe institucional a orientação geopolítica das forças armadas voltou a ter seu centro de gravidade na fronteira terrestre, atendendo aos interesses dos EUA, que veem no exército brasileiro uma força de manutenção da ordem na América do Sul. A série de exercícios militares com os EUA, chamado CORE, inéditos ao envolver os EUA, mal escondem a sua característica de demonstração de forças contra a Venezuela, numa das hipóteses de conflito militar na América do Sul, que foi abertamente estimulada por Trump em 2018. Esses exercícios anuais, mantidos pelo governo Lula, dão aos EUA uma posição estratégica nessa região, rica em minérios estratégicos e petróleo, é alvo prioritário da chamada biopirataria. Apesar do discurso ecológico de Biden e das críticas recentes de Trump ao desmatamento da Amazônia, que exalam cinismo por todos os poros, empresas americanas estão ligadas ao desmatamento em busca de madeiras, a mineração e à plantação de soja do coração da floresta. Assim, tropas americanas também funcionam como uma segunda linha da luta dos militares e dos latifundiários contra os direitos dos povos originários da Amazônia.
A visita militar chinesa ao Brasil em junho de 2023 foi grandiosa, mas a China neste terreno parte do zero em comparação aos EUA. Em julho de 2024 o Comandante do Exército Brasileiro, General Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva, realizou uma visita oficial à China, buscando avançar em pautas concretas em munição pesada, veículos blindados e cooperação na área de defesa cibernética e realizou uma visita a Norinco, onde pela primeira vez foi feita a proposta pela Avibras.
Dessa longa jornada de visitas e negociações, no entanto, os dirigentes do PCCh não saíram com seus apetites satisfeitos. Lula afastou sistematicamente a possibilidade de uma entrada formal na rota da seda chinesa, mesmo assim os investimentos chineses não pararam de crescer desde então, se ramificando abandonando a matriz extrativista e atingindo setores de alta tecnologia, como a produção de carros elétricos e semicondutores.
Isso vem acompanhado de investimentos pesados nos portos, em especial no porto de Salvador e em Ilhéus, que no plano Chinês cumprirá um papel estratégico na formação do corredor bioceânico, que irá do Brasil, em especial dos portos baianos, até o Porto Chancay no Peru. Uma alternativa ao Canal do Panamá, para escoar toda a produção de recursos naturais e das novas fábricas chinesas na região numa rota mais rápida que interliga o mercado da América do Sulmàs rotas através do pacífico, com acesso aos mercados europeus.
Seria ingênuo acreditar que a China fará essa aposta geopolítica na América do Sul e no Brasil, sem garantias de segurança e com os acordos militares com Brasil sendo sistematicamente travados pelos EUA e pela Otan. A resposta chinesa veio também no âmbito geopolítico e militar, acendendo todos os alertas em Washington. No início do ano, a China ofereceu 17 caças ao Brasil, de presente… não queria nem dinheiro nem minérios, queria “somente” acesso à base de lançamento de Alcântara. Onde desde 2019 existe um contrato de exclusividade com os EUA, que foi assinado junto com a nomeação do Brasil como aliado estratégico da Otan, um título que parece não ter tido maiores consequências até agora.
O outro movimento, que podemos ler como um dos antecedentes imediatos da chantagem trumpista, foi a proposta da Norinco para aquisição da Avibrás, que tem dívida de R$ 700 milhões e entrou em recuperação judicial. A proposta já estava sobre a mesa desde 2024, mas em maio, na sua visita à China, Lula se reuniu com Cheng Fubo, diretor-geral da Norinco, no Hotel Saint Regis em Pequim. A Avibras é responsável pelo desenvolvimento da série de mísseis Astros, que conta com o desenvolvimento de um míssil de cruzeiro com alcance de 300km, o limite de exportação que o Brasil pode produzir de acordo com os tratados MTC. Os lançadores de satélites chineses, pelas necessidades da China, se fossem instalados em Alcântara teriam que superar as limitações dos tratados com os EUA, que imitam em objetos de 500kg a capacidade dos lançadores. Seria possível viabilizar na planta avançada da Avibrás, se utilizando da base tecnológica Astros, a produção de mísseis utilizando os semicondutores produzidos em São Paulo e na Amazônia para serem lançados com uma rápida conversão a partir dos lançadores de satélites que estariam instalados em Alcântara. Essas propostas consolidariam um sistema de defesa chines do seu corredor bioceânico, numa zona em que o presidente Trump considera, fazendo eco de uma “nova doutrina monroe”, naturalmente destinada à estar sob controle dos EUA.
Romper a dupla dependência e abrir um terceiro caminho, anti-imperialista e revolucionário
Com a nova carta que os EUA lançaram na mesa a chantagem trumpista ganhou uma nova dimensão. Se não avançarem concessões substantivas que favoreçam os interesses das empresas norte americanas e aos interesses estratégicos dos EUA em detrimento da China, Trump poderia se engajar contra o “regime” brasileira, essa palavra que fez correr um frio na espinha dos jornalistas acostumados a usar o termo para se referir a estados falidos e nações tornadas áreas por eles mesmo. Os empresários, que até ontem estavam sendo elogiados nos meios progressistas por que mesmo com vacilação blocaram com o governo, vão ter que engolir suas palavras mais rápido do que imaginado.
A partir de Alckmin, surge um setor do próprio governo e de parte da oposição ou semi/oposição não bolsonarista disposto a fazer as vontades de Trump. Se a política desse setor se impusesse, descartaria facilmente seu apoiador canino. A perda dos bolsonaristas seria um dano colateral na obtenção de ativos geopolíticos.
Com mais força ainda o petismo tenta empurrar o Brasil para o colo da China, esperando um destino melhor sob a tutela do amo asiático que do amo do norte. Doce ilusão. Basta acompanhar o rastro de destruição e exploração que a China tem provocado na África e em todos os lugares que domina, inclusive internamente contra o próprio povo e a classe trabalhadora chinesa.
E na América Latina a China também vai mostrando sua verdadeira face capitalista e imperialista expansionista. Os casos de remoção forçada de comunidades tradicionais e originárias se multiplicam no Peru, no ritmo frenético da instalação dos projetos de exploração mineira e de logística intercontinental. Por cada lugar onde o moderno capital chinês toca, como na África, produz uma particular e explosiva combinação das técnicas mais avançadas com as mais atrasadas, sempre no ritmo e na escala chinesas. Em plena Bahia, o estado dos escravos rebeldes no século XIX, onde se convertem os investimentos mais avançados em tecnologia no porto de Salvador e Ilhéus, 136 trabalhadores chineses foram resgatados em condições análogas à escridão nas obras da montadora BYW em Camaçari no fim do ano passado. Uma mostra do caráter imperialista da expansão chinesa.
Somente a cooperação entre os povos da América Latina, da África, da Ásia e de todos os continentes poderão deter a máquina de guerra imperialista, num mundo onde a disputa pela hegemonia mundial avança a passos largos para se tornar cada vez mais acirrada e violenta. No artigo “Trump, a armadilha da ‘unidade nacional’ e o anti-imperialismo” desenvolvemos uma leitura mais detida da conjuntura atual e um programa de ação para a unidade da classe trabalhadora junto a todos os povos e setores oprimidos, a única força social que pode romper o caminho da dupla dependência. Nas nossas bandeiras segue escrita a palavra de ordem: paz entre os escravos, guerra aos senhores, sejam eles senhores da maquinaria de guerra da Otan, ou do bloco comandado pelos novos senhores da guerra chineses que mais cedo que tarde vão mostrar também as suas garras.