Revista Casa Marx

Friedrich Nietzsche: desconfiança da razão como filosofia de ação

André Barbieri

No último artigo, acerca da cisão entre o indivíduo e o coletivo, buscamos rastrear algumas coordenadas da luta de Friedrich Nietzsche contra a cooperação humana, a revolução e o socialismo, em nome da individuação extremada do sujeito burguês da decadência. Neste artigo passaremos em revista alguns momentos centrais em que a obra nietzscheana coloca a ciência e a razão em foco.

Karl Jaspers, autor de um dos livros mais destacados sobre Nietzsche 1, diz que não se deve estar satisfeito no estudo de sua obra até que tenhamos encontrado também a contradição, inconsistências de Nietzsche sobre um mesmo tema. Com efeito, muitos conceitos do filósofo de Röcken mudam de rosto no decorrer dos anos, atendendo a permanente atualidade de sua situação. Um de seus principais biógrafos, Walter Kaufmann 2, revela que Nietzsche se considera “o último dos estoicos”; já em Para Além do Bem e do Mal (1886), Nietzsche fustiga a ingenuidade dos estoicos (“Oh nobres estoicos, fraudadores da palavra!”) e sua máxima segundo a qual devemos viver moral e ideologicamente como pede a Natureza 3. Não obstante, a animosidade em relação à razão, por mais que tenha suas variações, é um traço que ganha estatuto de força com o tempo.

Indubitavelmente, Nietzsche estava correto em apontar a dúvida como essencial ao processo de conhecimento. De fato, os estágios iniciais do método científico estão fundados na incerteza da dúvida – ironicamente, a indagação socrática tão repulsiva a Nietzsche tem princípios similares. Suas indagações sobre o alcance da consciência e da razão tem um interesse particular. Na medida em que a ciência é uma atividade movida pela paixão, ela também pode nos privar de enxergar determinadas dimensões.

O problema surge quando a dúvida é estabelecida como fundamento da impossibilidade do conhecer – um caminho que pode levar à relativização (ou mesmo identificação) entre sabedoria e ignorância, motor dos impulsos mais agressivos do indivíduo contra a coletividade.

“Nada é mais necessário do que a verdade”

Nietzsche era dono de uma penetrante desconfiança sobre os efeitos da razão na vitalidade dos impulsos do ser humano, impulsos que considera como superiores aos cálculos do entendimento. “O intelecto, através de descomunais lances de tempo, não engendrou nada além de erros” (A Gaia Ciência, Livro III, § 110). A vontade de verdade, que Nietzsche associava ao desejo de não se deixar enganar – a ciência como uma longa prudência, uma cautela – essa vontade de verdade seria, efetivamente, menos perigosa, menos perniciosa, menos fatal? Chamava-lhe a atenção que a atividade do conhecer ganhava o mesmo valor que o viver no homem moderno, e o combate intelectual tornou-se “ocupação, estímulo, vocação, dever, dignidade; – o conhecer e o esforço em direção ao verdadeiro acabaram por entrar, como uma necessidade, na ordem das outras necessidades” (ibid.). Suas dúvidas pairavam ali onde repousava o poema de George Byron: “Tristeza é conhecimento: aqueles que mais sabem devem lamentar mais profundamente pela verdade fatal/ A Árvore do Conhecimento não é a árvore da Vida”.

Em seus primeiros estudos, que o levaram a interpretar a dramaturgia grega e as categorias do apolíneo e do dionisíaco (as forças de agregação e as forças de desintegração da persona, respectivamente), construiu uma oposição veemente entre razão e arte, entendimento e instinto. Eventualmente, no ímpeto de compreender por que esse entendimento passou a ocupar tanto espaço na atividade cotidiana, tentou integrar o conhecer como proporção daqueles impulsos instintivos. Por fim, tratou de remover o selo de hierarquia entre o verdadeiro e o falso e construiu uma interpretação radical sobre a validez vital do incorreto e do errôneo, ligado ao mítico e ao fantasioso como necessidades da existência superiores à verdade.

A questão, se é preciso verdade, não só tem de estar de antemão respondida afirmativamente, mas afirmada em tal grau que nela alcança expressão esta proposição: “Nada é mais necessário do que a verdade, e em proporção a ela todo o resto só tem um valor de segunda ordem”. O que sabeis de antemão do caráter da existência, para poder decidir se a maior vantagem está do lado do desconfiado incondicional ou do confiante incondicional? […] É sempre ainda sobre uma crença metafísica que repousa nossa crença na ciência – que também nós, conhecedores de hoje, nós, os sem-Deus e os antimetafísicos, também nosso fogo, nós o tiramos da fogueira que uma crença milenar acendeu, aquela crença cristã, que era também a crença de Platão, de que Deus é a verdade, e a verdade é divina. Mas, e se precisamente isso se tornar cada vez mais desacreditado, se nada mais se demonstrar como divino a não ser o erro, a cegueira, a mentira? (A Gaia Ciência, Livro V, § 344)

György Lukács tratou a temática sob a ótica do irracionalismo. Em seu alentado estudo A Destruição da Razão (1952), Lukács situa o pensamento de Nietzsche como o precursor do irracionalismo burguês na era decadente do imperialismo. O filósofo alemão não chegou a viver essa nova época, mas antecipou alguns de seus traços ideológicos vitais, sendo observador da unificação nacional bismarckiana, da Comuna de Paris de 1871, do surgimento de partidos operários de massas como o Partido Social Democrata Alemão (SPD), da ilegalidade dos socialistas, da exacerbação das conquistas coloniais europeias. Nietzsche também foi contemporâneo do desenvolvimento de correntes burguesas como o positivismo e o evolucionismo, que deixaram uma marca em seu pensamento – mas com as quais Nietzsche possuía divergências profundas, mais do que as assinaladas por Lukács, em especial na tola crença em um progresso infalível da humanidade. De acordo com o filósofo húngaro, Nietzsche “tinha um sexto sentido especial, uma sensibilidade antecipatória em relação ao que a intelligentsia parasitária precisaria na era imperialista […] Assim, ele foi capaz de abranger áreas muito amplas da cultura, iluminar as questões urgentes com aforismos inteligentes e satisfazer os instintos frustrados e, de fato, às vezes rebeldes dessa classe parasitária de intelectuais com gestos que pareciam fascinantes e hiper-revolucionários” (A Destruição da Razão). O irracionalismo nietzscheano se postulava contra a dialética e o materialismo histórico, oferecendo, entretanto, uma via aparente de rebeldia diante da decadência do capitalismo.

À luz de seus mestres, como Arthur Schopenhauer, que o influenciou inclusive após sua ruptura anti-romântica no final da década de 1870, Nietzsche cumpria uma nova função intelectual. “A luta de Schopenhauer contra o pensamento progressista de sua época poderia ser resumida em que condenava toda ação como intelectual e moralmente inferior. Nietzsche, ao contrário, exigia a participação ativa em nome da reação, do imperialismo […] Essa simulação de manter-se em sintonia com as necessidades da época, juntamente com uma mitificação da história, da natureza e da sociedade, levando não apenas ao surgimento de outros conteúdos e objetivos evolucionistas reacionários, mas também à anulação da evolução na apresentação mítica – essa foi a conquista intelectual mais fundamental de Nietzsche, o irracionalista”. As tarefas de época eram distintas, e os filósofos da ordem, mesmo os rebeldes e mais talentosos, precisavam trabalhar contra o socialismo e suas vertentes científicas, em primeiro lugar contra Marx e Engels 4. Devemos dizer, não obstante, que Lukács comete determinadas distorções históricas, especialmente na inadequada aproximação de Nietzsche com o que viriam a ser as variantes do fascismo na Europa. Essa avaliação incongruente é desmontada por filósofos e estudiosos como Walter Kaufmann (na obra Nietzsche: Philosopher, Psychologist, Antichrist) e Henri Lefebvre (na obra Hegel, Marx, Nietzsche).

Em tempo, um matiz adicional com Lukács: talvez mais do que um incontido irracionalismo – que sem dúvida aparece de maneira explícita em inúmeras passagens de sua obra – Nietzsche se distingue pela utilização consciente (racional) da irrazão como instrumento da conservação social. Já não estamos diante de um irracionalismo ingênuo e meramente consequencial, como em alguns pensadores do idealismo metafísico. Em Nietzsche, os desígnios da irrazão prefiguram o alerta de uma sociedade que, farejando os indícios do fim da era de crescimento das forças produtivas no capital, necessita invariavelmente um pensamento que, como diz Trótski, permitisse à burguesia ser ousada em seu choque frontal contra as vibrações transformativas da era da política de massas.

Para adentrar o tema, é necessário compreender a origem e os fundamentos do assédio à razão por parte de Nietzsche, seus objetivos específicos, e o interessante resultado da atribuição da ciência e da razão aos defensores da revolução.

Kant e Schopenhauer como “educadores”

Nietzsche é reconhecido adversário da escola metafísica. Talvez esse seja um dos primeiros traços distintivos com que se entra em contato com sua filosofia. Amadureceu uma filosofia avessa ao idealismo metafísico e ao platonismo – o desgosto por Platão foi alimentado por sua heroicização do método dialético de Sócrates. Identificava a metafísica com aquilo que discordava (como a “crença na ciência”, certa vez). Isso o levou a confrontar-se asperamente com filósofos de sua estima, artistas da metafísica como Immanuel Kant e o “grande Arthur Schopenhauer”, segundo Nietzsche seu “primeiro e único educador” (Humano, demasiado humano II, prefácio de 1886). Entretanto, há em sua obra uma pervasiva ambiguidade quanto a essas importantes figuras do idealismo clássico alemão, que se notabilizaram pela separação metafísica entre o mundo real e o mundo ideal. Essa característica secessionista da metafísica aparece de forma ambígua na obra de Nietzsche, de modo que, por momentos, podemos identificar sua utilização como arma argumentativa. Em especial, na guerra travada contra a razão e as possibilidades da ciência, no ceticismo diante da potência racional do humano. Neste aspecto, Nietzsche preservou uma confluência íntima com muitos daqueles que eram simultaneamente alvos de sua crítica.

Com efeito, Kant e Schopenhauer, baluartes da metafísica europeia criticada por Nietzsche, geram não obstante em seu pensamento uma grande admiração: a de serem modelos do homem anti-teórico. Em outras palavras, ambos são oponentes daquela veneração às capacidades ilimitadas da razão, própria da lógica socrática que entroniza o entendimento e a busca pela verdade como o caminho para a virtude. Pelo contrário, são pensadores que municiam o ceticismo com nosso contato com a realidade, teorizando a impossibilidade de um conhecimento verdadeiro do mundo. Podemos dizer que há uma tensão permanente de Nietzsche, entre a crítica à dualidade dos mundos e a restituição dessa dualidade – quando se trata da oposição entre o mundo aparente e o “mundo da verdade científica”.

A filosofia de Kant, que estabeleceu um marco na história do pensamento ocidental, tinha como núcleo a separação entre a dimensão fenomênica e a dimensão essencial, a distinção entre o fenômeno e a “coisa-em-si”. Sua base era a demonstração de que, entre o mundo dos objetos e nós, está sempre ainda o intelecto, que tem uma função dualisticamente trágica. As formas intuitivas da razão são a condição de toda experiência (o fundamento do objeto está no sujeito que apreende e representa as coisas), mas é essa mediação do intelecto que impede que as coisas possam ser conhecidas tal como realmente são. Surge uma separação entre o mundo da aparência dos fenômenos, e o mundo da coisa-em-si, dos objetos não distorcidos pelos mecanismos da sensibilidade. Essa visão idealista, em que percebemos apenas as sombras de um mundo real inacessível ao nosso conhecimento, foi considerado por Schopenhauer como o maior mérito de Kant, que teria demonstrado a total diversidade entre o ideal e o real, e a “fantasmagoria do mundo objetivo”. Trata-se de uma reinterpretação, sofisticada, da defesa de Platão em A República, com a alegoria da caverna: firmemente acorrentados em uma gruta escura, os seres humanos não veem nem a verdadeira luz originária, nem as coisas efetivas – enxergariam apenas a luz precária do fogo na caverna, e as sombras das coisas efetivas.

Em Crítica da filosofia kantiana, apêndice a O Mundo como Vontade e Representação, Schopenhauer afirma que “Todos os filósofos ocidentais anteriores tiveram a ilusão de que essas leis, de acordo com as quais os fenômenos atam-se uns aos outros, tanto tempo e espaço quanto causalidade e inferência lógica, sob a expressão de princípios da razão, fossem leis absolutas e não condicionadas por absolutamente nada […] As hipóteses feitas para este fim, que Kant crítica sob o nome de ideias da razão, serviam, propriamente, apenas para elevar ao estatuto de única e suprema realidade o mero fenômeno, a obra de Maya, o mundo das sombras de Platão, e colocá-las no lugar da mais íntima e verdadeira essência das coisas, e desse modo tornar impossível o conhecimento das mesmas” (Crítica da filosofia kantiana). Só podemos perceber as leis da natureza através da maneira com que afeta os objetos da nossa percepção, de modo que para a metafísica idealista o mundo nunca pode ser definitivamente estudado por métodos científicos: tudo é a representação de fenômenos inessenciais. Se o mundo objetivo que buscamos conhecer e investigar cientificamente é mero fenômeno, e essa aparição fenomênica está condicionada ao modo de conhecer do sujeito que não pode alcançar a coisa-em-si, toda ciência se torna ilusão. O conhecimento das coisas passa a ser um derivativo impossível das formas do próprio conhecimento, já que tudo o que investigamos é mediado pelo intelecto, que percebe e distorce o objeto. Como conclui o jubiloso Schopenhauer, “o fim e o começo do mundo devem ser procurados não fora, mas dentro de nós”. A Vontade era a coisa-em-si de Schopenhauer, tratado por Paul Deussen, amigo de Nietzsche, como a síntese última entre o Oriente e o Ocidente (em função de sua inspiração na doutrina Vedanta da Índia).

Dessa maneira, enquanto critica as insuficiências e erros de Kant, Schopenhauer trabalha como continuador de seu idealismo transcendental. O mundo em que vivemos é o da representação e não estamos em contato direto com a realidade objetiva – embora também não seja uma mera criação subjetiva (Schopenhauer considera que “o mundo fenomênico é tão condicionado pelo sujeito quanto pelo objeto e, isolando as formas mais gerais de seu fenômeno, isto é, da representação, podem-se conhecer suas formas não só à partir do objeto, mas igualmente a partir do sujeito”, O Mundo como Vontade e Representação). Schopenhauer, como Kant, subordina a realidade do objeto à percepção do sujeito, o que leva ambos ao caminho platônico da divisão entre o aparente e o real.

Nietzsche é profundamente afetado por essas ideias. Tanto em seus acordos, quanto nas suas divergências, que são relevantes. O que cumpre sublinhar para nossos propósitos é que Nietzsche absorve essa dupla influência para estabelecer uma relação mais clara entre o questionamento ao impulso de conhecer e a metafísica. Os autores da Crítica da Razão Pura e de O Mundo como Vontade e Representação não dispensaram a importância da razão e de suas prerrogativas para a percepção e o entendimento – existe enorme fortuna crítica sobre o tema; mas ambos se notabilizaram mais por enfatizar aquilo que a razão não pode fazer. Isso captava a atenção de Nietzsche. Com efeito, em O Nascimento da Tragédia (1872) ambos os filósofos são referidos como ídolos ou naturezas superiores que simbolizaram os limites do prazer socrático de conhecer.

Todo o nosso mundo moderno está preso na rede da civilização alexandrina e conhece como ideal o homem teórico, equipado com os máximos poderes de conhecimento, trabalhando a serviço da ciência, cujo protótipo ancestral é Sócrates […] Enquanto a desgraça que cochila no seio da cultura teórica começa pouco a pouco a amedrontar o homem moderno, e ele, intranquilo, procura no tesouro de suas experiências meios para afastar o perigo; enquanto, pois, ele começa a pressentir suas próprias consequências, que naturezas superiores, dotadas para o universal, souberam, com inacreditável lucidez, utilizar o arsenal da própria ciência para demonstrar os limites e a condicionalidade do conhecer em geral e, com isso, negar decisivamente a pretensão da ciência à validez universal e à pretensão de poder sondar a essência mais íntima das coisas. A audácia e a sabedoria descomunais de Kant e Schopenhauer conquistaram a mais difícil das vitórias, a vitória sobre o otimismo que está escondido na essência da lógica (O Nascimento da Tragédia, § 18).

Nietzsche se irmana ao esforço de desluzir a ilusão sobre a potência da razão. Especificamente quando trata da impossibilidade do conhecimento sobre a “essência mais íntima das coisas”, comparece certa tolerância (ou mesmo simpatia) diante do conceito kantiano da coisa-em-si, figura explícita da separação entre o mundo cognoscível e o incognoscível. Isso é assim, ainda que Nietzsche seja explícito em sua recusa da categoria da coisa-em-si em inúmeros temas, centralmente no debate dos juízos morais. Nietzsche também recupera o argumento de Schopenhauer sobre Kant no apêndice de sua obra principal, e afirma que Kant revelou que as leis do tempo, do espaço e da causalidade, considerados incondicionados, serviam apenas para erigir o mero fenômeno em única e suprema realidade, pondo-a no lugar da essência íntima e verdadeira das coisas, cujo possibilidade de conhecimento está fora da órbita racional. Estamos na esfera da aproximação.

Essa posição se relativiza por momentos, e traz matizes. No ensaio A Filosofia na Época Trágica dos Gregos (1874), o primeiro escrito definitivamente filosófico do autor, Nietzsche envereda pelo caminho oposto, e sem mencionar os idealistas alemães, passa em revista os filósofos gregos na era pré-socrática, muitos dos quais buscavam a unidade do todo através da observação cosmológica. Aqui, Nietzsche exibe sua admiração por Heráclito de Éfeso, que se opunha à noção da separação entre mundos distintos. Seu pensamento não buscava uma razão extra-terrena, ou mesmo moral, para explicar o fluxo contínuo do vir-a-ser, do devir, que encarava como a própria lógica do universo que se sobrepõe a tudo o que existe. “Primeiramente, [Heráclito] negou a dualidade de mundos inteiramente diversos, que Anaximandro havia sido forçado a admitir: não separava mais um mundo físico de um mundo metafísico, um reino das qualidades determinadas de um reino da indeterminação indefinível” (A Filosofia na Época Trágica dos Gregos, § 5). O todo conflitante do mundo unitário conflui para a harmonia, segundo Heráclito, e Nietzsche se serve da mitologia grega para sustentar que a constante guerra entre os opostos do ser e do devir não possui leis extraídas de uma dimensão metafísica, ou leis em geral: é o puro jogo de Éon, que “transformando-se em água e terra, faz, como uma criança, montes de areia à beira do mar, faz e desmantela; de tempo em tempo, começa o jogo de novo. Um instante de saciedade: depois a necessidade o assalta de novo, como a necessidade força o artista a criar” (A Filosofia na Época Trágica dos Gregos, § 7).

Em Aurora (1881), já no período crítico de Nietzsche a seus primeiros “educadores”, a coisa-em-si kantiana é retomada em seu aspecto pernicioso e pejorativo, como o núcleo dos imperativos morais universais que atuam como obstáculos à primazia do indivíduo sobre suas ações. Nesse caso, Nietzsche encontra o negativo metafísico no terreno dos juízos morais após sublinhar o seu aspecto positivo no terreno do questionamento à razão, fazendo-o pensar “no velho Kant, que como castigo por ter-se apossado sub-repticiamente da coisa-em-si – também uma coisa muito ridícula! – foi sub-repticiamente apanhado pelo imperativo categórico e com ele no coração extraviou-se e voltou outra vez para ‘Deus’, ‘alma’, ‘liberdade’ e ‘imortalidade’, igual a uma raposa que se extravia e volta para sua jaula: – e eram sua força e esperteza que haviam arrombado a jaula!” (Aurora, Livro IV, § 335). É impossível atribuir ao juízo pessoal o poder de uma lei universal (imperativo categórico) assim como é inadmissível diluir no universal aquilo que somos como indivíduo – tal é a maneira como Nietzsche ataca Kant.

Apesar das objeções ao idealismo, como vimos, é na negação da possibilidade da ciência e da razão que Nietzsche mais se aproxima da metafísica. Em seu projeto de revisão crítica da moralidade, Nietzsche retorna ao tema da ciência e da razão com ainda mais tenacidade, e n’A Gaia Ciência (1883) dedica largos parágrafos ao problema que o ocuparia até o fim da vida: seria necessariamente bom e positivo o impulso à verdade? Da maneira como elege colocar o problema, em linha com seu projeto socialmente reacionário, Nietzsche elabora o perspectivismo contra a visão de que o não verdadeiro seria inferior ao verdadeiro, de que a ciência seria superior à sua ausência. “Através dos mais longos tempos considerou-se o pensar consciente como o pensar em geral: só agora desponta para nós a verdade de que a maior parte de nossa atuação espiritual nos transcorre inconscientemente, não sentida […] O pensar consciente, e em especial o do filósofo, é o menos forte” (A Gaia Ciência, Livro IV, § 333). A ciência se torna um vício moral para Nietzsche, pois se oporia à arte e negaria a importância que o mito, o falso, o errôneo, a ilusão, possuem para a vida humana – e se desmorona na busca da verdade como o caminho para a associação socrática: Razão-Virtude-Felicidade. A luta da humanidade por compreender a matéria e utilizá-la de maneira harmônica com a natureza para o atendimento das necessidades sociais é para Nietzsche um esforço de retorno a uma divisão metafísica entre o mundo real incognoscível e o imaginário mundo científico. “De onde então poderia a ciência tirar sua crença incondicionada, e sua convicção, que repousa sobre ela, de que verdade é mais importante do que qualquer outra coisa, do que qualquer outra convicção? […] ‘Vontade de verdade’ não quer dizer ‘eu não quero me deixar enganar’, mas sim – não há nenhuma escolha – ‘eu não quero enganar nem sequer a mim mesmo’: – e com isso estamos no terreno da moral […] Dessa forma, a questão: por que ciência? reconduz ao problema moral: para que em geral moral, se vida, natureza, história, são imorais? Sem dúvida nenhuma, o verídico, naquele sentido temerário e último como o pressupõe a crença na ciência, afirma com isso um outro mundo do que o da vida, da natureza e da história; e, na medida em que afirma esse ‘outro mundo’, como? não precisa, justamente com isso…negar seu reverso, este mundo, o nosso mundo? No entanto, já se terá compreendido onde quero chegar, ou seja, que é sempre ainda sobre uma crença metafísica que repousa nossa crença na ciência” (A Gaia Ciência, Livro V, § 344).

Como dissemos, Nietzsche possui múltiplas críticas a seus inspiradores na filosofia idealista alemã. Ao final da vida, é categórico em dizer que “dividir o mundo entre um ’verdadeiro’ e um ’aparente’, seja ao modo do cristianismo, seja o modo de Kant, é somente uma sugestão da decadência” (Crepúsculo dos Ídolos, A “Razão” na Filosofia, § 6). Ademais, Kant é castigado por desenvolver uma teoria dos juízos morais que busca diluir o indivíduo em uma abstrata fórmula universal (“majestáticos edifícios éticos”), sem reconhecer o que chamava de imoralidade da natureza e da história. Por sua vez, Schopenhauer é fustigado pela resultante idealista de um filosofia que nega a Vontade de Vida, que busca uma renúncia intelectual ao desejo como forma da escapar da dor – um projeto que se opõe à Vontade de Potência nietzscheana. Entretanto, Nietzsche segue vivamente influenciado pelo ceticismo metafísico sobre a capacidade de conhecimento do mundo, e atualiza esse ceticismo elaborando um quadro de terror e destruição como fruto da visão de um mundo sem véus. Vez e outra, Nietzsche retorna à argumentação dos órgãos sensoriais como anteparos através dos quais não apenas recebemos as sensações e formamos nossas representações, como um obstáculo ao conhecimento do mundo tal como ele é. Mesmo quando Nietzsche recusa a divisão metafísica kantiana, assenta as bases – ou as consolida – da desconfiança sobre o conhecer: “E nem é bem a oposição entre ‘coisa-em-si’ e fenômeno: pois estamos longe de conhecer o bastante para sequer podermos separar assim. Não temos, justamente, nenhum órgão para o conhecer, para a verdade” (A Gaia Ciência, Livro V, § 354).

Essa tensão permanente o coloca em posições contraditórias, no que podemos encontrar como uma posição intermédia, indecisa, de duas negativas: nem a aparência é algo objetivamente real sem o auxílio dos nossos sentidos, nem a realidade é algo absolutamente distinto da aparência. A erosão metafísica da irrazão está justamente nessa tensão. No pensamento metafísico kantiano-schopenhaueriano, a ciência era impossível porque não se depara com os objetos reais, e sim com as imagens representadas pelo intelecto que percebe. Em Nietzsche, a ciência é o próprio vício metafísico da criação de um mundo outro que não o nosso. Para que ciência, se vida, natureza e história são anti-científicos? Por meios distintos, chega-se a um resultado comum do próprio pensamento idealista.

O fundamento trágico do assédio à razão

A antipatia de Nietzsche contra a razão e a ciência é produto de sua desconfiança diante dos efeitos de ambas sobre o desenvolvimento da história e suas revoluções. Esse é talvez um dos pontos mais firmes na trajetória filosófica de Nietzsche, mesmo levando-se em conta as inúmeras modificações na tendência específica que tomava seu pensamento de acordo com as vicissitudes de sua vida. A título de exemplo, no período do final dos anos 1870 e início dos anos 1880 há em Nietzsche uma marcante ruptura com o romantismo de Richard Wagner e de Arthur Schopenhauer em prol do Iluminismo francês (Voltaire). Entretanto, o combate ao “homem teórico moderno”, cujo precursor seria Sócrates, sobrevive a essas vicissitudes, e atravessa sua obra desde O Nascimento da Tragédia (1872) até o Crepúsculo dos Ídolos (1887) e Ecce Homo (1888), de distintas formas, às vezes mais nuançadas, outras mais abertas.

Na sua interpretação da trilogia dramática de Sófocles acerca do mito de Édipo, Nietzsche diz, n’O Nascimento da Tragédia, que a “sabedoria é uma abominação contra a natureza”. É interessante notar o impacto dessa interpretação para a filosofia futura de Nietzsche. Este considerava Sófocles o mais apto dos dramaturgos gregos em sublinhar as forças trágicas do instinto e do destino contra qualquer solução da razão (à diferença de Eurípides, expressão no teatro da degeneração socrática, com personagens presos em um estreito círculo de problemas solúveis através da argumentação lógica).

A tragédia do personagem de Édipo está fundada na excessiva vontade de conhecer a verdade, na busca excessiva pela sabedoria. A núcleo da peça gira ao redor da necessária resolução do mistério que envolve o assassinato do rei de Tebas, Laio; a não solução do problema era a causa de inúmeros males na pólis grega, então rival de Atenas. Édipo toma para si essa tarefa, sem saber que ele mesmo é o assassino. O destino trágico e imutável dessa figura dramática estava definido pelo destino desde o seu nascimento: sem que ele soubesse, Édipo seria o assassino de seu pai, Laio, e o marido de sua própria mãe, Jocasta. Édipo desencadeia o processo da sua destruição justamente quando supera a Esfinge em sabedoria, resolvendo o enigma que ela propõe. Trata-se do indício do grande perigo representado pela sabedoria e a razão, que não se perderá em Nietzsche. Esse desenlace, por sua vez, é inevitável porque havia sido preordenado pelos deuses, e cada tentativa de desviar Édipo da terrível conclusão de suas ações só acelera a chegada dessa conclusão.

Nessa peça de Sófocles, Édipo Rei, existe um monstro muito pior que a Esfinge e que Édipo não consegue deixar de buscar: e esse monstro é a verdade. Nietzsche interpreta a peça como se Édipo fosse tragado por um vórtice inescapável que o obriga a descobrir a verdade do crime que cometeu. Todos os gregos presentes à performance da peça já sabiam o resultado final – o mito de Édipo era parte do arsenal mitológico-cultural da sociedade antiga – assim, nós os espectadores sabemos já antes do desenrolar dramático que a verdade é terrível e que Édipo deveria fugir dela. Ao contrário, ele busca ativamente conhecê-la, e num gesto brilhante de maestria teatral, Sófocles faz com que os espectadores sintam cada vez mais aflição quanto mais perto se vai ficando da solução do mistério. A busca pelo conhecimento leva Édipo a ficar cego – quando descobre que matou o pai e casou com a mãe, ele é tomado por um frenesi que o leva a arrancar os próprios olhos com os broches da túnica de Jocasta, que havia acabado de se suicidar. A ideia central do Édipo Rei, em uma de suas interpretações possíveis, é que a passagem da ignorância à sabedoria leva à ruína. Todo movimento da ignorância ao conhecimento produz um resultado negativo, oposto ao que se esperava: quanto mais se sabe a verdade, mais se destrói a si mesmo. Como diz o vidente Tirésias na peça “Quanta angústia existe na sabedoria, quando ela não traz nenhum benefício a quem a possui”. Nietzsche parte desses pressupostos para se opor ao desejo de conhecer tudo, ao excesso de sabedoria, e conclui que “A afiada ponta do conhecimento se volta contra o sábio: a razão é uma ofensa contra a natureza” (O Nascimento da Tragédia, § 9).

Em linha com isso, no pensamento maduro de Nietzsche cada vez mais nos aproximamos de uma concepção em que o certo não é mais valioso que o incerto, a ilusão não é menos importante que a verdade. Em Para Além do Bem e do Mal, ao final da sua vida consciente, Nietzsche retoma essa reflexão sobre o Édipo a fim de condenar a Vontade de Verdade, aquilo que considera como um preconceito dos filósofos, que apreciam incorretamente o valor da inverdade e da falsidade, como Édipo havia feito na peça de Sófocles. Logo na abertura, indaga: “Por que ao invés da verdade não buscamos a inverdade? A incerteza, e até mesmo a ignorância? O problema do valor da verdade se apresenta diante de nós – ou fomos nós que nos apresentamos diante do problema? Quem de nós aqui é o Édipo, e quem de nós a Esfinge?” (Para Além do Bem e do Mal, capítulo I, § 1). Nessa retomada tardia do problema gnosiológico em Édipo Rei, diz: “Uma coisa pode ser verdadeira embora seja ao mesmo tempo altamente prejudicial e perigosa; assim, a constituição fundamental da existência pode ser tal que o conhecimento completo dela faça um ser humano sucumbir – de modo que a força de espírito pode ser medida de acordo com a quantidade de verdade que podemos tolerar – ou, para falar mais claramente, na medida em que exija que a verdade seja atenuada, velada, suavizada e falsificada” (Para Além do Bem e do Mal, capítulo 2, § 39). Assim o foi para Édipo: em outras palavras, deveríamos corrigir a insolência desmedida (hýbris), o erro fatal do herói tebano, e afastarmos o desejo de conhecimento que leva à ruína.

Vale a pena explorar a série de reflexões do autor sobre esse problema, que explicam o perigo que encontrava na investigação racional sobre as coisas. “Digo a mim mesmo que a maior parte do pensamento consciente deve ser incluído entre as funções instintivas, e isso é verdade mesmo no que toca o pensamento filosófico […] Por exemplo, que o certo seja mais valioso que o incerto, que a ilusão seja menos importante que a verdade: tais apreciações, apesar de sua importância normativa para nós, podem ser não obstante apenas estimativas superficiais…” (Para Além do Bem e do Mal, capítulo I, § 3). Em outro momento, afirma que: “Não é nada mais que um preconceito moral dizer que a verdade vale mais do que a aparência; é, de fato, a pior suposição no mundo. […] De fato, o que nos obriga em geral a supor a existência de uma oposição essencial entre o ‘verdadeiro’ e o ‘falso’?” (Para Além do Bem e do Mal, capítulo 2, § 34). Em síntese:

“A falsidade de uma opinião não é para nós qualquer objeção a ela […] a questão é em que medida uma opinião avança a vida, preserva a vida, preserva a espécie; e estamos fundamentalmente inclinados a acreditar que as opiniões mais falsas (às quais pertencem os juízos sintéticos a priori [de Kant]) são as mais indispensáveis para nós […] A renúncia às opiniões falsas seria uma renúncia à vida, uma negação da vida. Reconhecer a inverdade como uma condição da vida: isso é certamente impugnar as ideias tradicionais de valor de uma maneira perigosa, e o filósofo que se aventurar a fazê-lo colocou-se sozinho para além do bem e do mal” (Para Além do Bem e do Mal, capítulo I, § 4).

Efetivamente, Nietzsche considerava que o instinto merecia mais autoridade que a razão dentro do pensamento filosófico. Para ele, o instinto é criador, e não a razão. Daí surge a batalha agônica que Nietzsche trava contra a figura de Sócrates, a representação do entendimento contra o primado do mito, a Vontade de Verdade que indaga sobre as razões de todas coisas e exige que as ações sejam justificadas racionalmente. Essa roda propulsora do socratismo lógico era pro Nietzsche um agente de dissolução do mito, do incerto, do instinto irracional. “O velho problema teológico da Fé e da Sabedoria, ou mais simplesmente, do instinto e da razão – a questão de se, na valoração das coisas, o instinto merece mais autoridade que a racionalidade, que quer apreciar e agir de acordo com motivos, de acordo com um porquê, em conformidade com um propósito e uma utilidade – foi sempre o velho problema que primeiro surgiu na figura de Sócrates, e dividiu as mentes humanas muito antes da Cristandade” (Para Além do Bem e do Mal, capítulo 5, § 191). Sócrates tomou o partido da razão contra o instinto, e em seu “talento de dialeta excepcional”, sempre ria da incapacidade da nobreza ateniense em explicar o motivo pelo qual agia. O demônio devasso da razão reconhecia por toda Atenas que suas principais celebridades não tinham um entendimento correto e seguro nem mesmo sobre sua profissão, e a exerciam apenas por instinto. “Apenas por instinto: com esta expressão, tocamos o coração e o centro da tendência socrática. Com ela, o socratismo condena tanto a arte vigente quanto a ética vigente: para onde dirige seu olhar inquisidor, lá ele vê a falta de entendimento e a força da ilusão, e conclui dessa falta que o que existe é intrinsecamente pervertido e repudiável. A partir desse único ponto, acreditava Sócrates ter de corrigir a existência” (O Nascimento da Tragédia, § 13). Sócrates parecia a Nietzsche ter atuado como um médico, um salvador em Atenas, mas por métodos que levaram à dissolução grega: “É necessário indicar ainda o erro que havia em sua crença na ‘racionalidade a todo preço’?” (O Crepúsculo dos Ídolos, O problema de Sócrates, § 11).

Essa interpretação, que opõe a ciência à arte e aos impulsos criadores, é uma idiossincrasia de Nietzsche: nada indica que as coisas devem se mover exclusivamente nessa direção simplesmente porque Platão decidiu excluir os poetas e dramaturgos de sua república dos sonhos. O modo de produção capitalista utiliza todos os artifícios do desenvolvimento científico em função do lucro e da espoliação da vida de milhões, privados da arte, da cultura e da ciência que poderia elevar a existência humana. A elevação e generalização da ciência e da arte são próprias do projeto socialista. Para Nietzsche, entretanto, há um propósito. Elabora uma filosofia que se afasta radicalmente da ciência e da razão como potências que podem alterar o curso da vida humana. A leitura trágica do mundo que observamos em Édipo Rei, com a impassibilidade das forças do destino sobre a volição humana, é trazida por Nietzsche para os dilemas da moderna sociedade industrial capitalista. A mensagem intencional é de que não podemos conhecer as coisas tais como são, e não há meio para que a coletividade humana interfira decisivamente no grande curso dos acontecimentos, simplesmente porque a ação coletiva não existe pro Nietzsche. Segundo o projeto socialista, o sujeito humano tem uma importância fundamental na alteração do destino, e sua intervenção histórica nos grandes acontecimentos – em que o indivíduo atua no marco das grandes classes em disputa – necessita da ciência e da razão para agir. A inverdade e o engano se tornam mecanismos de sobrevivência que devem auxiliar o homem a evoluir dentro desse mesmo mundo de hierarquias, para cuja preservação é necessário justificar a inalterabilidade da vida e dos detritos violentos do passado.

Passado de escravidão, presente de opressão

O combate à razão é um atestado do interesse pela conservação do status quo social, que em Nietzsche é explícito. A concepção de mundo nietzscheana abriga o caos eterno, não apenas no sentido heraclitiano da luta constante entre o ser e o devir, mas no sentido da violência de cada ser contra os demais, da desordem entre entidades individuais que negam o outro. A desordem caótica do mundo desde tempos imemoriais deixou marcas sobre a humanidade, e foi a força edificadora das potências ancestrais que explicam onde chegamos. Nietzsche exige que se abandone qualquer intenção de imputar falta de compaixão e irrazão a um universo que “não é perfeito, nem belo, nem nobre, e não quer tornar-se nada disso”, em que há apenas necessidades conflitantes, onde “não há ninguém que mande, ninguém que obedeça, ninguém que transgrida” (A Gaia Ciência, Livro III, § 109). Esse combate à idealização dos juízos morais, ao contrário de um desenlace libertador, busca atar o humano aos resquícios de seu passado remoto, as tenebrosas violências e opressões que se acumularam como sedimentos durante milênios. Consideradas como características da gênese social humana, deveriam estar intactas e a salvo das irrupções revolucionárias.

Quando os Socialistas argumentam que a divisão da propriedade nos dias atuais foi consequência e fruto de incontáveis atos de injustiça e violência, e em suma repudiam a obediência a uma ordem fundada em uma base tão nefasta, eles apenas percebem algo isolado. Todo o passado das civilizações antigas está construído sobre a violência, a escravidão, o engano e o erro; nós, entretanto, não podemos nos anular a nós mesmos, os herdeiros de todas essas condições, e mais, nós que somos a concordância e concretização de todo esse passado, não temos o direito de exigir a retirada de um único fragmento dele no presente. […] Não são novas redistribuições forçadas, mas a gradual transformação da nossa opinião que é necessário. a justiça em todos os assuntos deve se tornar mais forte, e o instinto à violência, mais fraco”. Tais linhas, escritas mais de uma década após a publicação do primeiro volume d’O Capital, dão a impressão de uma espécie de resposta ao capítulo sobre “A assim chamada acumulação primitiva”, em que Marx discorre exatamente sobre os atos de violência e injustiça dos cercamentos na Inglaterra e da atividade colonial das potências europeias que deram origem, pelo roubo e o assassinato, à propriedade capitalista. Se somos “filhos da escravidão, da injustiça e do engano”, características que estariam imbuídas em nossa herança moral, seria inadmissível abolir os traços ignóbeis do passado – deixar para trás a pré-história, no sentido socialmente forte do termo – assim como inadmissível seria o programa dos socialistas que visa abolir a propriedade capitalista que elimina o direito de propriedade para nove décimos da sociedade, como dizem Marx e Engels no Manifesto Comunista.

Se houve escravidão no passado, é necessário admitir que a moderna forma de escravidão, o assalariamento capitalista, deve continuar. Para Nietzsche então está proibida toda crítica dos socialistas à exploração do homem pelo homem. Mas não apenas pela herança que recebemos, e sim porque algo de bom surge com a violência, a escravidão e a injustiça. Em 1886, Nietzsche retoma o fôlego da reflexão anterior de modo ainda mais direto. Afirma que: “Nós acreditamos que a severidade, a violência, a escravidão, o perigo em cada rua e no coração, o secretismo, o estoicismo, a arte dos tentadores e o diabólico de toda espécie – acreditamos que tudo o que é perverso, terrível, tirânico e predatório serve tanto para a elevação da espécie humana quanto o seu oposto”. Nessa fase do seu pensamento o Nietzsche já havia desenvolvido a concepção da Vontade de Potência (Assim Falou Zaratustra, 1885) e a pulsão do indivíduo não apenas em preservar a própria vida (a Vontade de Vida de que falava Schopenhauer, em um sentido negativo), mas em superar-se constantemente a si mesmo através do eterno vir-a-ser do indivíduo, substancializando o além-do-homem (Übermensch) que só é possível para a “casta de seres seletos” que não é explorada pelo trabalho. O terrível, o tirânico, o predatório seria o caminho para essa Vontade de Potência, a submissão do coletivo à opressão daqueles que devem ascender.

Que fique claro, não nos podemos resignar a qualquer ilusão humanitária sobre a história de origem de uma sociedade aristocrática (isto é, a condição preliminar para a elevação do tipo “humano”): a verdade é dura. Reconheçamos sem preconceitos como é que as civilizações superiores se originaram! Homens dotados de uma natureza natural, bárbaros em todo o terrível sentido da palavra, homens predadores, ainda na posse de uma inquebrantável força de vontade e desejo de potência, atiravam-se sobre raças humanas mais pacíficas, mais fracas, mais morais, ou sobre velhas sociedades amadurecidas nas quais a força vital final bruxuleava em rutilantes fogos de artifício de espírito e devassidão […] Aqui se deve pensar profundamente e resistir a toda fraqueza sentimental: a vida em si mesma é essencialmente apropriação, violação, conquista do mais fraco pelo mais forte, supressão, severidade, intromissão das formas peculiares, incorporação, e para dizer de alguma maneira direta, exploração […] essa é a encarnação da Vontade de Potência (Para Além do Bem e do Mal, capítulo IX, § 257 e 259).

A “Vontade de Potência” é a tradução da voracidade da subjetividade burguesa em seu período de decadência, o desejo de exploração, de brutalidade e opressão que viria a sublinhar a atividade das grandes potências capitalistas na virada do século. Nas anotações de Nietzsche da época de A Genealogia da Moral (1887) encontramos pensamentos ligados à necessidade de um novo reino de terror (burguês), e em seus prolegômenos para A vontade de potência (de publicação póstuma, 1901), Nietzsche aponta os novos bárbaros como futuros senhores. Tais noções estão intimamente conectadas com a repulsa à razão. “Por que tememos e odiamos um possível retorno à barbárie? Por que ela faria os homens mais infelizes do que são? Ai, não! Os bárbaros de todos os tempos tinham mais felicidade: não nos iludamos! – O fato é que nosso impulso ao conhecimento é forte demais para que ainda sejamos capazes de estimar a felicidade sem conhecimento ou a felicidade de uma ilusão forte, firme […] O conhecimento em nós se transmudou em paixão; sob o ímpeto e o sofrimento dessa paixão, teria de se acreditar mais sublime e consolada do que até agora, quando ainda não havia superado a inveja pelo bem-estar mais grosseiro que acompanha a barbárie” (Aurora, Livro V, § 429). Em sua conclusão apoteótica, Nietzsche explica: “Sim, odiamos a barbárie – preferimos ver sucumbir a humanidade a ver regredir o conhecimento!” (ibid.).

Socialismo e a utilização do conhecimento para revolucionar o mundo

Naturalmente, o contraponto a Nietzsche não significa aderir a uma apologia acrítica à ciência e à razão. Tais potências do desenvolvimento da espécie humana não são neutras, e por si mesmas não podem resolver os problemas fundamentais colocados pela sociedade moderna. No capitalismo, suas forças criadoras são utilizadas para incrementar a exploração do trabalho e privar a imensa maioria da humanidade de seus benefícios, e do mero acesso a sua utilização livre. É necessário arrancar as forças produtivas das mãos da burguesia para ressignificar as funções criadora do humano, planificando democraticamente os recursos econômicos sobre a base de uma nova forma de produção, poupando energia e descortinando a conquista do tempo necessário para o refinamento intelectual e artístico do conjunto da sociedade – na medida em que a ciência e arte, definitivamente, não se opõem.

O que nos interessa aqui é a associação estabelecida por Nietzsche entre a razão e a revolução social, a ponto de encontrar uma ponte entre Sócrates e o socialismo. A compreensão racional do mundo e a reflexão de como subverter a ordem era uma característica da dialética socrática para Nietzsche, uma arma da plebe contra a aristocracia. O materialismo dialético aparecia como a manifestação mais perigosa dessa “arma” contra o capitalismo em decadência. Era necessário combatê-lo com mais agressividade. Como apontava Lukács, havia uma diferença na abordagem nietzscheana da luta antissocialista em relação a seus predecessores, positivistas e evolucionistas. De acordo com os apologistas medíocres do capitalismo, “darwinistas sociais”, era preciso derrubar todos os impedimentos para que a luta pela sobrevivência operasse sem nenhum controle, uma vez que isso resultaria inelutavelmente na vitória dos “fortes”, dos mais adaptados ao ambiente da competição fratricida e exploratória do capital. Nietzsche discorda dessa abordagem, e considera que, pelo contrário, as condições “normais” da luta social pela sobrevivência levarão inevitavelmente os “fracos” (os trabalhadores, as massas, o socialismo) a uma posição de comando. Medidas firmes deveriam ser tomadas para evitar tal desenlace. O combate à ciência, ao conhecimento, à busca pelo entendimento das condições e circunstâncias de funcionamento da sociedade, da anatomia do capitalismo, era um aspecto fundamental de sua ética como “profeta” da barbárie imperialista, antecipador de novos tipos de domínio que poderiam impedir a ascensão do proletariado. Limitando o alcance do conhecimento e da razão – criando a oposição entre o conhecimento e a felicidade da barbárie – Nietzsche acreditava colocar limites à própria possibilidade da revolução.

É deveras curioso que Nietzsche associe a ciência e a razão com a Revolução. É uma espécie de homenagem ao próprio socialismo, que pode utilizar tais ferramentas em benefício de uma nova forma de civilização e organização da vida humana. Efetivamente, ambas não se opõem à arte e à cultura, mas se combinam numa totalidade rica, que na reflexão socialista tende a generalizá-las a toda a humanidade. Em seu estudo A Revolução Traída (1936), Trótski argumenta que não há nenhum limite preestabelecido para os avanços da ciência humana, e todos os marxistas clássicos se admiravam com as descobertas científicas que poderiam ajudar a organizar a vida humana sobre novas bases sociais. Diz Trótski, “O capitalismo prepara as condições e as forças da revolução social: a ciência, a técnica, a classe trabalhadora. O marxismo considera o desenvolvimento da técnica como o recurso principal do progresso, e constrói o programa comunista sobre a dinâmica das forças produtivas. Não temos a menor razão científica para fixar de antemão qualquer limite a nossas possibilidades técnicas, científicas, industriais e culturais”. A inteligência artificial, as redes móveis de comunicação, o big data, a computação em nuvem e a internet das coisas – modernas aquisições do nosso general intellect – permitem ampliar vastamente a reflexão sobre como seria uma sociedade socialista de transição que, aproveitando o melhor da experiência revolucionária, seria muito diferente daquela iniciada na Rússia em 1917.

Todos esses elementos técnicos, que hoje são utilizados pelos capitalistas para destruir os nervos e músculos dos trabalhadores, para aumentar a exploração do trabalho, para devastar a natureza e o meio ambiente, poderiam ser utilizados para o benefício da coletividade e da cooperação do trabalho humano numa civilização superior. A planificação da economia, dando toda liberdade aos desejos pessoais, ao mesmo tempo em que organiza as necessidades coletivas, seriam muito facilitadas pelos atuais meios de comunicação e intercâmbio digitais, assim como pelos métodos mais modernos de coleta e análise de dados. O socialismo hoje teria um rosto próprio de acordo com o maior conhecimento da matéria pela ciência e pela razão, em harmonia com a natureza. As faculdades do nosso conhecimento, a ciência e a razão são armas para a revolução, como suspeitava Nietzsche. Podemos nos indagar: não é maravilhoso que uma filosofia de caráter reacionário reconheça que o conhecimento e a sabedoria, a razão em movimento, é uma herança dos escravos insurretos?

Notas de Rodapé

1. Karl Jaspers, Nietzsche: An Introduction to the Understanding of His Philosophical Activity, Johns Hopkins University Press, 1997.
2. Walter Kaufmann, Nietzsche: Philosopher, Psychologist, Antichrist. Princeton University Press, 1950.
3. Vocês desejam viver de acordo com a Natureza? Oh, nobres estoicos, fraudadores de palavras! Imaginem a vocês mesmos um ser como a Natureza, ilimitadamente extravagante, ilimitadamente indiferente, sem propósito nem consideração, sem misericórdia nem justiça, ao mesmo tempo frutífera e estéril e incerta: imaginem-se a si mesmos a indiferença como potência – como vocês poderiam viver de acordo com essa indiferença?” (Para Além do Bem e do Mal, Capítulo I, § 9).
4. Lukács (1952) afirma que Nietzsche viveu uma polêmica contínua com o marxismo e o socialismo, apesar de “estar claro que nunca leu uma linha de Marx e Engels”. Essa afirmação é, no mínimo, questionável. Não há como asseverar categoricamente que tipo de conhecimento Nietzsche possuía das obras de Marx e Engels, e não é impossível que obtivesse informações indiretas na maior parte dos casos. Mas há estudos que indicam que o filósofo alemão sabia da elaboração de ambos, lia autores que os referenciavam, e mesmo estava ciente da revolução de conceitos no socialismo científico. Apesar de nunca tê-los mencionado literalmente, podemos rastrear no centro de sua elaboração filosófica a preocupação em oferecer contrapontos agressivos ao marxismo (como no caso da acumulação primitiva). Thomas Brobjer, em seu trabalho Nietzsche’s knowledge of Marx and marxism, assinala aspectos muito interessantes sobre o tema: “Marx é referido em pelo menos treze livros que Nietzsche lia ou possuía, de diferentes autores; em seis desses livros, Marx é discutido e citado longamente, e num deles Nietzsche sublinhou pessoalmente o nome de Marx. Nietzsche conhecia Marx e o marxismo, estava razoavelmente informado sobre economia política, e seu conhecimento sobre o socialismo e as visões da esquerda eram geralmente bem mais detalhados do que se imagina”.
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