Revista Casa Marx

Sociedade do Cansaço ou Socialismo: Um debate com Byung-Chul Han

Araçá Rivera

No começo da década passada, o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han publicou seu livro Sociedade do Cansaço. Nele, Han argumenta que, diferentemente da sociedade disciplinar diagnosticada por Foucault (anterior aos anos 80), vivemos no neoliberalismo que é a “sociedade do desempenho”, onde o explorado agora se autoexplora — “é agressor e vítima ao mesmo tempo”. Aqui, quero debater aspectos de sua teorização.

A sociedade disciplinar de Foucault, feita de hospitais, asilos, presídios, quartéis e fábricas, não é mais a sociedade de hoje. […] A sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade de desempenho. […] A sociedade disciplinar é uma sociedade da negatividade. É determinada pela negatividade da proibição. […] A sociedade de desempenho vai se desvinculando cada vez mais da negatividade. […] No lugar de proibição, mandamento ou lei, entram projeto, iniciativa e motivação. 1

Assim Han define a mudança que sofreu o capitalismo na passagem do século XX para o século XXI. Teríamos saído de uma sociedade marcada pela repressão (dentro da lógica da biopolítica foucaultiana) para uma sociedade marcada pela lógica do empreendedorismo neoliberal, em que o discurso é que tudo pode ser alcançado desde que se trabalhe o suficiente. Para Han, “A sociedade disciplinar ainda está dominada pelo não. Sua negatividade gera loucos e delinquentes. A sociedade do desempenho, ao contrário, produz depressivos e fracassados”. 2

Quero aqui debater três questões de sua elaboração. Passando pelo seu apontamento das doenças neuronais e o esgotamento psíquico como parte marcante da sociedade sob o neoliberalismo, o que implica passar pelo passo além da micropolítica que configura sua afirmação de que hoje “O explorador é ao mesmo tempo o explorado” e, por fim, pelas implicações estratégicas frente à atual conjuntura convulsiva do cenário internacional.

1. Empreendedorismo: “sofrer silenciosamente o esgotamento”

Han parte de algo concreto no seu diagnóstico quando coloca que “Doenças neuronais como a depressão, transtorno de déficit de atenção com síndrome de hiperatividade (Tdah), Transtorno de personalidade limítrofe (TPL) ou a Síndrome de Burnout (SB) determinam a paisagem patológica do começo do século XXI”. 3 Como parte central da sustentação ideológica para seus projetos hegemônicos sob o neoliberalismo, a burguesia impulsiona com toda força a lógica do empreendedorismo: a expansão da dinâmica de mercado para cada aspecto da vida sob o capitalismo, um altar ao individualismo burguês.

Apontam para uma saída individual — a possibilidade de ascensão social pela via da “inovação”, da “perseverança” e de realização individual no consumo — para tentar esconder que as doenças neuronais ligadas ao excesso de trabalho e condições precárias têm atingido marcas absurdas. No Brasil, cerca de 30% dos trabalhadores sofrem com burnout 4 em um mesmo cenário onde, a modo de exemplo, uma pesquisa realizada pela Diretoria Executiva de Direitos Humanos (DEDH) da Unicamp mostra que a realidade dos entregadores de aplicativo da cidade de Campinas, em sua maioria negros, é que majoritariamente trabalham todos os dias, mais de um terço por mais de 70 horas por semana, em jornadas marcadas por

Privação de sono, alimentação irregular, hidratação precária, condições climáticas extremas, episódios de níveis pressóricos alterados [que] combinam-se de forma perversa com condições de trabalho cada vez mais degradadas e degradantes

Os casos de suicídio decorrentes da extrema precarização do trabalho e da vida e seus impactos subjetivos também tem crescido. Casos marcantes como o de Luiz Felipe, jovem trabalhador brasileiro do Mercado Livre que se suicidou em 2023 após ser demitido, e de Xu Lizhi, jovem trabalhador e poeta chinês que se suicidou em 2014 frente às condições desumanas de trabalho na fábrica-cidade Foxconn, escancaram o futuro que o capitalismo reserva à juventude trabalhadora por baixo das promessas de se tornar um “jovem milionário”.

Versos de Xu como “Oficina, máquina de montagem, cartão de ponto, horas extra, salário./ Me treinaram para ser dócil./ Não sei gritar ou me rebelar,/ Como me queixar ou denunciar,/ somente como sofrer silenciosamente o esgotamento.” mostram a face do sofrimento psíquico fruto da exploração, da precarização do trabalho e da fragmentação da classe trabalhadora que é marca da reestruturação da força de trabalho desde o avanço do neoliberalismo nos anos 80 até hoje.

Mas se o filósofo sul-coreano parte de algo concreto quando aponta o crescimento das doenças psíquicas sob o neoliberalismo, erra grosseiramente quando tenta apontar a origem do problema.

“O que torna doente, na realidade, não é o excesso de responsabilidade e iniciativa, mas o imperativo do desempenho como um novo mandato da sociedade pós-moderna do trabalho”, diz Han. Para além de se questionar aonde foram parar a precariedade do trabalho, o desemprego, as jornadas exaustivas e qualquer outra questão física da exploração do trabalho que são ausentes na visão de Byung-Chul Han, imagino que venha ao leitor outro questionamento: um imperativo de desempenho colocado por quem?

Como vimos, para Han, a “sociedade do desempenho” não é mais a sociedade repressiva “feita de hospitais, asilos, presídios, quartéis e fábricas”, mas uma sociedade marcada pela “positividade”. Ora, se completamente distante de enxergar o aparelho real que mantém a exploração burguesa da classe trabalhadora que é o Estado capitalista, a micropolítica foucaultiana defende que o poder é algo difuso, espalhado entre todas as relações humanas em uma “biopolítica”, quem explora quem no neoliberalismo?

2. A biopolítica estende seu tapete ao neoliberalismo

Perdoem-me a citação longa, mas creio ser necessária:

O poder que sustenta o sistema da sociedade disciplinar e industrial era repressivo. Trabalhadores eram explorados brutalmente pelos donos das fábricas. Essa exploração estrangeira violenta dos trabalhadores levava, então, a protestos e resistências. Era possível aqui uma revolução que derrubasse a relação dominante de produção. Nesse sistema repressivo não só a opressão mas também o opressor são visíveis. Há um opositor concreto, um inimigo visível contra quem se opor.
O sistema dominante neoliberal está estruturado de uma maneira completamente diferente. O poder que o sustenta não é mais repressivo, mas sedutor, ou seja, fascinante. Não é tão visível quanto era no regime disciplinar. Não há mais um opositor concreto, um inimigo que oprime a liberdade e contra o qual seria possível fazer uma resistência.
O neoliberalismo moldou o trabalhador oprimido em um empreendedor livre, um empreendedor de si mesmo. Cada um é hoje um trabalhador autoexplorado de seu próprio empreendimento. Cada um é senhor e escravo na mesma pessoa. A luta de classes também se transformou em luta interior consigo mesmo. 5

Aqui reside o núcleo central da argumentação de Han. Em sua concepção, sob o neoliberalismo, não há mais uma opressão ou exploração exterior a si, mas cada um se autoexplora, existe em uma “luta de classes interior” ao indivíduo que é como uma mescla de “burguês-de-si-próprio” e “proletário-de-si-mesmo”. O próprio cansaço, fruto dessa “autoexploração”, é um cansaço “solitário, que atua individualizando e isolando” na visão de Han. Como de praxe dos autores pós-modernistas, Han enxerga uma ausência de totalidades: o mundo seria o confuso retrato da justaposição dos cacos esparsos do espelho quebrado da pós-modernidade.

Mas a realidade é que a exploração do trabalho, a extração pela burguesia da mais-valia do trabalho da classe trabalhadora, segue sendo o pilar estruturante do capitalismo. No quesito ideológico, a concepção da sociedade como um conjunto de indivíduos isolados em competição uns com os outros surge com a burguesia e é radicalizada pelo neoliberalismo. O pilar da ideologia burguesa, sustentada sobre a ideia de “liberdade” e sobre esse mesmo individualismo, é justamente apagar as classes sociais que são a estrutura do sistema capitalista.

Mas o individualismo burguês, a pressão por desempenho, as concepções do empreendedorismo não chegam em nós por algum acaso. O fortalecimento ideológico do empreendedorismo tem suas bases materiais na própria precarização do trabalho e nas novas dinâmicas de trabalho uberizado e dos mecanismos de gamificação do trabalho. No caso brasileiro, tenhamos em mente a aprovação da reforma trabalhista de 2017 que permitiu que um trabalhador seja considerado autônomo mesmo que preste serviços de forma fixa a algum tipo de empregador, ou seja, se apaga a relação reforçando a propaganda de “empreendedor de si mesmo”. Junto a isso, os novos mecanismos de gamificação nas plataformas que impulsionam a competição entre os trabalhadores e reforçam a lógica de despender cada vez mais esforço em troca de melhores resultados.

Junto a isso, em resposta ao fortalecimento do movimento operário no século XX, a burguesia e seu Estado entram em cena para diretamente organizar o consenso na sociedade, em um processo no qual o Estado se “amplia” e setores como as burocracias sindicais ou a Indústria Cultural se tornam parte desse “Estado ampliado” ou “Estado Integral”. Assim, a serviço de garantir a dominação burguesa, somos bombardeados, durante toda nossa vida, por músicas, filmes, novelas e as mais diversas produções ditadas pela Indústria Cultural recheadas de “ostentação” que nos introjetam as concepções do empreendedorismo, das saídas individuais, para moldar nossa consciência e nublar qualquer horizonte de revolta. Afinal, “basta se esforçar mais” hão de dizer milhares de coaches e “empreendedores de sucesso”.

Por outro lado, as burocracias atuam como posto avançado do Estado Burguês desde dentro do movimento operário e dos movimentos sociais para conter as expressões de revolta e enfrentamento ao Estado. Isso nos leva a um ponto crítico: na obra de Han, assim como em Foucault, o Estado é pulverizado e não representa mais a ferramenta direta de dominação de uma classe. As próprias classes não existiriam mais. Em termos práticos, essa concepção restringe os horizontes a resistências individuais que são incapazes de operar qualquer mudança estrutural. Ou, como disse Daniel Bensaid, “o fato de considerar ’modestamente’ o capitalismo um conjunto incoerente, simples colagem de dominações justapostas e não um todo governado por uma lógica imanente, permite conciliar as resistências parciais e pontuais com a subordinação global à dominação do sistema”. 6

Fato é que se por um lado a exploração capitalista, responsável pelo acúmulo de capital da burguesia e pela “paisagem patológica” que vemos hoje, segue existindo, por outro lado a classe trabalhadora é portadora potencial de novas relações de cooperação, de uma força social e produtiva com um potencial criador, tanto no terreno econômico como no político, que pode abrir caminho para uma nova sociedade. O que nos leva ao terceiro aspecto da obra de Byung-Chul Han que abordaremos aqui: sua crença no estabelecimento definitivo do neoliberalismo.

3. Sociedade do Cansaço ou Socialismo?

Há uma questão estratégica chave que se depreende da argumentação de Han: da autoexploração, da impossibilidade de resistência, ele conclui a estabilidade do neoliberalismo, seu estabelecimento definitivo enquanto sistema, e a impossibilidade das revoluções.

Mas a realidade não poderia estar mais distante. Se há algo que as últimas décadas tem demonstrado, é que após a derrota do ascenso de 1968-1981 a burguesia superestimou seu triunfo. Seus propagandistas falaram do fim do trabalho, do fim da luta de classes, da desaparição da classe trabalhadora enquanto esta, vista por inteiro, se expandiu como nunca antes na história. Fato é que a derrota de 68-81 deu uma sobrevida ao capitalismo, mas este foi incapaz de reverter suas condições históricas de declínio como sistema social.

A sede da burguesia por lucro é insaciável e pode ser combatida. Enquanto tenta argumentar que “não é possível explicar o neoliberalismo pelo marxismo”, Han fixa seus olhos tão insistentemente sobre a queda do muro de Berlim que não vê que estamos hoje muito mais próximos da “queda do muro de Wall Street” em 2008.

Debater a “estabilidade” do neoliberalismo tem que passar por debater a capacidade dirigente da burguesia enquanto classe. Por um lado, vivemos um momento de crises orgânicas ao redor do mundo (Argentina, EUA, Brasil, França), com questionamentos profundos à capacidade dirigente da burguesia, restando seu papel dominante. Isso se dá em meio a um interregno convulsivo na situação internacional, marcado pelos impactos da crise de 2008, pela guerra na ucrânia e a escalada do genocídio na Palestina e do conflito regional no Oriente Médio, bem como por revoltas (que ainda não evoluíram ao ponto de se tornarem revoluções) como vimos no Bangladesh, onde estudantes e trabalhadores têxteis derrubaram o governo da “dama de ferro do sudeste asiático”. Ou seja, numa etapa histórica em que se reatualizam as tendências gerais da época imperialista de crises, guerras e revoluções: um momento de crises de hegemonia frente à dificuldade de, em meio à crise e à guerra, produzir condições de vida que façam com que as massas populares se sintam integradas pela via do bem-estar material.

Por outro lado, e justamente por isso, o capitalismo em nossa época de crises de hegemonia se apoia muito mais tanto no uso da coerção (pensemos aqui por exemplo a escalada da brutalidade policial com chacinas pelo Brasil) e na bonapartização dos regimes (aprovação por decreto da reforma da previdência na França, por exemplo), quanto na ideologia. Junto à fragmentação da classe trabalhadora, com o avanço do neoliberalismo se fortaleceu a ideologia do empreendedorismo ao mesmo tempo em que o socialismo foi retirado do imaginário da classe trabalhadora e das massas populares (também pelo papel traidor do stalinismo, da social-democracia e dos nacionalismos burgueses que falaram em nome do socialismo). Pós-2008 vemos isso também com o avanço ideológico da extrema-direita na América Latina, nos EUA e ao redor da Europa como resposta ao fracasso dos neorreformismos.

A questão é justamente que frente aos elementos de crise do neoliberalismo, não há para o capitalismo um projeto hegemônico alternativo como foram o fascismo e o americanismo, nem há uma luta de hegemonias como a que marcou o século XX a partir da Revolução Russa de 1917. O neoliberalismo sobrevive em seu declínio, mas o terreno para a luta de ideologias se reabre e com ele a possibilidade do horizonte de transformar o projeto de um “socialismo desde abaixo” em força material.

Esboçando uma teoria das mudanças dos regimes políticos no seu famoso prefácio à História da Revolução Russa, Trótski diz que as instituições de uma sociedade não se modificam conforme esta necessita, mas ao contrário mesmo quando estão em profunda crise podem seguir-se décadas em que as forças de oposição não fazem mais que atuar como “válvula de escape” para o descontentamento das massas, garantindo a manutenção do regime dominante. Enquanto a “autoexploração” de Han é parte também de nublar os horizontes possíveis de revolta, sabemos que contra a miséria do neoliberalismo, contra o reacionarismo da extrema-direita e para superar as burocracias que entravam a luta atuando como “válvula de escape”, é preciso pôr de pé o sujeito histórico da nossa época: a classe trabalhadora. Para isso, é necessário um programa revolucionário, que defenda, entre outras coisas, uma escala móvel de salários — seu constante reajuste de acordo com a inflação para garantir a renda dos trabalhadores — e uma escala móvel das horas de trabalho — atacando de morte a jornada 6×1, reduzindo a jornada de trabalho sem redução salarial e dividindo o trabalho existente entre empregados e desempregados.

Apenas a luta da classe trabalhadora aliada aos negros, mulheres, LGBTs, indígenas e demais setores oprimidos pode dar uma resposta de fundo à barbárie capitalista e construir uma sociedade livre de toda opressão e exploração: não uma Sociedade do Cansaço, mas uma sociedade socialista.

NOTAS

1. HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis, RJ: Vozes. 2015.
2. Idem
3. Idem
5. HAN, Byung-Chul, Por que hoje uma revolução não é possível? In: Capitalismo e impulso de morte: Ensaios e entrevistas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2021.
6. BENSAID, Daniel. Os Irredutíveis. Boitempo. p.88
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