Mateus Castor
Da ação do tempo na matéria à ação da matéria no tempo
“O pressuposto de uma espécie de dependência automática de uma ditadura proletária em relação às forças e recursos técnicos de um país é um preconceito derivado de um materialismo “econômico” extremamente simplificado.” 1
Talvez Trotsky buscasse criticar apenas a concepção menchevique da revolução russa quando proferiu tais palavras. Aqueles que acabaram por governar junto a Kerensky defendiam a revolução burguesa e uma decorrente etapa de desenvolvimento burguês na Rússia. A revolução socialista somente seria possível após décadas e décadas de evolução social, econômica e política à luz deste mesmo processo, já ocorrido, nas potências capitalistas européias. Acabou que a carapuça serviu a toda uma árvore genealógica teórica, burguesa e reformista.
Ocorre que os mencheviques russos inspiraram-se na concepção de desenvolvimento de sociedades capitalistas dos social-democratas europeus, estes, por sua vez, em intelectuais liberais.
A questão sobre a interação entre tempo, espaço e seres vivos ocupou o centro da reflexão teórica no século XIX. Com a erupção no pensamento burguês causada pela teoria de Darwin, concomitante à um sistema mundial de exploração e opressão, com séculos de experiência colonialista em contato com novos “espaços e tempos”, a intelligentsia capitalista recorria as bases do evolucionismo biológico para estabelecer uma leitura universal da História. Nela, a sociedade burguesa estava no topo de uma série de etapas de desenvolvimento econômico, social e político que os povos no mundo atravessaram, atravessam e atravessariam em sua história – sinteticamente: selvageria, barbárie e civilização.
Outros povos e seus sistemas sociais eram não só inferiores, como também, agora consolidada, a civilização burguesa era o cûme da montanha. As potências capitalistas irradiavam pelo mundo sua ideologia do progresso, que colocava o capitalismo como um destino inescapável para a prosperidade dos povos. Tal programa foi adotado com fulgor pelas classes dominantes de todo o globo, transformadas, por consenso ou coerção, em socias menores das potências imperialistas européias. No âmbito social, aquele que é considerado o fundador da antropologia moderna, Lewis Henry Morgan, foi quem estabeleceu com a maior complexidade, até então, as diferentes esferas da vida social, seus tipos e suas etapas de desenvolvimento.
O século XIX foi quando o pensamento burguês refletiu a transformação da realidade, não mais vista como estática e eterna – tal qual os seculares regimes dos senhores feudais e de sua base ideológica monárquica e cristã – mas sim dinâmica e perecível. Impensáveis para um suserano ou camponês médio do século V, o acúmulo de mudanças quantitativas e saltos qualitativos que demoravam séculos na sociedade feudal, agora ocorriam em um piscar de olhos se comparado à escala temporal anterior:
“A burguesia revelou como a brutal manifestação de força na Idade Média, tão admirada pela reação, encontra seu complemento natural na ociosidade mais completa. Foi a primeira a provar o que a atividade humana pode realizar: criou maravilhas maiores que as pirâmides do Egito, os aquedutos romanos, as catedrais góticas; conduziu expedições que empanaram mesmo as antigas invasões e as Cruzadas”
Marx, Engels e Rosa Luxemburgo estudaram Morgan. A obra A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado de 1884 é fruto de um estudo de Engels das obras do americano. Rosa, provavelmente em 1916, escreveu um manuscrito para suas aulas de formação de quadros social-democratas, no qual exalta Morgan em contraposição à outros “antropólogos” imperialistas, os manuscritos chamavam-se A sociedade comunista primitiva e A dissolução da sociedade comunista primitiva. Vale relembrar que Trotsky, por sua vez, possui diversas anotações sobre o darwinismo.
De fato, a direção do proletariado não ficou à revelia de apropriar-se da mais contundente propaganda burguesa contra as bases ideológicas do Antigo Regime. O pensamento social burguês, expresso por um dos fundadores da antropologia, refletia um modo de produção inédito, que de forma inédita, era global. Morgan expressava a síntese teórica do imperialismo a respeito das diversas sociedades que dominava. Uma forma rebuscada de entender, partindo de um materialismo burguês, a evolução de outros povos do mundo. Se, por um lado, Morgan desmanchava no ar qualquer noção de permanência imutável na vida social, um golpe fatal na teologia de dominação nobiliárquica, por outro lado sua teoria elevou a sociedade burguesa como o novo modelo à ser alcançado por todas as nações e povos do mundo, que deveriam seguir os mesmos passos das grandes nações burguesas. Contudo, Morgan não localizava a sociedade burguesa como o fim da História – da volta da imutabilidade – pelo contrário.
“(…) A simples busca da riqueza não é o destino da humanidade se o progresso deve continuar a ser a lei do futuro como foi no passado. O tempo decorrido desde os primórdios da civilização não é senão uma pequena fração da vida passada da humanidade, apenas um pequeno fragmento do tempo que vem pela frente. A dissolução da sociedade pesa como uma ameaça sobre nós como conclusão de uma jornada histórica cuja única meta é a riqueza; semelhante trajetória contém nela mesma os elementos do seu próprio aniquilamento. A democracia na administração, a fraternidade na sociedade, a igualdade de direitos, a educação universal, devem inaugurar o próximo nível superior da sociedade, pelo qual trabalham constantemente a experiência, a razão e a ciência. Esta etapa fará reviver – mas sob uma forma ainda mais elevada – a liberdade, a igualdade e a fraternidade das antigas gentes”. 2
Morgan combateu com as ferramentas do iluminismo – experiência, razão e ciência – partindo dos princípios da Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade – o pensamento social medieval. Também deixou claro que a lei da acumulação pela acumulação levaria o capitalismo a sua própria destruição. Por vezes, apenas visto na antropologia contemporânea como mais um “etnocêntrico racista”, é necessário fazer justiça por suas contribuições, da mesma forma que pontuar os seus limites.
É um dado observável que o capitalismo fez de suas forças produtivas uma potência de impacto global nunca antes vista, graças ao acúmulo de capital vindo de séculos de exploração colonial e a formação da classe trabalhadora. Para os comunistas, o problema, então, seria justamente libertar as forças produtivas das relações de produção capitalistas. Leia-se: que a classe trabalhadora tome o poder da burguesia internacionalmente. Entretanto, nesta apropriação teórica do evolucionismo burguês, adicionou-se apenas mais uma “fase superior” da civilização: o cûme agora, da progressão de estágios – da selvageria, barbárie até a civilização – seria a fase superior da civilização, a civilização proletária.
A social-democracia européia, desta forma, incorpora como base de sua teoria revolucionária a leitura evolucionista da interação entre tempo, espaço e sujeitos. As consequências estratégicas foram diretas. Plekhanov, em sua luta contra os populistas russos que desconsideravam a necessidade de medidas burguesas na Revolução Russa, que idealizavam uma sociedade indeterminada construída por oprimidos, reafirma a necessidade de que a ainda persistente Rússia feudal deveria ser superada pela Rússia capitalista. Para chegar à etapa socialista, seria necessário décadas e mais décadas na etapa capitalista, para que, apenas assim, com as condições nacionais existentes com o “progresso” capitalista, fosse possível a classe operária tomar o poder. Assim fizeram as nações europeias, assim deveria fazer a Rússia, e o mesmo destino esperava qualquer povo e nação que saíra atrasado na corrida mundial pela acumulação de capital. Cabia, então, ao movimento operário russo, não a luta pelo poder, mas sim apoiar a burguesia liberal, destinada, segundo o modelo evolucionista, à tomada do poder naquele presente estágio de desenvolvimento russo.
No século XIX, a intelectualidade refletiu sobre as ações do tempo e espaço na matéria morta e viva – da geologia à biologia e história. Uma inversão dialética surge e, no início do século XX, grandes teóricos vão emergir ressaltando as ações da matéria no tempo e espaço. No mesmo ano, 1879, nasceram Leon Trotsky e Albert Einstein. Em 1905, o alemão publicava sobre a Teoria da Relatividade Restrita enquanto Trotsky, diante da primeira Revolução Russa, formulava sua Teoria da Revolução Permanente, sendo a Lei do Desenvolvimento Desigual e Combinado um de seus pilares. Se o físico alemão observava que o espaço-tempo era uma entidade geométrica unificada, o revolucionário ucraniano ressaltava que tempo e espaço sociais deveriam ser, da mesma forma, vistos de forma unificada enquanto parte de uma mesma totalidade geométrica – esférica, global – capitalista. Este método, que já era utilizado por Engels e Marx em suas obras, tomou corpo estratégico na concepção trotskista de que a transformação das relações feudais de produção no campo para relações capitalistas – enfatizando a reforma agrária junto à Lênin – só poderia ser conquistada se a classe operária tomasse o poder e atacasse, justamente, não só a grande nobreza czarista dona de terras, mas também atacasse a própria propriedade da burguesia.
Assim como Einstein se apropria do princípio da relatividade de Galileu, no qual afirma que não há sistema de referência absoluto pelo qual todos os outros movimentos possam ser medidos, não havia porquê a classe trabalhadora russa partir da necessidade de se restringir à referência histórica de desenvolvimento europeu como um destino absoluto e inescapável. A matéria social viva, a classe operária – partindo da localização desta classe no espaço da luta de classes russa – poderia utilizar de seu enorme peso gravitacional na sociedade czarista para agir sobre aquele determinado tempo e espaço. Tal concepção ia frontalmente contra toda a lógica linear e etapista. As etapas, assim, não eram saltadas, mas fundiam-se, justamente por serem determinadas pela mecânica e dinâmica presente no processo em si, na experiência prática russa, que não repetiria fatalmente o passado europeu:
“Podemos por ponto final às questões propostas pela revolução afirmando que a nossa é burguesa por seus fins e objetivos e, em conseqüência, por seus resultados inevitáveis. Corremos então o perigo de fechar os olhos diante do fato de que o principal agente desta revolução burguesa é o proletariado, e de que todo processo da revolução empurrará este ao poder […]. Podemos nos tranqüilizar com a idéia de que as condições sociais da Rússia não estão maduras ainda para uma economia socialista, e nos negarmos assim a considerar o fato de que o proletariado, uma vez no poder, se verá inevitavelmente empurrado, pela própria lógica da sua situação, a introduzir uma economia controlada pelo Estado […]. O próprio ato de entrar no governo não como hóspedes impotentes mas como força dirigente, permitirá aos representantes do proletariado quebrar os limites entre o programa mínimo e o máximo, isto é, colocar o coletivismo na ordem do dia. Em que ponto se deterá o proletariado, dependerá das relações de forças, não das intenções originais do seu partido […]”. 3
Trotsky expressa no pensamento teórico social um salto fundamental ao ver o papel do agente para o desenvolvimento da realidade em si. Neste sentido, a luta de classes não deve ser tratada seguindo um “tipo ideal” de desenvolvimento, mais próximo à abordagem weberiana do que marxista. Os revolucionários não buscam encaixar a realidade dentro de modelos x ou y. Segundo os fundamentos da dialética, a teoria como tal expressa a generalização da prática. Assim fez a teoria burguesa em sua luta contra a nobreza e o fez e faz a teoria do proletariado na luta contra a burguesia, da mesma forma, o faz a burguesia contra o proletariado. Com as transformações inevitáveis da realidade, a teoria deve buscar na experiência prática novos conceitos e formas de ler a realidade. Para o marxismo revolucionário, que se posta como a ciência da transformação consciente da realidade social, é o movimento real e a interação entre fatores estruturantes e os sujeitos que na realidade atuam que fundamentam os prognósticos teóricos e suas consequências estratégicas. 4 Seguindo este fundamento do materialismo histórico-dialético, Trotsky formulou em 1905 a Teoria da Revolução Permanente. A luta de classes, em Outubro de 1917 provou de forma definitiva que sua leitura da Revolução Russa era correta.
Não é a realidade que persegue as transformações na teoria, é a teoria que sempre deverá perseguir as transformações da realidade. Contudo, não foram apenas as alas direitas da social-democracia europeia e o menchevismo que decidiram fazer a realidade em movimento perseguir a teoria – no caso um modelo ideal de desenvolvimento da luta de classes. Ocorre que os stalinistas inspiraram-se nos mencheviques russos, que inspiraram-se na concepção dos social-democratas europeus, que inspiraram-se em intelectuais liberais burgueses.
Por volta de 1923, quem passaria a costurar a nova roupagem do evolucionismo seria a burocracia soviética. Surgia, assim, o stalinismo. Mais uma nova camisa de força do destino.
NOTAS:
1. TROTSKY, Leon. Três concepções da Revolução Russa, 1939
2. A sociedade comunista primitiva e sua dissolução, pg. 39
3. Antes de 9 de Janeiro, Leon Trotsky
4. Recorremos à ilustre passagem do 18 de Brumário de Luis Bonaparte sobre a ação dos homens na História