Daniel Kóvacs
[De Nova York] A crise vinda de cima e a luta de classes vinda de baixo estão transformando um regime bipartidário em decadência e criando um “momento pós-neoliberal”, abrindo caminhos tanto para o autoritarismo quanto para uma maior atividade da classe trabalhadora e dos oprimidos. Essas tensões se acentuam à medida que os resquícios da antiga ordem política colidem com as características emergentes de um novo momento. Este artigo foi publicado originalmente em inglês em 26 de junho na Left Voice Magazine, revista teórica da Left Voice, que integra a Rede Internacional do La Izquierda Diario.
Um novo momento no regime bipartidário
A crise do neoliberalismo tem minado os regimes políticos em todo o mundo, dando origem a crises orgânicas de diferentes intensidades 1 . O regime bipartidário dos EUA foi particularmente impactado. Afinal, os Estados Unidos estiveram no epicentro da crise econômica de 2008, e esta foi seguida por uma série de fenômenos políticos de grande alcance, tanto dentro como fora das fronteiras do regime: o movimento Tea Party, o Occupy Wall Street, a revolta do Black Lives Matter (BLM) em 2014, as primárias de Sanders e Trump, a vitória de Trump em 2016 e o levante do BLM em 2020, para citar os principais 2 .
Diversos acadêmicos e especialistas, de diferentes orientações políticas, têm analisado os altos níveis de polarização (assimétrica) do país. Alguns vão além, tentando desvendar as raízes mais profundas do momento político atual. Dois dos exemplos mais convincentes são Illiberal America, de Steve Hahn, e The Rise and Fall of the Neoliberal Order, de Gary Gerstle. Hahn constrói seu argumento explorando como o liberalismo e o antiliberalismo estão profundamente entrelaçados, desafiando a visão simplista de um progresso contínuo — ainda que problemático — rumo a uma América mais justa 3. Gerstle adota uma abordagem mais específica sobre a ordem neoliberal. Ele mobiliza o conceito de “ordem política”, desenvolvido em The Rise and Fall of the New Deal Order, para analisar a erosão dos principais pilares do neoliberalismo: o livre comércio, o governo limitado e a privatização — elementos que ganharam nova profundidade com a restauração capitalista da antiga União Soviética.
Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, que se tornaram best-sellers com Como as Democracias Morrem, analisam em A Tirania da Minoria a relação entre a Constituição e o retrocesso democrático recente. Seu escopo é mais limitado que o de Hahn e Gerstle e, como é comum na ciência política tradicional, concentram-se nos mecanismos institucionais do regime bipartidário. No entanto, trazem à tona o motim profascista ocorrido em Paris em 6 de fevereiro de 1934, seguido da resposta limitada do regime francês e suas consequências para o fim da Terceira República. Eles o fazem para enfatizar a importância dos “democratas semileais” e sua conivência com a extrema-direita na erosão da democracia francesa, em referência ao 6 de janeiro 4. Trazer os eventos de 1934 em Paris para analisar o cenário político atual dos EUA corresponde a uma interpretação que se foca unilateralmente nas instituições políticas e supervaloriza os elementos fascistas do momento atual. Como analisarei adiante, na época, Itália e Alemanha já eram regimes fascistas e nazistas, e a “polarização política” se expressava por meio das forças da revolução e da contrarrevolução.
Desenvolvo essa comparação a partir de outra perspectiva, pois, ao contrário da tese dos autores, não foram os “democratas semileais” os responsáveis pela erosão da Terceira República, mas sim o avanço do fascismo na Europa, possibilitado pela política traidora e pela aberta colaboração de classes por parte do Partido Comunista e da socialdemocracia europeia, que, por sua vez, mantiveram a classe trabalhadora e os oprimidos atrelados ao programa da burguesia.
Dialogando com as obras mencionadas acima, este artigo analisa aspectos importantes de como o neoliberalismo moldou o regime bipartidário, abrindo caminho para níveis ainda mais profundos de degradação do regime à medida que a crise orgânica se intensifica. Utilizo a definição de Gerstle sobre o fim da ordem neoliberal e a compreensão de Hahn sobre a veia antiliberal inerente à política dos EUA para traçar a dinâmica que levou ao 6 de janeiro de 2021; e questiono a analogia feita por Levitsky e Ziblatt com o 6 de fevereiro de 1934, considerando-a útil, mas limitada por ignorar dinâmicas políticas centrais daquele período — o que leva a uma má interpretação de sua relevância atual.
Na seção final, analiso os desafios enfrentados pelo regime bipartidário diante da decadência do imperialismo dos EUA. Com as tensões geradas pela atual administração Trump — que combina uma retórica populista com um programa de austeridade e ataques diretos aos imigrantes —, além da luta de classes de forma mais ampla e da crescente militarização global, o cenário está sendo preparado para um período propenso a mudanças abruptas na situação política. Em outras palavras, a crise orgânica se intensificou e uma administração Trump mais bonapartista é, ao mesmo tempo, causa e consequência desse processo.
Nos Estados Unidos, a luta de classes ainda não foi o fator predominante que impulsionou a crise orgânica. No entanto, fenômenos importantes emergiram de baixo. Nos últimos anos, a juventude tem se mostrado mais simpática ao socialismo, e o movimento sindical tem adotado uma postura mais ativa na política nacional. Greves e campanhas de sindicalização cresceram, ainda que as taxas gerais de sindicalização continuem em declínio. Analisar as bases da atual crise do regime bipartidário é essencial para compreender o potencial do surgimento de uma luta de classes mais aguda — e como ela pode ser orientada para a independência de classe.
Problemas liberais, soluções antiliberais
Hahn cobre um amplo espectro, desde os primeiros anos do Império Britânico até o primeiro mandato de Trump. Com um domínio convincente da historiografia dos Estados Unidos, Illiberal America lança luz sobre os traços repressivos, autoritários e coercitivos dos EUA, enraizados em sua essência desde os primórdios. Em especial, Hahn demonstra que esses elementos já estavam presentes no início da colonização, questionando uma visão teleológica da história rumo à liberdade baseada na propriedade privada e nos direitos políticos.
Mais próximo dos acontecimentos contemporâneos, Hahn sustenta que os “impulsos fascistas” estavam profundamente enraizados na sociedade civil e em setores do regime nas décadas de 1920 e 1930. Como exemplo, a Legião Americana — uma sociedade de veteranos de guerra dos EUA que surgiu para esmagar o movimento operário — foi “subsidiada por grandes corporações e pela Associação Nacional dos Fabricantes, e mobilizou milícias para reprimir greves e atacar organizadores sindicais, especialmente à medida que o Congresso de Organizações Industriais (CIO) começava a se expandir” 5. Hahn então destaca a reorganização ideológica e política da extrema-direita nos Estados Unidos do pós-Segunda Guerra Mundial. As ameaças representadas pela União Soviética e os direitos políticos básicos da população negra intensificaram a sensação de mudança indesejada para amplos setores da sociedade norte-americana. No entanto, as tendências antiliberais não vieram apenas por meio do macartismo, de George Wallace ou da retórica da “lei e ordem” de Nixon; elas continuaram ganhando força nas décadas seguintes. Com base em From the War on Poverty to the War on Crime (Da guerra contra a pobreza à guerra contra o crime), de Elizabeth Hinton, Hahn aponta a intensificação da repressão estatal contra as comunidades negras e a militarização da polícia como indicadores do neoliberalismo nos EUA. Nessa perspectiva, a presidência de Trump surgiu como resultado de uma política dominante que já havia fortalecido as corporações; atacado trabalhadores, direitos democráticos e minorias; e esvaziado os resquícios do estado de bem-estar social 6. Sua natureza e política se encaixam em uma iteração aguda da dinâmica profunda em jogo, que Hahn capta com precisão: nos Estados Unidos, “as soluções antiliberais sempre parecem ser o recurso para os problemas liberais detectados” 7.
A veia particular da “solução antiliberal” presente nos Estados Unidos atuais é rastreada por Gerstle, que argumenta que a ordem neoliberal chegou ao fim na década de 2010, embora importantes traços do neoliberalismo ainda persistam. Uma ordem política — conceito que ele desenvolveu em seu trabalho anterior sobre o New Deal com Steve Fraser — refere-se a um período em que a economia, a política e a ideologia, de modo geral, operam dentro de limites definidos por essa ordem, em uma dinâmica de reforço mútuo 8. Nesse contexto, as diferenças entre as elites políticas e ideológicas não são insignificantes, mas orbitam em torno de um acordo geral. A ordem neoliberal se estabeleceu como resposta à decadência da ordem anterior, baseada no New Deal. Durante décadas, a ordem neoliberal “convenceu a grande maioria dos norte-americanos de que o livre mercado libertaria o capitalismo de controles estatais desnecessários e estenderia a prosperidade e a liberdade pessoal a todos os americanos e, posteriormente, ao mundo” 9. Isso contrastava com a ordem do New Deal, que se baseava na aceitação do Estado como ator na configuração da sociedade, na contenção do poder corporativo e na expansão do governo federal, entre outros atributos.
Gerstle enfatiza que a crise econômica da década de 1970 foi fundamental para a ascensão do neoliberalismo. No centro das décadas turbulentas de 1960 e 1970 estavam as tensões entre classes, cheias de oportunidades para a classe trabalhadora. O neoliberalismo foi forjado ao longo de um extenso período, mas sua implementação foi um processo árduo, resultado da luta de classes e marcado por contingências. Embora os Estados Unidos tenham saído da guerra como o país capitalista mais forte, foram forçados a compartilhar o mundo com a União Soviética. Apesar de a burocracia soviética ter continuado a atuar como conciliadora de classes sempre que possível, sua existência ainda representava um desafio direto aos EUA.
Uma intensa luta de classes eclodiu logo após a Segunda Guerra Mundial e se prolongou nas décadas seguintes. Conflitos mais decisivos ocorreram na periferia do mundo logo após a guerra, como foi o caso da Grécia. Nos países imperialistas, as décadas de 1960 e 1970 foram marcadas por grandes movimentos contra a guerra (incluindo a vibrante luta nos EUA contra a guerra do Vietnã), lutas radicais pelos direitos civis e alianças entre estudantes e trabalhadores. O neoliberalismo se consolidou devido a essa correlação particular de forças, que dependia da derrota de lutas importantes em escala mundial. É essencial compreender como esses confrontos e tensões políticas moldaram a ordem em transformação; do contrário, o neoliberalismo (ou qualquer outra “ordem” segundo a definição de Gerstle) pode parecer um fenômeno com vida própria, desconectado das tensões mais profundas entre as classes 10.
O custo político do neoliberalismo
Durante o New Deal e o neoliberalismo, não surgiram novos partidos políticos relevantes nos Estados Unidos, e o regime manteve suas características. No entanto, a relação entre a classe trabalhadora e o bipartidarismo mudou substancialmente. O New Deal incorporou a classe trabalhadora ao eleitorado do Partido Democrata, assim como a população negra e outros grupos minoritários. A primeira ganhou o apoio da administração Roosevelt graças à sua estreita relação com os sindicatos, o que ajudou a sufocar expressões mais radicais da luta de classes e integrar a sindicalização em massa emergente ao bipartidarismo. A segunda foi incorporada ao eleitorado democrata por meio da legislação dos direitos civis.
A flexibilidade nunca foi uma característica do regime político dos EUA; no entanto, ele se tornou ainda mais rígido com o passar das décadas, após o fim da segregação racial e durante o período neoliberal. Houve uma dupla transformação: o longo processo de migração dos Dixiecrats (democratas do Sul) para o Partido Republicano, e dos republicanos de tendência mais liberal para o Partido Democrata. Isso foi acompanhado por uma redução na colaboração bipartidária e o surgimento de diferenças mais profundas sobre os rumos desejados para o país, moldadas dentro do marco do neoliberalismo. É importante entender esse processo como resultado de uma mudança programática em ambos os partidos. O Partido Republicano consolidou seu conservadorismo, enquanto os democratas buscaram integrar em suas fileiras o crescente bloco de eleitores minoritários. A reorganização dos dois partidos tensionou o regime bipartidário vigente, levando à atual rigidez da atividade legislativa convencional. Em outras palavras, o atual regime paralisado pode ser entendido como um “custo político” do neoliberalismo. Os efeitos duradouros dessa dinâmica latente foram mitigados enquanto o neoliberalismo permaneceu como ordem política: por mais acentuadas que fossem as diferenças entre os partidos, havia um interesse comum em manter as bases do neoliberalismo.
A crise econômica de 2008 desferiu um duro golpe nessa ordem. Os Estados Unidos foram seu epicentro, e suas repercussões geraram réplicas vindas de baixo, como o Occupy Wall Street, o Tea Party e as campanhas de Trump e Sanders em 2016. Enquanto o neoliberalismo se desintegrava, o regime político funcionava com as mesmas características gerais. De modo geral, isso se manteve até 6 de janeiro de 2021. Nesse momento, Trump já havia desmantelado o Partido Republicano, mas sua administração ainda operava, em grande medida, dentro dos limites existentes — ainda que já anunciasse mudanças que poderiam se concretizar, caso surgisse a oportunidade. Naquele dia, uma tentativa de restaurar o bipartidarismo foi colocada em marcha, e embora tenha demonstrado certo nível de “reserva” por parte do regime e sido crucial para conter uma crise mais profunda, tais medidas foram de curta duração. No fim das contas, revelaram as limitações do establishment político desenvolvidas ao longo do neoliberalismo.
As transformações que ocorrem dentro do Partido Republicano sob a liderança de Trump apontam para uma adaptação aos desafios do momento pós-neoliberal. Nesse sentido, o 6 de janeiro marcou um ponto de inflexão, e suas repercussões abriram espaço constitucional para o Poder Executivo por meio do caso Trump contra Estados Unidos, fortalecendo assim a atual administração Trump. Ao mesmo tempo, é impossível compreender a ascensão de Trump dentro do Partido Republicano e sua vitória em 2024 sem considerar o papel da aquiescência do Partido Democrata: apegado à defesa do status quo, sem força política para aprovar a maior parte da “bidenomics” e agarrando-se ao “antitrumpismo” como expressão da escassez de ideias em suas fileiras.
Paris 1934 e o 6 de janeiro
O dia 6 de janeiro de 2021 marcou o ponto culminante da crise orgânica nos Estados Unidos. O ataque ao Capitólio por apoiadores do MAGA, aplaudidos por um presidente derrotado que tentava subverter as eleições, mostrou ao mundo a dimensão dos desafios enfrentados pelo regime bipartidário. Em A tirania da minoria, Levitsky e Ziblatt analisam o 6 de janeiro e os desafios à democracia nos EUA hoje, por meio do exemplo histórico dos distúrbios profascistas em Paris, em 6 de fevereiro de 1934. Em ambos os casos de guinadas autoritárias, os autores destacam a centralidade dos atores que chamam de “democratas semileais”, ou seja, aqueles que cedem às ameaças à democracia por conveniência política.
Na França, os primeiros anos após a crise de 1929 foram menos severos do que em outros países europeus. Suas instituições políticas sobreviveram relativamente bem, em comparação com, por exemplo, Itália e Alemanha. Mas em 1934 a situação mudou: a crise econômica havia se agravado, provocando polarização social e política. Diversas ligas profascistas haviam sido formadas nos anos anteriores. Elas se uniram em 6 de fevereiro na Praça da Concórdia, em Paris, para lançar um ataque à Terceira República Francesa e repudiar o governo de coalizão do Partido Socialista Francês com o Partido Radical. Embora não tenha havido um golpe de Estado, milhares de manifestantes fascistas, liderados por milícias, marcharam até a Câmara dos Deputados e tentaram ocupá-la. O tumulto foi encerrado naquele mesmo dia, mas não antes do confronto entre forças antifascistas e a polícia causar 17 mortes. O episódio antecipou os horrores que viriam, mas, ainda mais importante, mostrou que o fascismo era uma possibilidade real para a França do entre-guerras. Gravemente afetada pela recessão dos anos 1930 e sentindo as consequências sociais e políticas da Primeira Guerra Mundial, a França estava em crise, com as forças reacionárias, a classe trabalhadora e os oprimidos assumindo a iniciativa.
Para Levitsky e Ziblatt, os “democratas semileais”, na figura da Federação Republicana, desempenharam papel decisivo no colapso da democracia parlamentar na França. Os conservadores foram excessivamente condescendentes em sua resposta aos distúrbios fascistas e abandonaram o comitê criado para investigar os eventos de 6 de fevereiro. Nas palavras dos autores: “O relatório resultante do comitê foi praticamente ineficaz. Diante da falta de responsabilização pelos eventos de 6 de fevereiro, a democracia francesa ficou gravemente enfraquecida. Em seis anos, estaria morta.” De forma liberal, os autores analisaram os acontecimentos com foco nas instituições políticas, como se sua autonomia relativa fosse quase absoluta. No entanto, durante esses seis anos, a situação política mudou, e a luta decisiva se deu em outros campos. No centro do palco não estavam nem os democratas semileais nem os leais, mas sim os trabalhadores, as organizações operárias e os partidos socialista e comunista, ainda que com perspectivas distintas. A França, nesses anos decisivos, foi palco de uma das primeiras experiências de frente popular. Em maio de 1935, o ministro das Relações Exteriores francês, Pierre Laval, e o ministro soviético, Maksim Litvinov, assinaram o Tratado de Assistência Mútua. Esse tratado marcou uma mudança brusca da política ultraesquerdista do chamado “Terceiro Período” para uma aberta colaboração de classes; uma de suas consequências foi que a União Soviética passou a apoiar o rearmamento militar da França. A Frente Popular francesa foi retoricamente racionalizada pelo Partido Comunista como exemplo da tática da “frente única”, elaborada pela Terceira Internacional em 1921 e 1922.
De fato, foi tudo menos uma frente única. A frente única é uma tática orientada a unificar as forças da classe trabalhadora contra a burguesia. Ela implica em pressionar as diferentes direções da classe trabalhadora — como sindicatos, federações sindicais, partidos socialistas (como o SFIO na França, na época), comunistas e outras organizações — a se unirem em torno de um objetivo específico. A independência política total, incluindo a liberdade dos envolvidos para criticar a política de outros partidos ou grupos, é de vital importância. Por meio de uma experiência política comum na luta de classes que una as fileiras da classe trabalhadora, e com uma orientação correta por parte dos grupos revolucionários, a frente única pode acelerar o desenvolvimento de um partido revolucionário de massas e colocar em pauta a necessidade de um governo operário — nesse contexto, como forma de evitar o fascismo e a guerra 11.
A Frente Popular, por outro lado, é um bloco entre a direção da classe trabalhadora e partidos burgueses. Quando o Partido Comunista se uniu à Frente Popular, supostamente representava os interesses nacionais. Mas, na realidade, o objetivo da Frente Popular é subordinar os interesses e a política da classe trabalhadora aos de seus inimigos de classe. Antes do fim da Terceira República Francesa com a invasão do exército alemão, houve uma onda massiva de mobilização operária, com ocupações de fábricas (que inspiraram as greves da UAW em Detroit) e confrontos nas ruas entre forças antifascistas e fascistas. Expandir essa onda rumo a uma política operária hegemônica era o único caminho para evitar a catástrofe do fascismo e da Segunda Guerra Mundial. No entanto, a adoção da estratégia da Frente Popular na França, Espanha e em diversos outros países, incluindo os Estados Unidos, excluiu sistematicamente essa possibilidade.
Trump 2.0 em meio a um regime enrigidecido
As tensões no regime político dos EUA estão intrinsecamente ligadas à luta de classes. Se olharmos para a França de 1934, a política traidora do stalinismo — que oscilava entre o ultraesquerdismo e a Frente Popular — teve um papel crucial em impedir uma resposta da classe trabalhadora. O regime político, a estrutura dos partidos majoritários e a ausência de um partido comunista forte estão entre as diferenças entre a França de 1934 e os Estados Unidos atuais. A posição da França na política internacional naquela época e a dos EUA hoje também diferem significativamente. No entanto, o episódio de 1934 e suas consequências lançam luz sobre tendências gerais relevantes para os EUA hoje — e não pelas razões apontadas por Levitsky e Ziblatt.
Trump 2.0 está diretamente ligado ao 6 de janeiro. O ataque ao Capitólio representa o ponto mais fraco do regime político estadunidense desde a Segunda Guerra Mundial. O comitê para investigar o 6 de janeiro não foi tão pro forma como o comitê francês: ele serviu de base para o segundo processo de impeachment (derrotado) contra Trump. O FBI, já sob tensão e dividido, prendeu mais de 900 pessoas, e a extrema direita foi colocada na defensiva. No entanto, o Partido Republicano rapidamente optou por abraçar Trump novamente. Os “democratas semi-leais” seguiram o caminho do apaziguamento, revertendo a rejeição anterior a Trump por causa do 6 de janeiro 12. A decisão da Suprema Corte sobre o 6 de janeiro determinou que presidentes não podem ser responsabilizados por crimes cometidos durante o mandato — uma decisão histórica que abriu caminho para um Executivo mais forte. As consequências do 6 de janeiro também são responsabilidade dos democratas, que fizeram de tudo para canalizar o movimento Black Lives Matter para as urnas e depois conter e “administrar” os desafios vindos dos sindicatos e do movimento palestino.
A vitória de Trump se apoiou numa coalizão de diferentes blocos de capital e numa base MAGA composta por setores da classe média, rural e trabalhadora. A agenda complexa de Trump contrasta com o pouco que o Partido Democrata tem a oferecer. Com base no Projeto 2025 e sua vasta rede de think tanks, o Trump 2.0 é uma tentativa de combinar um Executivo mais forte — em detrimento do Congresso —, a aquiescência da Suprema Corte ao Executivo e um programa de austeridade “clássico”. Uma ideologia populista ferozmente anti-imigrante tenta articular e justificar esses componentes díspares por meio de um programa xenófobo e nacionalista. No entanto, os acontecimentos recentes em Los Angeles demonstraram os limites significativos dessa retórica para manter coesa essa coalizão. A inépcia do Partido Democrata empurrou parte das big techs para o lado de Trump, atraídas por promessas de incentivos fiscais, desregulamentação e a garantia de que o Estado não interferirá em seus negócios.
Ao contrário de algumas interpretações, o governo Trump não está atuando para reduzir o tamanho do Estado em si; em vez disso, está politizando o aparato estatal herdado do pós-Segunda Guerra. Após a guerra, o Estado dos EUA expandiu-se drasticamente. A imposição da nova posição do país na ordem internacional, um Executivo fortalecido e um Estado mais centralizado levaram à criação de uma miríade de agências, departamentos e programas federais. A “ordem” do New Deal aumentou os poderes do governo federal, mas manteve os direitos estaduais e a segregação racial. Após a Segunda Guerra Mundial, principalmente por meio da legislação dos direitos civis, o governo federal assumiu os “poderes policiais” dos estados, desafiando a “supremacia” destes. Trump busca desmontar e reorganizar seletivamente esse aparato burocrático para concentrar poder no Executivo, sob o pretexto de “drenar o pântano”.
Como resultado, está emergindo um bonapartismo mais forte em comparação com o primeiro mandato 13. A natureza profundamente antidemocrática do regime político (mantida por ambos os partidos) favorece desproporcionalmente o Partido Republicano no Congresso. Somando-se à capacidade de Trump de usar a máquina estatal contra seus inimigos e recompensar seus aliados, o Partido Republicano tem cedido ativamente a autoridade tradicional do Congresso. A maioria conservadora na Suprema Corte favorece Trump e suas ambições presidenciais. No entanto, isso não equivale a um apoio incondicional; como em vários outros temas, a Suprema Corte não renunciará completamente à sua independência institucional.
A resistência contra as operações do ICE e os sequestros em Los Angeles reintroduziu a luta de classes aberta no tabuleiro da crise orgânica. As mobilizações em Los Angeles foram protagonizadas por trabalhadores, jovens e setores populares que escapam do alcance dos sindicatos; a resposta morna desses últimos aos escandalosos ataques contra imigrantes indica sua adaptação tanto ao regime bipartidário quanto às camadas mais conservadoras de suas bases. Nos últimos anos — com exceções importantes como o BLM em 2020 —, a crise orgânica foi mais intensa dentro dos limites do regime bipartidário. As exigências do novo momento têm colidido com o regime enrijidecido, numa dinâmica em que o Partido Democrata — partido do statu quo — tem arcado com o preço por tentar evitar que a crise transborde os limites do regime. E o preço é alto, pois até agora a defesa do regime tem sido feita às custas do próprio partido. As direções sindicais têm sido colaboradoras decisivas. A administração Biden pode ser entendida como a inserção de lideranças da esquerda progressista nos projetos políticos do governo, combinada com uma semiparalisia legislativa imposta por sua ala mais abertamente conservadora — num esforço constante para manter as questões da classe trabalhadora e dos oprimidos fora da política.
A administração se concentra em muitos objetivos complexos, alguns interconectados e outros contraditórios. Aos poucos já mencionados, é preciso acrescentar o reposicionamento dos Estados Unidos no cenário mundial. A guinada “nacionalista” testemunha o acentuado declínio da hegemonia norte-americana após 2008; as tarifas impostas por Trump também podem ser consideradas um método caótico de buscar essa redução a partir de uma posição de iniciativa. “Trump Always Chickens Out” (Trump sempre amarela), popularizado nas redes sociais pela sigla TACO, surge do conflito entre a ambição desse projeto e os desafios enfrentados por uma potência mundial em decadência. A Europa respondeu com um aumento considerável dos gastos militares. Isso, por si só, já exigiria a total atenção da administração, que, no entanto, se vê às voltas com outras frentes de luta.
Nesse cenário político, a administração se vê obrigada a extrapolar seus limites, o que aumenta as tensões entre Trump e seus adversários políticos, tanto no plano interno quanto no externo. Isso também injeta maior volatilidade à situação, forçando seus alvos a reagirem. A irrupção da luta de classes — como a resistência às batidas migratórias em Los Angeles — molda e reconfigura essas reações, exacerbando-as ainda mais. Diversos esforços foram feitos para reduzir as tensões contornando Trump, desde a tentativa de apaziguamento entre o governo federal e o estado da Califórnia até o lobby de setores do capital financeiro contra tarifas tão elevadas; no entanto, esses movimentos consomem os atores envolvidos, aumentam as tensões e têm resultados imprevisíveis. Esses desdobramentos também são provocados pela postura da administração em relação à política internacional, o que, por sua vez, afeta sua própria coalizão e, até certo ponto, o regime. No momento em que este texto é escrito, Trump afirmou que os ataques dos Estados Unidos à infraestrutura nuclear iraniana impuseram, de fato, um cessar-fogo entre Irã e Israel, após este último atacar bases militares iranianas e o primeiro retaliar com ataques em solo israelense. O ataque de Trump ao Irã gerou fortes críticas de figuras públicas do movimento MAGA, como Steve Bannon e Tucker Carlson, entre os exemplos mais proeminentes. A situação está longe de chegar ao fim.
As repercussões da luta de classes determinam e reconfiguram, em parte, um regime desgastado pelo fim da ordem mundial neoliberal. É em resposta a esse terreno em transformação — tanto de cima, por parte do Estado e suas instituições, quanto de baixo, por parte da classe trabalhadora — que a antiga ordem política e os traços emergentes deste novo momento se entrechocam, coexistindo em tensão mútua tanto no plano nacional quanto no internacional. Isso cria as condições para mudanças bruscas na situação política, tanto à direita — sob a forma de aprofundamento do bonapartismo e de medidas autoritárias — quanto à esquerda — com um grau maior de atividade da classe trabalhadora e dos oprimidos. A possibilidade de uma “desescalada”, por mais custosa e imprevisível que seja, é um ativo essencial do regime. Ainda que o movimento operário nos Estados Unidos tenha vivenciado um impulso nos últimos anos, impulsionado pelo Black Lives Matter, pela Geração U e pelo movimento em defesa da Palestina, que revitalizou o movimento estudantil, o nível geral da luta de classes no país não justifica um ataque frontal por parte de forças fascistas para preservar os interesses do imperialismo estadunidense. Não vivemos sob o fascismo nos Estados Unidos, já que a burguesia financeira ainda não jogou sua última carta na mesa; tampouco há um armamento massivo da pequena burguesia com o objetivo de destruir as instituições da classe trabalhadora e a democracia capitalista. A situação política também não está isenta de tendências fascistas, já que o bonapartismo as contém em si. Em 1934, Trotsky argumentou contra o Partido Comunista Francês e aqueles que baseavam sua orientação política em uma distinção clara entre a democracia capitalista e o fascismo: “entre a democracia parlamentar e o regime fascista, uma série de formas de transição, uma após a outra, se interpõem inevitavelmente, ora ‘pacificamente’, ora por meio da guerra civil”. As tensões entre uma estabilização relativamente provisória do regime bipartidário, o desenvolvimento de traços bonapartistas — ou mesmo o aumento da atividade da classe trabalhadora e dos oprimidos — não se decidirão apenas no cenário nacional. As iniciativas da classe trabalhadora e dos oprimidos em todo o mundo — da Palestina à Europa, Ásia, África e América Latina — moldarão as respostas da burguesia imperialista. Neste interregno, apenas ações decididas da classe trabalhadora e dos oprimidos podem combater o avanço da extrema direita e, ao fazê-lo, defender seus interesses históricos.
NOTAS
1. Como explorei em artigos anteriores, “O conceito gramsciano de crise orgânica entrelaça três componentes: 1) os antagonismos entre os ‘representantes’ e os ‘representados’; 2) o questionamento da capacidade da classe dominante para dirigir a nação; e 3) uma crise da autoridade estatal. O surgimento da crise orgânica nos Estados Unidos foi resultado da crise do neoliberalismo e impulsionou diferentes setores da sociedade à ação no contexto dessa crise de hegemonia”.
2. Após a data da publicação original deste artigo na Left Voice, ocorreu a vitória de Zohran Mamdani, membro dos Democratic Socialists of America (DSA), nas primárias do Partido Democrata para a prefeitura de Nova York. Essa vitória foi analisada em artigos posteriores.
3. Hahn relembra ao leitor o conteúdo completo de “Cidade sobre a colina” de John Winthrop…
4. Segundo os autores, “os democratas semileais, em contraste com os democratas leais, negam ou minimizam os atos violentos ou antidemocráticos de seus aliados. Podem atribuir a violência a operações de ‘falsa bandeira’. Podem minimizar a importância do comportamento antidemocrático, desviar as críticas chamando a atenção para comportamentos semelhantes (ou piores) do outro lado, ou justificar ou tolerar os atos de outras formas. Os semileais frequentemente tentam conciliar os dois lados: expressam sua desaprovação pelos métodos dos perpetradores ao mesmo tempo que simpatizam com seus objetivos. Ou simplesmente podem permanecer em silêncio diante dos ataques violentos à democracia.” Levitsky e Ziblatt, Tyranny of the Minority, pp. 43-44.
5. Hahn continua: “De fato, a Legião fazia parte de uma ampla rede de grupos mais recentes e organizações consolidadas pelas quais as ideias fascistas podiam circular e encontrar um público receptivo.” Hahn, Illiberal America, p. 239.
6. Ibid., pp. 342–343.
7. Ibid., p. 173.
8. Fraser, Steve, e Gary Gerstle (orgs.), The Rise and Fall of the New Deal Order, 1930-1980. Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1989.
9. Gerstle, The Rise and Fall of the Neoliberal Order, p. 297.
10. Como resume Emilio Albamonte: O neoliberalismo foi uma solução reacionária para aquela indefinição na correlação de forças resultante do desfecho contraditório da Segunda Guerra Mundial, cuja resolução havia sido postergada pela “ordem de Yalta” — daí sua significação histórica. Foi imposto com ditaduras na América Latina — no Chile, Bolívia, Argentina, etc. — que serviram como “exemplo”. Derrotaram greves muito fortes, como a dos mineiros ingleses, as greves na Itália, a greve dos controladores de voo nos EUA sob o governo de Reagan, que havia paralisado a economia norte-americana. Após derrotar esses e muitos outros processos, e se expandir para a China, entre outras questões, conseguiram o importante período de relativa estabilidade chamado neoliberalismo, impondo essa ideologia que teria sido a “mais bem-sucedida da história”, como dizia Perry Anderson. Isso foi o que se esgotou em 2008.
11. Em 1921 e 1922, quando a tática foi formulada, ela se apoiava nos Partidos Comunistas, que naquele momento não tinham influência hegemônica entre a classe trabalhadora, para expandir seu alcance e liderar amplos setores da classe trabalhadora e dos oprimidos. Com a política termidoriana do stalinismo, a Oposição de Esquerda e, posteriormente, o movimento por uma Quarta Internacional, continuaram o caráter revolucionário da tática.
12. Levitsky e Ziblatt explicam: “O líder da maioria no Senado, Mitch McConnell, e o líder da minoria na Câmara dos Representantes, Kevin McCarthy, seguiram o manual do semilealista à risca. Engajaram-se na política de apaziguamento durante todo o governo Trump, consentindo com seu comportamento antidemocrático e protegendo-o do impeachment e da destituição. Tanto McConnell quanto McCarthy sabiam que Biden havia vencido as eleições de 2020 e estavam preocupados com a recusa de Trump em aceitar a derrota. Ambos ficaram consternados com a insurreição de 6 de janeiro, culparam Trump por ela e disseram em privado a seus colegas que ele deveria ser destituído. […] No entanto, quando ficou evidente que a maioria dos eleitores republicanos continuava leal a Trump, os líderes do Partido Republicano voltaram ao apaziguamento.” Levitsky e Ziblatt, Tyranny of the Minority, pp. 126–127.
13. O bonapartismo refere-se a uma forma de governo que surge da incapacidade da burguesia de governar como antes. Apoia-se mais diretamente no aparato estatal, na burocracia, no Executivo e nas Forças Armadas, em detrimento do Congresso. Seu objetivo é defender a propriedade privada e impor a ordem, evitando ao mesmo tempo confrontos decisivos.