Revista Casa Marx

Trump, o “revisionismo” americano e o ocaso do “Ocidente”

Juan Chingo

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Os Estados Unidos diante do limite de sua hegemonia

Mais do que seu estilo caótico e seu aparente desinteresse por coerência doutrinária, Donald Trump evidencia e expressa uma fissura no sistema internacional: a hegemonia americana, surgida após a Segunda Guerra Mundial e consolidada após a queda da União Soviética, já não é mais sustentável. Seu diagnóstico, mais do que uma ruptura, é uma reinterpretação radical: para que os Estados Unidos recuperem sua primazia, devem renunciar ao exercício da hegemonia mundial.

Dentro dessa lógica, o governo Trump redefine o papel internacional do país não como um garantidor da ordem liberal global, mas como um ator revisionista. Ficam para trás as velhas pretensões de preservar uma ordem multilateral: agora, o objetivo é assegurar, por meio de pressão econômica, ameaças veladas e chantagens diplomáticas, uma nova distribuição de poder mais favorável a Washington. O “revisionismo” de Trump se articula, portanto, não a partir de uma posição de ascensão, mas da consciência de um declínio relativo 1  . É a reação furiosa de uma superpotência que sente que o sistema que criou já não lhe traz benefícios.

A crença de que a hegemonia americana chegou ao fim é fundamental para a visão da “nova direita”, que tem se tornado cada vez mais influente em Washington. No fim de janeiro, o secretário de Estado Marco Rubio expressou isso da seguinte forma: “Não é normal que o mundo tenha simplesmente uma potência unipolar”, observou. “Isso foi uma anomalia. Foi produto do fim da Guerra Fria, mas com o tempo o mundo voltaria a ser multipolar”. Ou, como escreveu em 2021 Elbridge Colby, recentemente confirmado como chefe de política do Pentágono: “Durante a última geração, uma nação exerceu um poder militar sem igual [e] dobrou o sistema financeiro internacional à sua vontade”. Para seus aliados, “a tutela dos Estados Unidos era fácil, sua carga leve, certamente em comparação com outros hegemons reais ou aspirantes da história. Esses dias chegaram ao fim” 2 .

As políticas contraditórias do trumpismo

Sob sua visão imperial, os Estados Unidos precisam de tempo para se reconstruir (indústria, forças armadas, economia), mas, contraditoriamente, suas ações geopolíticas aceleram os conflitos em vez de esfriá-los, o que gera um choque entre suas necessidades estratégicas reais e suas ações táticas imediatas. A guerra comercial em curso é a ilustração máxima: ainda que a política comercial de Trump tenha uma lógica estratégica clara (reindustrialização, independência econômica), sua aplicação errática e agressiva pode enfraquecer os EUA no longo prazo, deteriorando alianças 3 , freando investimentos e acelerando a transição para uma ordem multipolar.

Do ponto de vista estratégico do acirramento da competição e da confrontação entre grandes potências, não faltam razões para reindustrializar os EUA. Embora os Estados Unidos ainda liderem nos setores digital, financeiro e de serviços, isso não esconde o fato de que perderam força como potência industrial — e isso pode ter consequências graves. Trump é o primeiro mandatário a reconhecer abertamente essa adversidade. O estrategista e historiador reacionário Edward Luttwak, defensor das medidas de Trump, afirma sem rodeios:

 […] os editorialistas do Wall Street Journal e do Financial Times, todos adoradores do livre comércio, estão indignados… A verdade é que, sem uma indústria de construção naval civil, a Marinha dos Estados Unidos só consegue fabricar protótipos extremamente caros, e não os 200 navios de guerra de que precisamos. O mesmo ocorre em outros setores, incluindo a aviação civil: a Boeing está com anos de atraso na entrega de aviões-tanque para as forças aéreas dos EUA e seus aliados (os israelenses precisam depender de aviões de passageiros convertidos de 65 anos de idade) e também está muito atrasada no cumprimento dos pedidos de companhias aéreas comerciais em todo o mundo. Por quê? Por causa do colapso de centenas de oficinas mecânicas, que antigamente formavam trabalhadores qualificados que podiam ser realocados para qualquer fábrica da Boeing em caso de necessidade… A menos que a economia industrial dos EUA seja reconstruída com força, as forças armadas americanas terão que importar seus veículos e armas. De onde? Provavelmente da China — boa sorte com isso.4

O que há de novo é o vínculo crescente entre poder tecnológico, capacidade industrial e soberania estratégica. Afinal, não há poder tecnológico sem capacidade industrial, sem manufatura. A figura de Palmer Luckey funciona como símbolo dessa transição de uma fase “startupeira”, dependente de cadeias globalizadas (especialmente chinesas), para um modelo de reindustrialização com propósito geopolítico. Em certo sentido, pode-se dizer que ele representa uma síntese entre o Vale do Silício e o complexo industrial-militar. Sua referência ao “Arsenal da Democracia” é chave. Roosevelt a usou em 1940 para justificar a mobilização industrial dos EUA em apoio aos aliados durante a Segunda Guerra Mundial, mesmo antes da entrada oficial dos americanos no conflito. Hoje, Luckey retoma essa narrativa, mas num contexto marcado por tensões com a China, dependência tecnológica e novos teatros de conflito, como o ciberespaço e a inteligência artificial. A manufatura já não é apenas uma questão econômica, mas de segurança nacional. E a Anduril, empresa que ele dirige, encarna essa ideia, fabricando drones autônomos, torres de vigilância e sistemas de inteligência artificial para a defesa. A aposta é que apenas com controle industrial próprio será possível sustentar a inovação tecnológica e, ao mesmo tempo, garantir independência estratégica.

Essa constatação material, política e estratégica do enfraquecimento do poder americano é a base do aspecto “pacifista” do trumpismo: os Estados Unidos não podem lutar contra uma potência (quase) equivalente. É um problema material: os EUA não têm munição, soldados nem capacidade de produção para uma guerra em larga escala. Após trinta anos de desinvestimento na base industrial de defesa, até esvaziá-la, não podem resolver suas deficiências no curto prazo. Politicamente, o abuso da força por décadas, em uma variedade de conflitos sem objetivos claros — portanto, infinitos e invencíveis —, corroeu a disposição popular para sacrifícios em nome do rearmamento. Por fim, estrategicamente: dado que seus rivais estão cada vez mais alinhados, há o receio de que, se os EUA entrarem em guerra em uma frente (China), também acabarão em outra (Rússia ou Irã); contudo, desde 2018, o Pentágono admite que já não é capaz de lutar em dois fronts ao mesmo tempo. Por todos esses motivos, é preciso evitar a qualquer custo uma guerra contra grandes potências.

Mas esse aspecto “cauteloso” do trumpismo na confrontação militar com as grandes potências se combina com uma nova doutrina imperial, na qual as tarifas, longe de serem ferramentas conjunturais, transformaram-se em instrumentos de estratégia geoeconômica. Em vez de fomentar a abertura para moldar aliados, Washington hoje utiliza seu mercado como arma para extrair recursos, investimentos e concessões políticas. Essa nova agressividade imperial se baseia em três pilares: controle de matérias-primas, soberania tecnológica e subordinação dos aliados. Os Estados Unidos precisam de territórios que lhes forneçam energia, minerais e alimentos. Precisam proteger suas indústrias críticas da concorrência chinesa. E buscam garantir que seus parceiros — da Europa ao México — comprem produtos americanos, invistam em solo norte-americano e financiem o déficit fiscal por meio da compra de dívida. De forma mais geral, como dissemos, Trump transformou os Estados Unidos no principal ator “revisionista” do século XXI. O país que promoveu o multilateralismo, a liberalização comercial e a diplomacia institucional agora despreza abertamente esses princípios. Sua nova lógica é a da transação bruta, da retaliação, da ameaça. Como se o hard power fosse o único idioma válido. A estratégia é clara: usar o peso econômico, militar e financeiro dos Estados Unidos para reconfigurar as regras do jogo global. E se isso implicar sancionar aliados, desmontar instituições internacionais ou impor tarifas abusivas, que assim seja. O objetivo não é reconstruir a ordem liberal, mas extrair de cada relação bilateral o máximo benefício imediato. O soft power fica relegado à nostalgia.

Embora esteja claro que Biden fracassou em manter a credibilidade estratégica dos EUA, para alguns analistas, Trump está escolhendo uma estratégia ainda mais perigosa, ao assumir que pode alcançar estabilidade internacional sem demonstrar força militar real. Embora o magnata nova-iorquino use uma retórica semelhante à de Reagan (“paz através da força”), ele não está fazendo o mesmo: na década de 1980, o ex-presidente norte-americano apostou no rearmamento massivo como base de sua política externa. O trumpismo, apesar de suas políticas agressivas, tem um grande obstáculo: a crise da dissuasão, ou seja, o fato de não conseguir ameaçar seus inimigos de forma crível com o uso da força. Pior: o trumpismo é a constatação de que não se podem cumprir todos os compromissos simultaneamente. A sobreextensão obriga a tomar decisões difíceis: defesa do perímetro norte-americano e prioridade para o Indo-Pacífico. Concretamente, a superpotência militar está se esvaindo. É essa fraqueza estrutural da dissuasão que, em última instância, explica as contradições do trumpismo.

Em outras palavras, o que estamos presenciando é que os Estados Unidos atravessam uma aceleração de seu declínio como potência hegemônica mundial, e que suas tentativas de revertê-lo — especialmente sob a liderança de Trump — agravam sua situação estratégica global. O atual mandatário representa uma tentativa radicalmente distinta de lidar com essa decadência em relação aos seus antecessores mais recentes, mas sua fragilidade estrutural, somada a decisões precipitadas, pode representar o golpe de misericórdia para sua hegemonia global.

A guerra comercial colocará Xi Jinping à prova

 

A retaliação chinesa foi uma resposta contundente às políticas dos Estados Unidos que, intencionalmente ou não, parecem um esforço para desacoplar as duas maiores economias do mundo (ver este artigo de Esteban Mercatante). Do ponto de vista estritamente econômico, a China não consegue infligir tanta dor aos EUA quanto recebe, já que possui um grande superávit comercial e, exceto pelas terras raras, ainda tem mais a perder com os controles de exportação5 . Mas, além disso, a sinalização de Pequim é clara: rejeitará os esforços de dominação dos EUA e está perfeitamente disposta a entrar em uma guerra de desgaste econômico. Ou seja, os líderes da República Popular da China não esperam uma resolução de curto prazo para a guerra comercial. Enxergam o conflito como um sintoma de uma estratégia mais ampla dos Estados Unidos para conter a ascensão da China. Acreditam que concessões agora só convidariam a uma pressão ainda maior dos EUA. Em outras palavras, o conflito é tratado como um desafio estratégico, não como uma crise econômica.

O discurso desafiador e confiante das autoridades chinesas é um reflexo disso. Como destaca François Chimits, economista do Merics, um think tank berlinense especializado na China:

 Um dos pilares da narrativa nacional apresentada por Xi Jinping é que os Estados Unidos querem impedir o desenvolvimento da China. A grande maioria da população chinesa parece concordar com essa opinião. Sem negar os efeitos negativos de uma escalada de curto prazo com os EUA, isso aumenta a capacidade da China de suportar os custos de uma confrontação desse tipo, tornando-a mais resistente econômica e politicamente diante de um choque dessa natureza.”

No entanto, apesar das declarações valentes sobre a superior resistência da China, essa guerra comercial a prejudicará muito mais do que a anterior, em um contexto no qual a economia luta para ganhar fôlego após a COVID-19, pressionada pela persistente crise imobiliária e pela deflação, assim como por uma confiança muito mais fraca do setor privado. Os riscos de um aumento no desemprego preocupam: já em 2023, o desemprego entre os jovens (de 16 a 24 anos) superou os 20%, o que acendeu alertas em Pequim.

Particularmente, um dos principais focos desta guerra comercial será a Ásia, especialmente o Sudeste Asiático. Para escapar das tarifas norte-americanas, empresas chinesas há anos vêm implementando estratégias de “friendshoring”, ou seja, a transferência da produção destinada aos EUA para países amigos de Washington. Os EUA estão conscientes dessa estratégia e é possível que, nas próximas negociações, as relações comerciais com a China ocupem um lugar central nos debates. Os países da região estão entre a cruz e a espada, tendo que escolher entre preservar seu acesso ao mercado americano e manter seus laços com a China, frequentemente um investidor-chave e principal cliente. Mas como diz o economista marxista Romaric Godin:

Em ambos os casos, existe um risco de submissão. Mas isso também é um sinal de que entramos em uma guerra total: as posições intermediárias que os governos do Vietnã, Malásia e Indonésia tentaram manter por quase uma década tornaram-se insustentáveis.

A União Europeia: ausência de autonomia estratégica, mas fiel da balança da disputa geopolítica

Tudo indica uma divisão da economia mundial em zonas tarifárias, com a União Europeia submetida a intensa pressão tanto por parte dos Estados Unidos quanto da China para escolher um lado. Donald Trump oferecerá acordos comerciais sem tarifas a vários países, mas exigirá, em troca, que todos os membros de seu grupo de livre comércio imponham tarifas similares às dos EUA contra a China 6 . A China também tenta pressionar a UE por meio da aplicação extraterritorial de uma proibição à venda de terras raras aos EUA 7 .

Nessa conjuntura, a União Europeia assume o papel de um ator passivo, mas com importância marginal capaz de alterar significativamente o peso da balança na disputa atual. Útil a Washington, caso se transforme de oportunista em peça útil na reconfiguração da ordem mundial que, segundo Trump, restaurará a grandeza dos EUA. Problemática, ou até mesmo adversária, caso a UE se incline para a concorrência chinesa. Dias atrás, o secretário do Tesouro dos EUA, Scott Bessent, advertiu os líderes europeus de que avançar em direção à China “seria como cortar a própria garganta”. O problema para a UE é que ela depende dos EUA para suas exportações, mas da China para suas importações. Trata-se de uma escolha difícil para a UE — e sobre a qual os países do bloco discordam. Polônia e as repúblicas bálticas, por exemplo, são fortemente favoráveis a uma aliança comercial com os EUA, enquanto França e Espanha podem não estar. Por outro lado, Itália e Espanha, em particular, mostraram caminhos divergentes sobre qual deveria ser a resposta às tarifas de Trump. O governo italiano tem sido cauteloso ao se envolver em uma guerra comercial, e a abordagem preferida de Giorgia Meloni é a negociação, como demonstrado em sua reunião com Trump em 17 de abril. Isso já provocou a indignação da França. Por sua vez, Pedro Sánchez, em meio ao enfrentamento comercial, viajou primeiro ao Vietnã e depois à China para se reunir com Xi Jinping, enquanto a resposta do governo espanhol incluiu um pacote de apoio às empresas afetadas, que vem sendo negociado com a oposição.

Mas o grande ponto de interrogação — e ator decisivo — da Europa é a Alemanha. Como diz o economista conservador e chefe do American Compass, Oren Cass:

“Para enfrentar os desequilíbrios comerciais, a Alemanha teria que abandonar seu modelo econômico baseado em exportações e aceitar a necessidade de estimular o consumo interno, comprar mais dos Estados Unidos e enviar mais de seus produtores para se estabelecerem lá. Mas sua economia está em recessão desde 2023… Em vez de enfrentar a ameaça dos concorrentes chineses fortemente subsidiados, os fabricantes de automóveis alemães têm se oposto, em geral, a qualquer tipo de proteção comercial, com medo de que represálias na China ameacem seus lucros de curto prazo. Em vez disso, estão incentivando as empresas chinesas a começarem a fabricar dentro das fronteiras europeias. A República Popular agora detém uma quinta parte da Mercedes. A estratégia dos EUA se baseia na expectativa de que seus aliados mais valiosos prefiram sua parceria à da China, mesmo sob um acordo revisado que lhes exige mais. Na maioria dos casos, isso parece uma aposta segura.” 

Com a Alemanha e a União Europeia, os líderes dos EUA se perguntam se o velho continente tem a vontade — e a capacidade — de resistir à sedução do mercado chinês ou se, pelo contrário, cederá ao pragmatismo de curto prazo.

O ocaso do “Ocidente”

Embora com menos dramatismo do que na semana passada — quando se iniciou uma crise financeira —, a guerra comercial entre as duas principais economias do planeta continua nos bastidores. Embora os mercados tenham se mantido mais calmos nesta semana, novos picos da crise financeira não estão descartados. Diante desse perigo, a ausência de um salvador em última instância é um espectro grave que assombra a economia mundial: “Quem estabilizará agora a economia mundial? Nem os Estados Unidos nem a China estão dispostos a assumir essa responsabilidade”, questionava o editor asiático do Financial Times, antes da escalada da guerra comercial nas últimas semanas8 .

Por sua vez, os riscos de novas escaladas comerciais são substanciais. Não custa lembrar que o longo caminho até Pearl Harbor começou quando os Estados Unidos promulgaram a política de “portas abertas”, que bloqueou os planos japoneses sobre a China ao insistir que todas as nações deveriam ter o mesmo acesso ao mercado chinês. Quando o Japão começou a invadir a China em 1931, os EUA responderam com sanções econômicas, primeiro contra as exportações de sucata e combustível de aviação ao Japão, seguidas por matérias-primas como ferro, latão, cobre e, por fim, petróleo. E foi o embargo ao petróleo — que ameaçava estrangular a economia japonesa — que levou o Japão à tática desesperada de atacar a frota americana em Pearl Harbor.

Apesar da gravidade da situação, ainda não estamos nos cenários mais extremos. Os Estados Unidos querem conter e se desvincular da China, mas ainda não recorreram a algumas de suas armas financeiras e de controle de exportações mais poderosas. Por sua parte, Xi Jinping poderia acabar com qualquer possibilidade de negociação desvalorizando o yuan de forma muito mais agressiva e mirando uma faixa específica de empresas americanas. Ou seja, em outros termos, Pequim não fecha a porta para negociar com Washington — talvez buscando não apenas um acordo comercial, mas também propor uma divisão do mundo em esferas de influência.

No meio da incerteza que ainda reina na situação global, um traço se destaca com clareza: a ruptura irreparável das relações transatlânticas e o retorno do belicismo na Europa, com todas as tragédias que isso causou à humanidade no século XX. O unilateralismo exacerbado dos Estados Unidos deixou a Europa em uma posição vulnerável e colocou em xeque o modelo de cooperação que caracterizou as relações transatlânticas desde a Segunda Guerra Mundial. O “Ocidente” está se dissolvendo no ar. Enquanto historicamente era entendido como uma comunidade de valores compartilhados entre Europa e América, a dinâmica atual sugere uma redefinição desse conceito. A realidade é que as diferenças estruturais entre os Estados Unidos e a Europa — cujas gêneses e histórias são totalmente distintas — foram temporariamente encobertas durante a Guerra Fria, quando a ameaça soviética uniu as duas margens sob o conceito estratégico de “Ocidente”. Hoje, essa noção se fragmenta diante de tensões estratégicas e diferenças de interesses entre os dois lados do Atlântico. Para aqueles que, especialmente na Europa, absolutizaram esse conceito esquecendo sua origem histórico-geopolítica precisa, a situação é desesperadora. O “Ocidente” parece ter se transformado em uma casca vazia. A tentativa da primeira-ministra italiana, em sua coletiva de imprensa no Salão Oval, de manter a unidade entre Europa e Estados Unidos que Trump está minando — ao afirmar que deseja “Make Occident Great Again”, parafraseando o slogan MAGA — não teve resposta.

Os trabalhadores dos principais polos dessa disputa entre grandes potências devem rejeitar o alinhamento com os discursos nacionalistas e xenófobos de suas próprias burguesias. As políticas protecionistas não são uma solução para o neoliberalismo e a globalização. O que um dia foi uma relação que impulsionava a economia global, hoje se transformou em uma disputa que coloca em xeque o sistema capitalista mundial: o mundo não é grande o suficiente para acomodar as potências dos Estados Unidos e da China. Não há solução dentro das bases do capitalismo. Por isso, não podemos aceitar, nem minimamente, o argumento das diferentes classes dominantes para que a classe trabalhadora aceite o agravamento de suas condições de vida sob o imperativo do “interesse nacional”, em resposta à crescente divisão entre as elites. O único caminho possível é tirar a economia mundial das mãos dos grandes monopólios capitalistas e de seus Estados — que a repartem entre si — e colocá-la nas mãos da classe trabalhadora.

Na Europa, os trabalhadores, assim como todos os povos oprimidos durante décadas e séculos pelas potências imperialistas do Velho Continente, devem aproveitar o fato de que as elites europeias estão sem rumo e passar à ofensiva. Não podemos permitir que uma Europa desnorteada busque sua tábua de salvação em um militarismo extremo, que, longe de nos defender de supostas e exageradas ameaças, arrisca levar a Europa a uma nova versão de seus dramas históricos.

Notas de rodapé

1. Nesse sentido, compartilho a afirmação do especialista em relações internacionais argentino Juan Gabriel Tokatlian, quando afirma que: “O fato mais significativo do segundo mandato de Donald Trump é, a meu ver, que os Estados Unidos se tornaram um caso evidente de Estado Revisionista. Mas com um detalhe notável: os Estados Unidos não são um Estado que, no último quarto de século, tenha aumentado seu poder, influência e prestígio. Ao contrário, encontram-se em relativo declínio. A coalizão governante sente que o sistema já não beneficia inteiramente os Estados Unidos e que todas as contrapartes — próximas, distantes e opositoras — têm abusado de uma suposta generosidade americana. Não predomina uma ambição hegemônica renovada — que sempre combina uma dose de (maior) persuasão e (pontual) coerção — voltada à geração de uma nova liderança, mas sim a garantia de um projeto de dominação no qual imperam a ameaça, a retaliação e a chantagem a adversários, aliados e parceiros de igual maneira. Washington intimida com tarifas desproporcionais, deportações em massa, anúncios expansionistas e retóricas beligerantes.” “Estados Unidos, potência revisionista”, Clarín, 06/04/2025

2. Colby, Eldbridge A., The Strategy of Denial: American Defense in an Age of Great Power Conflict, New Haven, Yale University Press, 2021

3. Isso é o que temem dois ex-assessores de Biden em um artigo recente na Foreign Affairs: “Enquanto alguns nos Estados Unidos falam em criar divisões entre os parceiros da China executando um ‘Kissinger inverso’ com a Rússia, Pequim está decidida a explorar as fissuras nas alianças ocidentais, especialmente entre os Estados Unidos e a Europa. O risco agora é que Washington se afaste da Europa sem conseguir separar a China da Rússia.” Kurt M. Campbell e Rush Doshi, “Underestimating China. Why America Needs a New Strategy of Allied Scale to Offset Beijing’s Enduring Advantages”, Foreign Affairs, 10/04/2025

4. “As tarifas despertarão o sonho americano. Trump deve ignorar os senhores de Martha’s Vineyard”, UnHerd, 04/08/2025.
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5. Relativizando isso, há o fato do importante papel da China em muitos bens intermediários essenciais para a indústria norte-americana. “A indústria manufatureira chinesa possui vantagens comparativas muito relevantes. A China produz 55% do aço mundial e tem posições muito fortes em certos produtos anteriores à produção industrial global. De certo modo, os fabricantes chineses fornecem ao mundo insumos intermediários”, explica Anthony Morlet-Lavidalie, economista da Rexecode. No entanto, “alguns deles são incompressíveis, e os fabricantes norte-americanos não podem prescindir deles. Portanto, serão eles os que pagarão mais por essas importações.” O recuo de Trump em relação a certos produtos tecnológicos, especialmente o smartphone, é outra evidência disso.
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6. Isso é o que surge de relatórios confidenciais distribuídos a altos ministros e funcionários após a reunião do vice-primeiro-ministro irlandês Simon Harris em Washington na semana passada com o secretário de Comércio dos EUA, segundo reporta o The Irish Times. Segundo esse artigo, a administração norte-americana também gostaria que a União Europeia limitasse ou eliminasse as barreiras não tarifárias ao comércio, o que poderia incluir as rigorosas normas da UE sobre produtos, entre elas algumas normas alimentares.

7. A China anunciou restrições à exportação de sete elementos de terras raras diferentes, fundamentais nas cadeias de suprimento industriais. O governo chinês declarou que as empresas precisarão de licenças para exportar esses elementos. Enquanto isso, as exportações foram suspensas até que o novo sistema esteja implementado. Embora as medidas não sejam direcionadas especificamente contra a UE, as empresas europeias agora são obrigadas a demonstrar — inclusive com provas fotográficas — que não vendem esse material aos EUA e que não o utilizam para fins militares. Para os importadores europeus, é praticamente impossível apresentar essas provas, já que não controlam suas cadeias de suprimento.

8. O artigo sugere que:  “A depressão de 1929 foi tão ampla, tão profunda e tão longa porque o sistema econômico internacional se tornou instável devido à incapacidade britânica e à falta de vontade dos Estados Unidos de assumir a responsabilidade de estabilizá-lo”. Essa foi a conclusão do historiador econômico Charles Kindleberger sobre por que a Depressão se transformou em uma catástrofe internacional. A economia mundial, argumentou ele, precisa de um hegemon: um líder disposto a assumir alguns custos e riscos pelo bem coletivo. “Para que a economia mundial se estabilize”, escreveu ele, “tem que haver um estabilizador, um único estabilizador.”Durante décadas após a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos foram esse líder. Desde a crise da dívida latino-americana da década de 1980 até a crise financeira asiática de 1997 e a crise financeira global de 2008-09, Washington coordenou a resposta e prosperou com isso. No entanto, a capacidade dos Estados Unidos de atuar como hegemon já estava em declínio devido ao crescimento da China. Depois de os Estados Unidos deixarem claro, em Munique na semana passada, que não garantem mais a segurança europeia, quem pode acreditar agora que apoiarão a economia mundial? A China, por sua vez, não demonstra nenhuma disposição em assumir responsabilidades. Pelo contrário, atua como uma força desestabilizadora ao criar uma deflação interna que os outros países são obrigados a absorver. Sem nenhum país ou bloco suficientemente grande para dominar, ou disposto a liderar, estamos entrando em uma nova e perigosa era de instabilidade.

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