André Barbieri
Apresentamos pelo Casa Marx Entrevista essa conversa especial com Arlete Cavaliere, professora titular de Letras Russas na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Sociais (FFLCH) da USP. Por várias décadas, Arlete foi coordenadora da Área de Russo da FFLCH, e foi a criadora do Laboratório de Estudos Russos da USP.
Nessa entrevista, conversamos sobre a importância da literatura russa no contexto da censura e da opressão do regime tsarista, em particular na primeira metade do século XIX, período governado pelo tsar Nicolau I, e em que viveu um dos maiores escritores modernos da Rússia, o ucraniano Nikolai Gógol (1809-1852).
Arlete Cavaliere explica como a arte literária cumpria o ofício de “respiro” na atmosfera asfixiante da censura autocrática na Rússia. Diversos autores internacionalmente consagrados, como Pushkin, Gógol, Tolstói, Turguêniev, Tchekhov, entre outros, usavam sua obra artística como uma forma sutil e refinada de conversar com sua própria época, temas com maior ou menor ligação à esfera política, mas sempre conectados com a apreciação estética dos novos tempos que se avizinhavam depois das guerras napoleônicas e os efeitos da Revolução Francesa na Europa.
Arlete Cavaliere discute, assim como em seu livro de ensaios “Teatro russo: percurso para um estudo da paródia e do grotesco”, o efeito diáfano do riso como procedimento artístico na literatura, cuja visada teve Gógol seu principal promotor. A paródia e o grotesco, como ferramentas estéticas, muito vinculadas à forma da expressão textual, exibem uma maneira fina e mordaz de estudar os costumes e comportamentos das mais variadas camadas sociais petersburguesas, acentuando a dimensão da ambiguidade e da duplicidade em que cada qual busca se mover na apertada estrutura da sociedade russa. Um movimento que, sob exame dos espelhos gogolianos – que deformam para melhor revelar – sobressaem em seu caráter ridículo e bufão, transformados pelo riso em elementos constituintes da cultura cômica popular que teve tanta importância na formação psicológica russa.
Adentramos uma das peças centrais da dramaturgia gogoliana – O Inspetor Geral (1836), a fim de explorar os efeitos da duplicidade, do riso e da paródia num texto que transcende as intenções do próprio autor, que se defendeu da má recepção com uma nova peça, À saída do teatro depois da apresentação de uma nova comédia (1842). Da mesma maneira, discutimos a representação d’O Inspetor Geral pelo encenador das vanguardas teatrais russas, Vsévolod Meyerhold, que em 1926 teve a audácia estética (e política) de fazer uma encenação da peça gogoliana como fina crítica à burocratização stalinista. Como disse Arlete Cavaliere, “não podemos perdoar Stálin, porque se não tivesse havido um Stálin a gente não imagina para onde poderiam ter ido essas experiências estéticas!”. Como contraponto à catástrofe da burocracia stalinista sobre as perspectivas da revolução russa e para a arte, Arlete define que a comunhão entre a revolução socialista em 1917 que havia derrubado o regime dos tsares e o surgimento das vanguardas artísticas na Rússia foi um dos momentos altos da cultura humana no último século.
Arlete também perpassa a importância do riso como método de percepção do mundo. Em Gógol, trata-se de um mecanismo indispensável para a relação humana com seu entorno social. Efetivamente, em sua defesa a respeito d’O Inspetor Geral, criticado pela alta nobreza como um libelo contra o governo, Gógol adverte que o personagem principal de sua peça, o mais nobre, era o riso, um riso que é nobre “porque se atreve a se mostrar. […] Ninguém tomou a defesa desse riso; eu, o autor de comédias, servi a ele com honestidade, e por isso devo colocar-me como seu protetor”. A advocacia da comicidade como chave estética continuaria atravessando suas obras principais, como o poema-narrativo Almas Mortas (1842), em que o autor discorre sobre a importância de “vasculhar a vida pelo riso”: “O riso elevado e entusiástico é digno de figurar ao lado dos movimentos líricos mais nobres”. Isso mostra a potência crítica e catártico que encontrava nesse procedimento.
Da mesma forma, o princípio do riso, subjacente ao teatro de Gógol, passa por contínuas transformações internas, que lhe confere uma alta complexidade. As imagens carnavalizadas ligadas ao sistema da cultura cômica popular se contrapõe com um universo dramático aparentado ao trágico. Como escreve Arlete, “o princípio cômico estruturador sempre se transforma num esgar trágico, e a visão carnavalesca que preside seus textos se faz sempre enfraquecida em seu desfecho para dar lugar a um tom lúgubre e espantoso, como se o universo do texto se tornasse, numa fração de segundos, hostil e alheio” (Cavaliere, Arlete. Teatro russo: percurso para um estudo da paródia e do grotesco. São Paulo: Editora 34, 2024, p. 27). Essa mistura do cômico com o disforme e monstruoso constituía parte inalienável da cosmogonia artística de Gógol, que deixou marcas nas expressões artísticas absolutamente originais de autores como Anton Tchekhov, Vladimir Maiakóvski e Vladímir Sorókin.
Uma entrevista imperdível para pensar os nossos tempos (e os próximos)!