Revista Casa Marx

Escola Reborn? As plataformas e a lógica gerencialista na escola pública

Flávia Telles

No último encontro do Observatório do Trabalho Docente, espaço desenvolvido na Faculdade de Educação da Unicamp e impulsionado por intelectuais, pesquisadores, professores e ativistas da educação de diversos estados do país, refletimos sobre o processo em curso de plataformização na escola pública. Este artigo apresenta algumas das conclusões que o encontro suscitou.

*Essa elaboração foi possível a partir das trocas coletivas feitas pelo 3º Encontro do Observatório do Trabalho Docente que teve como tema “Plataformas do ensino e intensificação do trabalho docente”, o encontro foi aberto com as reflexões de Erlando da Silva Rêses, professor da Faculdade de Educação (FE) da UnB, e Paula Mara Melo, doutoranda da FE/UnB. 

Um bebê reborn é um bebê “renascido”: bonecas hiper-realistas que simulam vida, mas permanecem objetos inertes. Utilizo essa analogia, diante do fenômeno atual, para refletir sobre como a escola pública, remodelada por plataformas e lógicas gerencialistas empresariais, aparenta, ao menos nas propagandas governamentais, vitalidade e renascimento. No entanto, essa aparência esconde processos artificiais e controlados, que servem para remodelar o trabalho docente e a aprendizagem dos estudantes, reconfigurando assim a própria essência da escola.

A plataformização da educação não está dissociada da plataformização no mundo do trabalho

Vivemos um amplo processo de plataformização no mundo do trabalho, aprofundado durante a pandemia de COVID-19, que configura novas formas de atomização e fragmentação da classe trabalhadora. Nele, os “plataformizados” são apresentados como empreendedores de si mesmos, sem patrões, com a flexibilidade de escolher o quanto são explorados. Como afirma o livro Icebergs à deriva — trabalho nas plataformas digitais, organizado pelo professor Ricardo Antunes, trata-se, na verdade, de uma acentuação da precarização do trabalho sob novas formas — processo que se intensificou desde os anos 1990 com a ofensiva neoliberal internacional e ganhou contornos específicos no Brasil.

Um marco recente nesse processo, que pavimentou o caminho para a plataformização, foi a aprovação da reforma trabalhista em 2017, precedida, não por acaso, pela reforma do ensino médio em 2016, via medida provisória. Essas mudanças permitiram remodelar jornadas, contratos e direitos trabalhistas. Como destaca o professor Rodrigo Carelli: “A intenção, pelo que transparece nitidamente, é simplesmente transformar todo tempo de vida do trabalhador, mesmo que não remunerado, em tempo à disposição do empregador, invertendo a lógica legal”. Ou seja, busca-se transformar o trabalho em jornadas 6×1, de mais de 12h, intermitentes, sem direitos ou garantias.

Na educação, a plataformização também está em curso de duas formas. Por um lado, escolas privadas ou pessoas físicas contratam professores por meio de plataformas, como é o exemplo do SuperProf, onde não há regulamentação, vínculo empregatício ou direitos — apenas um valor pago por hora trabalhada. O empregador escolhe, como em um cardápio, o professor que melhor atende às suas necessidades.

Por outro, na escola pública, onde os professores são cada vez mais contratados sob regimes flexíveis, a plataformização busca reconfigurar a forma do trabalho no cotidiano escolar. Aulas que antes eram desenvolvidas pelos professores, com base no currículo, livros didáticos e ferramentas por eles selecionadas, agora são ministradas por meio de plataformas digitais — aplicativos que são alheios ao processo de ensino-aprendizagem construído entre professores e estudantes, e impostos pelos governos de forma autoritária e obrigatória.

Essa flexibilização curricular, que abre espaço para as plataformas hoje tomarem os currículos escolares, só foi possível com a aprovação da Reforma do Ensino Médio (NEM) e da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que foi aprovada em 2018. Tanto o NEM quando a BNCC  atacaram a formação básica dos estudantes, aligeiraram o processo educativo e ampliaram o espaço para uma educação à distância e privatizada. Somou-se a isso, em 2023, a aprovação do PNED (Programa Nacional de Educação Digital), que estabeleceu diretrizes para expandir plataformas digitais na educação, apresentando-as como único caminho para a inclusão digital, como afirmam Seki e Venco, tudo visando adequar a educação às demandas capitalistas de formação de uma força de trabalho precária, sem vínculos empregatícios, mais barata e lucrativa aos patrões.

Este artigo busca refletir sobre essa segunda forma, que transforma o trabalho docente e a aprendizagem dos estudantes no interior da vida escolar. No entanto, é essencial entender que esse fenômeno não é exclusivo da escola pública ou da educação: ele está ligado às grandes transformações no mundo do trabalho. Por isso, nossas formas de resistência também devem estar conectadas a esse enfrentamento mais amplo.

Paraná e São Paulo na vanguarda da plataformização: ainda somos professores?

Para analisarmos o processo de plataformização em curso, é importante compreender onde ele tem seu germe. Quando Renato Feder, CEO da iniciativa privada, foi anunciado como novo secretário de Educação de São Paulo em 2022, muito se dizia que ele vinha para exportar a destruição da educação que promoveu na Secretaria da Educação do Paraná, sobretudo com a privatização e as plataformas.

O anúncio estava certo. Leia Paraná, Redação Paraná, Edutech, Desafio Paraná, Matific, Khan Academy, Inglês Aluno e Inglês Professor são as plataformas que se transformaram, em São Paulo, em: Diário Digital, Tarefas SP, Redação SP, Leia SP, Me Salva, Alura, Khan Academy, Matific, Elefante Letrado, Multiplica e, agora, Sala do Futuro.

Portanto, a extrema direita do Paraná, com Ratinho Júnior (PSD), e de São Paulo, com Tarcísio de Freitas (Republicanos), estão promovendo uma transformação na forma escolar, introduzindo o uso obrigatório de plataformas de maneira alheia às necessidades reais dos estudantes e professores. Isso porque o objetivo é aprofundar ainda mais os ataques à classe trabalhadora, desmontando os serviços públicos e ampliando o espaço da geração de mais-valia do empresariado dentro do espaço escolar público.

Essas plataformas impostas aos professores são provenientes de grandes conglomerados de startups da Edtech, que passaram a lucrar com contratos milionários e desenvolvem modelos educacionais prontos, buscando reduzir a complexidade das tarefas do docente para precarizar o trabalho. O processo de plataformização está conectado às metas de produtividade, avaliação de desempenho e padronização de processos, com consequências graves, que levam até ao desemprego dos professores que não se adequarem a elas.

Em São Paulo, há uma clara combinação entre sistema de metas, materiais digitais, provas avaliativas e bonificação. Há ranqueamento entre professores, turmas, estudantes, escolas e diretorias. A partir das inúmeras avaliações, a Secretaria de Educação estabeleceu dois tipos de metas: ouro e diamante. Com base nelas, os professores e os grêmios escolares recebem uma bonificação em dinheiro. Ou seja, é uma forte lógica gerencialista que aplica princípios e práticas da gestão empresarial à escola pública.

O Super BI do Escola Total é o maior exemplo dessa lógica gerencialista. É uma plataforma de Business Intelligence (Inteligência de Negócios) que coleta, organiza, analisa e monitora dados do uso das plataformas. A partir disso, professores e estudantes são controlados e cobrados (assediados, para ficar mais claro) pelas diretorias de ensino e gestões. É uma forma de controle cotidiano do trabalho docente, transformando a atividade pedagógica em um processo rigidamente monitorado e quantificável, semelhante ao que ocorre em empresas de vendas.

Para viabilizar esse modelo de escola remodelada, não basta apenas transformar a mediação pedagógica, é necessário também intensificar os mecanismos de controle sobre professores e estudantes. Não por acaso, em estados como São Paulo e Paraná, o avanço da plataformização caminha lado a lado com o fortalecimento de escolas inteiramente privatizadas — no caso paulista, financiadas pelo governo Lula-Alckmin via BNDES — e se combinam com a implementação de escolas cívico-militares, cuja lógica é abertamente repressiva.

Esse modelo cívico-militar reforça a hierarquia, o controle e a disciplina, funcionando como mais um elemento na arquitetura de controle que caracteriza essa nova escola pública gerencial. Há, portanto, uma combinação estratégica entre privatização e repressão que compromete a dimensão pública e crítica da educação, transformando a escola num espaço aparentemente renovado, mas profundamente esvaziado de sua função social.

“Prô, bati a meta”: os índices fakes e a educação para a propaganda do governo

Em São Paulo, as plataformas já são impostas de forma obrigatória desde a 1ª série do ensino fundamental, quando os estudantes têm em torno de 7 anos. Com 7 anos, um estudante da rede estadual de São Paulo já tem um sistema de metas que ele precisa bater em plataformas como o Matific.

Uma grande parte desses alunos não é alfabetizada, mas precisa utilizar plataformas de leitura como o Elefante Letrado. Ou seja, desde o início da vida escolar, os estudantes já estão tendo que lidar com plataformas e com uma lógica gerencial e atomizante da educação que vai se aprofundando ainda mais até a 3ª série do ensino médio.

Por um lado, a lógica das plataformas digitais representa uma transformação profunda no papel do professor, como já discutimos acima: passa a ser cada vez mais um monitor de tarefas e executor de protocolos definidos por sistemas automatizados. Por outro lado, essa mudança também atinge a própria dimensão coletiva da educação e da aprendizagem. Ao deslocar a centralidade da experiência pedagógica para a relação individualizada aluno-plataforma, há um esvaziamento progressivo dos espaços de debate, colaboração e construção conjunta do saber.

Portanto, há um impacto no próprio processo de aprendizagem. Ao passo que se desenvolvem as plataformas dessa “nova escola”, mais moderna e ligada às novas tecnologias — como querem mascarar — é nessa mesma escola que se produz o fato de que o analfabetismo funcional não avançou no Brasil nos últimos seis anos.

É o que revela a nova edição do Inaf (Indicador de Alfabetismo Funcional). O levantamento aponta que 29% dos brasileiros de 15 a 64 anos seguem nessa condição — mesmo patamar verificado em 2018. Pior: entre os jovens, o analfabetismo funcional oscilou negativamente. Em 2018, 14% dos jovens de 15 a 29 anos estavam na condição de analfabetos funcionais, e o percentual aumentou para 16% em 2024. Isso sem falar do alto índice de evasão escolar que vem se aprofundando em especial no ensino médio.

A plataforma Elefante Letrado, por exemplo, faz um ranqueamento de quantas centenas de livros cada estudante leu no mês, ano ou semana. Um estudante que não sabe ler é capaz de estar no topo desse ranking, já que a plataforma computa os dados com base na quantidade de páginas que foram vistas e passadas.

Há casos de estudantes que digitaram uma receita de bolo ou letras aleatórias com espaçamentos na Plataforma Redação SP, e, mesmo assim, são avaliados positivamente e quantificados no BI. Além disso, as provas avaliativas são muitas vezes preparadas com verdadeiros treinamentos nas escolas para os estudantes acertarem, já que a mesma questão muitas vezes está no material digital, na plataforma e depois na prova. Além disso, a SEDUC-SP passou a colocar mais de uma alternativa como correta, justamente para aumentar a proporção de acertos.

Há, portanto, um claro processo de mascaramento da realidade da qualidade da educação na escola pública com a plataformização, utilizando-se de processos de avaliação e produção de índices que são falsos e não correspondem à aprendizagem real do aluno.

A luta pela revogação do NEM não é coisa do passado: unidade dos professores e estudantes para enfrentar as transformações em curso na educação 

O NEM foi fortemente rechaçado por estudantes e professores. Mesmo assim, foi aprovado no contexto do golpe institucional de 2016, implementado no governo Bolsonaro e hoje é mantido e aprimorado pelo governo Lula-Alckmin. Como dito no início, a plataformização tem seu espaço na vida escolar aberto pela aprovação do NEM e também da BNCC em 2018, que remodelaram os currículos e atacaram a formação básica, e depois pelo PNED, que desenvolveu os princípios e diretrizes de uma educação plataformizada.

Portanto, não há como enfrentar a plataformização da educação em curso sem enfrentar cada uma dessas medidas aprovadas, bandeiras que hoje estão cada vez mais esquecidas pelos atuais sindicatos da educação. Isso significa, hoje, enfrentar as medidas do MEC e do governo de frente ampla Lula-Alckmin, que vem aprofundando os ataques à educação, não só com a manutenção das reformas, como o NEM, mas também com o arcabouço fiscal, que corta orçamento da educação — medida que hoje se expressa também com o contingenciamento atual de verbas orçamentárias das universidades.

Os professores do Pará apontaram um caminho que aqui deve ser tomado, não só em geral para lutar contra os ataques, mas em especial contra a plataformização.

A luta travada no início do ano de professores e do movimento indígena contra o governo de Helder Barbalho (MDB) e seu secretário da Educação, Rossieli Soares — que foi, ninguém menos, que o ministro de Temer quando se estabeleceu o NEM — tinha relação justamente com o programa “Kit Bora Estudar” do governo, que, diga-se de passagem, tem um contrato milionário com a Starlink de Elon Musk, e previa educação a distância para os povos indígenas, sem suas especificidades, substituindo professores por aulas gravadas e transmitidas em uma TV. No Pará, também há um processo de plataformização em curso. Um dado duvidoso é que o IDEB do Estado foi de 26º lugar em 2021 para o 6º em 2024, justamente a partir de aplicações de novas provas avaliativas.

A partir da unidade entre professores e movimento indígena, com métodos históricos dos trabalhadores como greve e ocupação da Secretaria de Educação, a luta no Pará conquistou a derrubada da medida de Rossieli Soares e venceu essa que era uma face desse processo do novo ensino médio, da BNCC e da plataformização da educação.

Esse exemplo é uma das demonstrações de que enfrentar o processo de plataformização em curso é uma tarefa de primeira ordem a todos os educadores, aos estudantes e à comunidade escolar, e pode ser conquistado com a nossa unidade em luta. Diz respeito não só a defender o caráter público da educação, a autonomia do professor e a enfrentar o controle e assédio dentro das escolas, mas a enfrentar o processo de transformação da própria essência da relação entre estudante e professor dentro da sala de aula.

É na unidade entre professores, estudantes e toda a comunidade escolar que apostamos para impulsionar a luta pela revogação integral do Novo Ensino Médio (NEM) e de todas as reformas neoliberais, como a trabalhista. Mais que isso, é fundamental fortalecer nossa organização coletiva, superando as limitações impostas pelas direções burocráticas dos sindicatos e buscando nos apoiar na luta de outros setores duramente afetados pela plataformização, como os entregadores de aplicativo. Recentemente, esses trabalhadores protagonizaram uma poderosa paralisação, levando às ruas faixas e palavras de ordem com: “Chega da escravidão moderna!”. Que esse grito ecoe também nas escolas, fortalecendo a construção de uma luta capaz de enfrentar as múltiplas formas de precarização e controle que hoje se impõem sobre a classe trabalhadora.

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