Revista Casa Marx

Foucault, o Estado e a luta ideológica

Santiago Delmasse Lalli

“Você deve destruir Roma, você, Espártaco. […] Todo o mundo pertence a Roma, portanto Roma deve ser destruída e transformada apenas em uma má lembrança.” (Fast, H. 1959, Espártaco)
“Algumas mentes privilegiadas tentaram opor, pelo que sei, as tarefas relativas à cultura do modo de vida às tarefas revolucionárias. Tal abordagem só pode ser definida como um grosseiro erro político e teórico.” (Trotsky, L. 1923, “Prefácio à segunda edição” de Problemas da vida cotidiana)

Neste artigo, propomos estudar uma série de aspectos da obra de Foucault buscando compreender como sua ontologia do poder e da resistência contribuiu para algumas concepções dos movimentos identitários, bem como para algumas de suas derivações teóricas e estratégicas que decorrem de sua obra — e por que é de importância estratégica a luta ideológica contra essas ideias a partir do marxismo.

Ao contrário do que propôs Colin Gordon em sua análise da arte de governar em Foucault (1991, The Foucault Effect, p. 46), esta análise visa, com toda a sua modéstia, contribuir para a agenda política e ser mais uma linha de crítica que podemos — e devemos — desenvolver nessa luta ideológica para compreender melhor a realidade e transformá-la. Porque, no fim das contas, é isso que nos interessa ao teorizar: alcançar uma compreensão do mundo necessariamente ligada à práxis para, entre outras coisas, eliminar o que sustenta as injustiças e potencializar as melhores capacidades humanas. Este trabalho quer ser parte, em uma de suas formas, da militância da tão citada décima primeira tese de Marx sobre Feuerbach. Milei e seus asseclas sabem bem disso, pois teorizam permanentemente sobre a chamada batalha cultural. Não nos interessa apenas o funcionamento do mundo da “política”, com tudo o que isso implica, mas a intervenção nele para a emancipação da humanidade das garras do capital.

Introdução

Neste trabalho, propomos empreender e esboçar uma crítica à noção de Estado (burguês) e ao conceito fundamental de poder em Foucault, que permeia o senso comum e constitui um dos elementos a serem desconstruídos para a recomposição de um imaginário de esquerda e comunista.

Para isso, desenvolveremos uma investigação sobre ideias que cresceram na pós-modernidade em torno do poder. A partir dessa reconstrução — centrada principalmente em Foucault e no “efeito” de sua obra além dele — tentaremos esclarecer como sua ontologia do poder (apesar de sua recusa em se reconhecer como teórico do poder 1 ) dificulta a concepção da tomada do poder (estatal) por uma classe operária revolucionária e contribui para a diversificação das lutas em políticas identitárias. Estas, por sua vez, acabam por dificultar a unidade nas lutas em direção a uma emancipação total e, por fim, enfraquecem o imaginário de que a classe dominada possa conquistar o poder e extinguir a diferença entre as classes.

Em linhas gerais, a proposta deste texto consistirá numa análise do que é o poder e a resistência na obra de Foucault. A partir dessa ontologia, focaremos em sua concepção de Estado e nas consequências estratégicas de sua abordagem. Por fim, estabeleceremos um contraponto entre Trotsky e a teoria do poder de Foucault, que descarta a tomada do poder por considerá-la, isoladamente, como sendo a revolução.

Além disso, com estas análises e outras que temos desenvolvido desde o PTS e correntes irmãs em outros países, nos permitiremos alguns comentários sobre a contribuição indispensável para fundamentar a necessidade de uma ofensiva ideológica que nós, revolucionários, precisamos levar adiante contra ideias que se arrastam há pelo menos quarenta anos num mundo sem revoluções — já que elas são um obstáculo à construção da hegemonia. Como apontou Dal Maso, é necessário:

a conformação de uma malha ideológica e cultural em disputa pela hegemonia, que não pode ser deixada para depois da revolução, pela simples razão de que faz parte do trabalho de preparação ideológica voltado à constituição de uma subjetividade revolucionária, assim como à difusão e desenvolvimento das ideias socialistas e comunistas (2024, “Revolução permanente: forma atual, formas elementares e formulação ampliada”

Claro que isso não é uma quimera nem uma esfera fechada sem atrito com o mundo. Muito pelo contrário, essa ofensiva ideológica e cultural que precisamos desenvolver tem importância direta para a política que enfrentamos cotidianamente. Trata-se de combater tanto os ideais reacionários e persecutórios em suas versões mais radicalizadas quanto o aparentemente inocente individualismo meritocrático e sua espiritualidade — pregados pelos magnatas e pela direita em geral — que promovem a desigualdade e tentam manter o status quo culpando os pobres por não progredirem. Por outro lado, também se trata de enfrentar aqueles que, sob um discurso humanitário e de não violência, buscam passivar as massas oferecendo-lhes como alternativa um mal menor e a espera por um consenso com capitalistas “bons” 2 .

Foucault e o poder

Não é simples abordar o poder (poder-saber) na obra de Foucault, uma vez que ela passou por deslocamentos conceituais, alguns reconhecidos pelo próprio autor. Um deles, talvez o mais notável, é que nos anos 1960 ele estudava a constituição do sujeito em relação aos jogos de verdade entre si e à relação do sujeito com o saber (As Palavras e as Coisas, A Arqueologia do Saber), e como um exercício restritivo, negativo (História da Loucura na Idade Clássica) (fase arqueológica). Depois, em meados dos anos 1970, ele começou a estudar os jogos de verdade em relação aos regimes de poder. Essa abordagem começa a se delinear em O Poder Psiquiátrico (curso ministrado entre 1973–1974) e torna-se evidente em Vigiar e Punir até o primeiro volume de História da Sexualidade. A Vontade de Saber, onde o poder passa a ser entendido como produtivo, tentando superar os limites das explicações ligadas à ideologia, às determinações econômicas, etc., que para Foucault, após o Maio francês, possuíam um suposto ranço marxista falsificado 3 .

No estudo das prisões, mais do que observar o aspecto repressivo evidente do dispositivo disciplinar, Foucault analisará seu aspecto produtivo de subjetividades determinadas e necessárias para a nova configuração social emergente no século XVII. Depois fará o mesmo em A Vontade de Saber, estudando os discursos, dispositivos e instituições que surgem e se organizam em torno da sexualidade. Por exemplo, ele analisará discursos e instituições que não silenciam o que se acreditava que reprimiam, mas que moldam um quadro de normalidade, configurando os sujeitos sem reprimi-los violentamente (no sentido tradicional). Nesse caso, a sexualidade torna-se tema de novos discursos (médicos, científicos, clínicos, etc.) que a normalizam e conseguem organizá-la 4 . Com essa obra, conclui-se sua fase genealógica e tem início um novo deslocamento no estudo da constituição do sujeito, desta vez em relação ao governo de si 5 .

A que fins servem, é interessante e necessário perguntar, as tentativas de governar a sociedade, de exercer controle sobre ela ou, mesmo como ele estudará nos cursos dedicados ao liberalismo e neoliberalismo no fim dos anos 1970, quando a razão governamental propõe intervir o mínimo possível para, em sua frugalidade, conseguir que os sujeitos façam dos interesses alheios, interesses próprios 6 ? É difícil reconhecer, sem insistir na pergunta, por que e para quem essa dominação aparentemente tão abstrata seria benéfica. Por isso, cui bono? — sempre.

Ainda assim, Callinicos nos oferece uma interpretação dos motivos desse deslocamento teórico na conceitualização do poder-saber. Cito extensamente:

Tal “deslocamento” é motivado por algo mais do que meras considerações teóricas. Implica uma interpretação particular de Maio de 1968, que rejeita a tentativa de considerá-lo uma reinvindicação do projeto clássico da revolução socialista. Pelo contrário, afirma Foucault, “o que aconteceu desde 1968 e, pode-se argumentar, o que o tornou possível, é profundamente antimarxista”. 1968 envolve a oposição descentralizada ao poder, mais do que um esforço por substituir um conjunto de relações sociais por outro. Uma tentativa como essa só poderia ter conseguido estabelecer um novo aparato de poder-saber em lugar do antigo, como demonstrado pela experiência da Rússia pós-revolucionária. Foucault busca dar a esse argumento — em si pouco original, pois trata-se de um lugar-comum do pensamento liberal desde Tocqueville e Mill — uma nova roupagem, oferecendo uma explicação distinta do poder. O poder não é unitário, ele afirma, e consiste em uma multiplicidade de relações que infiltram todo o corpo social. Por isso, é impossível atribuir uma prioridade causal à base econômica, como faz o marxismo. Além disso, o poder é produtivo: ele não opera pela repressão dos indivíduos, nem restringe suas atividades, mas as constitui. Foucault ilustra isso, principalmente, nas instituições “disciplinares” como a prisão, criada no início do século XIX. Por fim, o poder necessariamente suscita uma oposição, uma resistência, embora tão fragmentária e descentralizada quanto as relações de poder que combate. (2011, p. 178. Os itálicos são do original.) 

Alguns comentários sobre esta citação. O primeiro é um esclarecimento, por ora parcial, de por que nos concentramos na noção de Estado, e a chave está quando Callinicos afirma: “é impossível atribuir prioridade causal à base econômica, como faz o marxismo”, como veremos mais adiante no tratamento que Foucault dá, em Nascimento da biopolítica, à integração entre os dispositivos disciplinares e o Estado. Essa base econômica, ou melhor, essa diferenciação na base econômica, é assegurada pelo Estado. Interessa-nos tal noção porque consideramos que ela é produto do caráter irreconciliável das classes sociais, de seus interesses antagônicos — não uma enteléquia nem o regulador de uma primitiva guerra de todos contra todos. Nas palavras de Lênin em O Estado e a Revolução:

O Estado é produto e manifestação do papel histórico do caráter irreconciliável das contradições de classe. O Estado surge onde, quando e na medida em que as contradições de classe não podem, objetivamente, ser conciliadas. E, inversamente, a existência do Estado prova que as contradições de classe são irreconciliáveis (2013, p. 128). 

Retomaremos essa ideia mais adiante.

Por outro lado, o que subjaz à interpretação de Callinicos sobre o deslocamento na abordagem de Foucault acerca do poder — e que consideramos correta — é que esta denuncia o fracasso de projetos políticos como o da revolução russa, fato que supostamente invalidaria a alternativa de mudanças favoráveis por meio da tomada do poder — raciocínio que não é lógico, mas apenas derrotista —, uma vez que:
a) como só acumulamos derrotas, então
b) não há estratégia (entenda-se como a luta pela decisão), pois não haveria o que fazer após a tomada do poder estatal, já que não existe um poder que se cristalize em uma única instituição, nem todas as opressões dependem de uma única luta por emancipação, e porque a tomada do poder não transformaria as relações sociais (como Foucault acredita estar demonstrado a partir das experiências de governos operários no século XX).

Outro elemento a considerar é a leitura de Foucault sobre o Maio francês:

 Diversos grupos que não estavam associados ao “proletariado” detonaram o estopim do protesto. Estudantes, artesãos, trabalhadores industriais, homossexuais, feministas, jovens operários fabris recorreram a novos métodos de ação por meio dos quais buscavam, fundamentalmente, evidenciar a fragilidade da ordem estabelecida (sem a pretensão de derrubar o governo ou tomar o poder) […] criticavam todos os setores da vida cotidiana e não apenas a fábrica, reivindicavam a autogestão e um papel criativo em toda a atividade social (Giraldo Díaz, 2006, p. 106). 

Além de que se teria demonstrado, a partir do fracasso dos governos operários — segundo Foucault —, que o marxismo é falso na persecução de seus fins, já que, tendo tomado o poder, não conseguiu uma transformação interna nas sociedades. E que esse fracasso deveria levar os marxistas a abandonar a estratégia revolucionária. Essa tentativa teórica se inscreve no momento em que o neoliberalismo proporciona relativo bem-estar e ascensão a um setor social, no qual parece que, após algumas revoltas derrotadas nos anos 1960 e 1970 e o colapso da URSS, o capitalismo se apresentava como única alternativa. Restaria, portanto, apenas assumir (de maneira resignada ou não) que a estratégia, no máximo, deve ser a micropolítica, como veremos. A esse respeito, disse Deleuze:

Dir-se-ia que, enfim, algo novo surgia após Marx. Dir-se-ia que uma cumplicidade em torno do Estado havia se rompido […]. O privilégio teórico concedido ao Estado como aparato de poder supõe, de certa forma, a concepção prática de um partido dirigente, centralizador, que procede à conquista do poder de Estado; e, inversamente, essa concepção organizativa do partido se justifica graças a essa teoria do poder. Outra teoria, outra prática de luta, outra organização estratégica é o que está em jogo no livro de Foucault 7  (1987, Foucault, pp. 56-57). 

Ou, como o próprio Foucault disse em uma aula do curso de 1978-1979, após uma defesa velada do Estado de bem-estar em contraposição ao Estado totalitário e apontando que este teria por germe algo distinto, que é o regime de partido:

Para dizê-lo de outro modo, o Estado totalitário não é o Estado administrativo do século XVIII […] O Estado totalitário é algo distinto. É necessário buscar seu princípio não na governamentalidade estatizante ou estatizada, cujo nascimento presenciamos nos séculos XVII e XVIII, mas justamente do lado de uma governamentalidade de partido. O partido, essa organização muito extraordinária, muito curiosa, muito nova, a muito nova governamentalidade de partido surgida na Europa no final do século XIX, é provavelmente […] o que está na origem histórica de algo como os regimes totalitários, como o nazismo, como o fascismo, como o stalinismo (2022, p. 224).

Com isso, ambos demonstravam a ideia, então difundida, que estava sendo adotada pela política da intelectualidade francesa e que Callinicos retoma (sem incluir Deleuze e Foucault):

A denúncia do marxismo como filosofia do Gulag, apresentada pelos nouveaux philosophes ex-maoístas em 1976-77, é um acontecimento desprovido de qualquer importância intelectual, mas dotado de um alto conteúdo político, pois assinala a passagem da intelectualidade francesa — marxista durante uma geração — para as fileiras da social-democracia e do neoliberalismo (2011, p. 184). 

Isso quanto ao germe autoritário que esses autores veem nos partidos comunistas e/ou revolucionários 8 . Mas, por sua vez, e mais significativamente, sustentam que os marxistas compreendem o mundo e o poder da forma como começam a delinear porque isso é conveniente a uma estratégia, deixando completamente de lado em seus estudos os interesses antagônicos de classe na origem do Estado moderno, os quais explicam e justificam a elaboração de determinada estratégia 9 .

Retomando, então, a micropolítica como estratégia que pareceria emergir a partir da leitura do Maio francês: como o poder estatal foi tomado em alguns países e estes degeneraram em regimes burocráticos e autoritários, isso nos levaria a pensar que a libertação das opressões — que Foucault reconhece nas sociedades — não passaria pela tomada do poder do Estado, mas pela resistência em e de cada corpo individual oprimido; que a revolução (entendida unicamente como a tomada do poder) apenas substituiria um regime de poder-saber por outro, sem alterar as relações opressivas no interior da sociedade; e que há outras forças impulsionando a expressão e a libertação que não se organizam em torno do fator classe. Posto assim, pareceria que Foucault tem razão em sua conclusão, se ignorarmos seu problema de indução — ou seja, se não levarmos em conta o fato de que não é correto concluir que, porque algumas experiências revolucionárias foram traídas ou nasceram degeneradas (por rejeitarem a tradição soviética, entre outras razões), sempre será assim e que a construção de outra sociedade por meio da revolução socialista é um projeto a ser abandonado. Veremos por que isso não é assim, sendo este talvez o menos relevante dos argumentos que apresentaremos contra Foucault.

A noção de poder com a qual Foucault opera acarreta uma ontologia total necessária, que inclui as relações sociais e uma forma de entender o Estado — sua hierarquia ou não, e sua preeminência explicativa para pensar a organização social; sua utilidade; sua importância para a estratégia e a forma como pensamos a resistência e uma eventual passagem à ofensiva ou não. Portanto, qual é a projeção política da proposta de Foucault?

Além do elemento evidente já comentado — ou seja, que não faria sentido propor a revolução socialista, que tem entre suas tarefas a tomada do poder —; positivamente, para Foucault, o que se deveria fazer para se libertar seria lutar isoladamente contra o poder que oprime molecularmente nas relações sociais os sujeitos, sem que estes estejam inseridos em uma estrutura econômica e social mais geral que os articule, e sem que esta seja uma explicação causal de suas opressões. O central aqui é o poder explicativo causal, já que poderia haver a possibilidade de reconhecer uma estrutura que reúna os oprimidos; embora, no entanto, isso contrariasse a ideia de que o poder é “móvel”, que o poder não é detido por um único polo da relação, mas que pode ser exercido alternadamente por qualquer dos polos 10 . Essa estrutura, que Foucault renega — e posteriormente também Deleuze 11 , entre outros — e à qual não atribui grande importância na maneira como se dão as relações sociais, é o Estado. Ele o entende não como o órgão opressor que permite a dominação da burguesia sobre a esmagadora maioria despossuída, mas como um conjunto relativamente estável de relações sociais entre sujeitos e entre estes e as instituições, que permeiam transversalmente o corpo social 12 .

Ou seja, para Foucault, o Estado não teria sua origem em responder a interesses materiais que pressupõem posteriormente (em sentido lógico, não necessariamente cronológico) uma determinada organização social. Ou talvez sim (ele nem sempre é claro nesse ponto), mas sem que esses interesses sejam “mais importantes” que outros, sem que expliquem causalmente o restante da organização social, suas relações e, consequentemente, sem que as opressões que ocorrem também no interior do Estado e, obviamente, no sistema capitalista, respondam a configurações servis aos interesses defendidos pelo Estado burguês.

Para Foucault, então, como bem aponta Callinicos, “o poder não é unitário, ele sustenta, e consiste em uma multiplicidade de relações que se infiltram em todo o corpo social. Por isso, é impossível atribuir uma prioridade causal à base econômica”, de modo que orientar um projeto político que implique a tomada do aparato do Estado e sua destruição é um contrassenso, já que o fim das opressões seria um jogo que se resolveria no plano da micropolítica, no reconhecimento dos poderes exercidos sobre indivíduos que não necessariamente compartilham uma causa comum. No entanto, não é porque criticamos essa perspectiva que negamos que existam opressões nas relações sociais que não sejam diretamente aquelas entre o Estado e os indivíduos. Nós as identificamos, mas não podemos fazer dessas lutas isoladas uma estratégia para a emancipação do conjunto da humanidade. Vejamos.

O poder engendra resistência


É conhecido o adágio “o poder engendra resistência”. Essa resistência confere lógica de defesa a todos os indivíduos e movimentos que denunciem uma opressão. Embora isso possa ser aceito como algo positivo, continua sendo um problema se a microrresistência se transforma em estratégia, pois não há capacidade articuladora das lutas a não ser por uma confluência casual, nem se propõe uma libertação ampla, apenas o alívio pontual de uma das modulações do poder que oprime. Portanto, consideramos necessária a identificação do inimigo comum, mesmo que essa nem sempre seja imediata ou captável num relance, para que seja possível articular as lutas e reunir força suficiente para vencer na luta definitiva pela liberdade das massas oprimidas pelas vigentes relações sociais, determinadas em última instância pelo modo de produção e pela organização estatal e imperialista que esse modo supõe.

Vejamos agora alguns esclarecimentos conceituais pertinentes sobre a possibilidade de resistência na teoria foucaultiana do poder que tudo permeia.

Foucault nem sempre parece perceber o problema de que, em um sistema onde o poder está em toda parte, a origem da resistência se torna impossível, a menos que essa resistência consista na alternância na detenção do poder. Isso, para alguns críticos, também não é viável, pois haveria uma tendência ao status quo e ao equilíbrio entre poderes, sem possibilidade de subversão total do sistema de relações de poder 13 .

No entanto, esse problema pode ser deixado de lado, absolvendo o autor de sua inconsistência e permanecendo com a ideia de que a resistência é algo que se disputa, como sustenta Foucault em diversos momentos, especialmente onde o poder é exercido com mais intensidade: no corpo. Vamos seguir por essa linha, porque, ainda que seja importante o estudo rigoroso do que Foucault realmente propôs, também é verdade que existe um “Foucault mainstream”, no qual não aparecem as discussões de especialistas sobre o lugar da resistência em sua ontologia — discussões estas que se repetem exaustivamente. Debatamos, então, nesta ocasião, sem nos perder na exegese erudita a esse respeito, visto que há um consenso relativo sobre a resistência no campo do espectro do que poderíamos chamar de “o efeito Foucault”, ou seja, aquilo que sua obra provocou com todas as suas distorções pouco rigorosas.

Em uma entrevista concedida em 1975, Foucault afirma:

 “O domínio e a consciência do próprio corpo só podem ser adquiridos por efeito de uma inversão de poder no corpo: ginástica, exercícios, musculação, nudismo, glorificação do corpo belo. Tudo isso pertence ao caminho que conduz ao desejo pelo próprio corpo, por meio do trabalho insistente, persistente, meticuloso do poder sobre os corpos das crianças ou dos soldados, os corpos sadios. Mas, uma vez que o poder produz esse efeito, surgem inevitavelmente as reivindicações e afirmações de resposta: as do próprio corpo contra o poder, as da saúde contra o sistema econômico, as do prazer contra as normas morais da sexualidade, do matrimônio, da decência. De repente, aquilo que havia fortalecido o poder é utilizado para atacá-lo. O poder, depois de investido no corpo, encontra-se exposto a um contra-ataque nesse mesmo corpo. Lembram-se do pânico das instituições do corpo social, dos médicos e dos políticos diante da ideia da coabitação não legalizada (l’union libre) ou do aborto livre? Mas a impressão de que o poder se enfraquece e vacila aqui é, na verdade, equivocada; o poder pode recuar, reorganizar suas forças, investir em outro lugar… e assim continua a batalha” (Foucault, M. 1980, p. 56). 

Já nas primeiras linhas, ele esboça seu futuro trabalho sobre a hermenêutica do sujeito e o governo de si, a estetização da vida como projeto emancipatório. Voltaremos a isso mais adiante. Também, ao final, ele aponta as vacilações quanto à possibilidade de se opor uma resistência ao poder que o enfraqueça — não de maneira transitória, como ele parece indicar —, já que conclui dizendo que o recuo do poder é apenas aparente, pois ele pode se reinventar por outros meios, sem necessariamente voltar ao mesmo lugar, entre outras coisas para as quais teria capacidade.

No entanto, o que nos interessa aqui são os modos dispersos da resistência, pois Foucault considera que não há um poder que hegemonize a lógica dos ataques, da constrição desses poderes e também, se quisermos, daqueles que criam subjetividades. Isso está em sintonia com o que Iuri Tonelo afirma em seu segundo artigo da série sobre Foucault, publicado na Ideas de Izquierda:

“As reflexões indicativas do autor, no entanto, vêm sempre acompanhadas de suas conclusões filosóficas e metodológicas, sendo uma das principais a expressa em Vigiar e punir, onde se aponta que esses processos de disciplinamento dos corpos e de formação não devem ser analisados apenas em sua dimensão estatal, pensando o Estado como uma entidade que detém e concentra todo o poder. Pelo contrário, devem ser compreendidos como uma tecnologia política do corpo, que se expressa de forma microfísica. Dessa forma, o autor sustenta que ‘seria impossível localizá-la em um tipo definido de instituição ou em um aparelho estatal. Estes a utilizam, a valorizam ou impõem algumas de suas formas de atuação’. Para o autor, o poder não é uma propriedade, mas se expressa em relações (ou estratégias, como ele mesmo utiliza o termo), de modo que ‘trata-se, de certo modo, de uma microfísica do poder colocada em jogo por aparelhos e instituições, mas cujo campo de validade situa-se, de algum modo, entre esses grandes funcionamentos e os próprios corpos com sua materialidade e suas forças’” (2024, Michel Foucault: fundamentos filosóficos da genealogia do poder). 

É correto o apontamento de Foucault sobre os processos de disciplinamento dos corpos: não devem ser analisados apenas em sua dimensão estatal; no entanto, isso não significa que essa dimensão deva ser descartada por completo. Ao deixar de lado essa tarefa, acreditamos que o autor não responde de forma contundente à pergunta que fizemos anteriormente, a respeito dos interesses aos quais devem responder os múltiplos poderes e dispositivos disciplinares.

Com isso, não queremos dizer que exista uma possibilidade de complementaridade entre os estudos de Foucault e o marxismo, mas talvez ela não possa ser descartada, caso suas conclusões metodológicas e seus objetivos genealógicos fossem alterados pela inscrição do exercício dos poderes disciplinares em um Estado que os localizasse e estruturasse para os mesmos fins 14 . É uma hipótese que apenas propomos aqui, mas não iremos desenvolver.

O fato é que, de fato, isso não ocorre na obra que estamos analisando. E, para Foucault, a lógica do poder soberano é um regime progressivamente suplantado pelo disciplinar. Ele afirma em O poder psiquiátrico: “É claro que esses dispositivos disciplinares se integraram ao esquema geral da soberania tanto feudal quanto monárquica; o certo é que funcionaram de forma positiva dentro desse dispositivo mais geral que os enquadrava e sustentava e, de todo modo, os tolerava perfeitamente” (2020, p. 82). E, mais adiante: “E justamente nos séculos XVII e XVIII, por uma espécie de extensão progressiva, de parasitação geral da sociedade, vemos constituir-se o que em duas palavras — ainda que seja uma denominação muito aproximada e esquemática — poderíamos chamar de ‘sociedade disciplinar’, que substitui uma sociedade de soberania” (p. 87).

Isso não significa que, na sociedade disciplinar, não persistam elementos da sociedade de soberania e que esses elementos não sejam servis à mesma lógica da disciplinar. Pense-se na instituição familiar ou eclesiástica. No entanto, o corolário teórico e político disso é o que buscávamos: não há resquício de poder soberano que seja significativo, não há soberano que, essencialmente, subsuma a ordem de dominação dos poderes disciplinares. Como sustenta Tonelo no artigo citado:

Tratava-se de opor-se a uma construção histórica, na leitura de Foucault, da visão soberanista do poder, já que “o poder não se troca, não se recupera, mas se exerce e só existe em ato”, uma “relação de forças”. Assim, para o filósofo, a questão não é “o que é o poder?”. Na realidade, “trata-se de determinar quais são esses diferentes dispositivos de poder, seus mecanismos, seus efeitos, suas relações, que se exercem em diferentes níveis da sociedade, em âmbitos de diversa amplitude”. 

Nesse mesmo sentido, Foucault afirmou em algumas conferências compiladas por Dreyfus e Rabinow 15 :

Reconheço que podem ser apresentadas objeções. Podemos dizer que todos os tipos de sujeição são fenômenos derivados, que são mera consequência de outros processos econômicos e sociais: forças de produção, luta de classes e estruturas ideológicas que determinam a forma da subjetividade. É certo que os mecanismos de sujeição não podem ser estudados fora de sua relação com os mecanismos de exploração e dominação. Mas estes não constituem a instância “terminal” de mecanismos mais fundamentais. Mantêm relações complexas e circulares com as outras formas (2001, p. 246).

Se há algum tipo de igualdade entre os poderes disciplinares é, em parte, à luz que Foucault lançou sobre sua origem, mas não é por isso que eles resultam complementares entre si. A causa não é sua isotopia ou, ao menos, sua tendência a ela; não é porque “entre esses distintos sistemas não há conflito nem incompatibilidade. Os diferentes dispositivos disciplinares devem poder se articular entre si” (Foucault, 2020, p. 74). Isso pode ocorrer, mas não é a explicação do porquê acontece; isso é uma descrição capilar do funcionamento de algum tipo de poder ou do que Foucault denomina poder.

Essas características se devem, antes, ao fato de que essas instituições nas quais o poder disciplinar é estudado (exército, escolas, hospitais, etc.) estão integradas a um Estado que zela por interesses particulares. É aqui que faz sentido interrogar a “instância terminal” ou não dos poderes disciplinares. Ou seja, perguntar-se a que interesses serve sua estrutura, seu aparato jurídico e sua criação de subjetividades. Ainda mais: se não estivessem integrados ao Estado ou pudessem ser estudados prescindindo dele, contra o que propõe Foucault (ou seja, concedendo algo favorável a Foucault), a prova a ser apresentada sobre a que fins se organizam os poderes e dispositivos disciplinares ainda recai sobre Foucault; em outras palavras, é Foucault quem deve demonstrar por que as estruturas dos poderes disciplinares não estão integradas à grande estrutura estatal da qual ele prescinde para explicar os primeiros.

Já em 1979, durante o curso Nascimento da Biopolítica, ele descartará essa posição ambígua sobre a relação entre os dispositivos disciplinares e o poder soberano, que começava a se desgastar em O poder psiquiátrico 16 . “A análise dos micropoderes não é uma questão de escala nem de setor, é uma questão de ponto de vista” (Foucault, 2022, p. 218). Com isso, Foucault descarta as possíveis digressões anteriores e a plausibilidade da hipótese que achávamos que ele poderia desenvolver em algum momento. É essa confissão de método que subjaz na interpretação incorreta oferecida em A vontade de saber sobre o nascimento e consolidação do capitalismo 17 ; e é a mesma que o leva a deixar de lado a disputa por interesses materiais que são, sim, os que constituem as instituições, os sujeitos e os sujeitos necessários para serem governados, com seus corpos também criados, como ele mesmo sustentou na entrevista de 1975 sobre o corpo e o poder (ver supra n. 4).

Consideramos que a leitura tanto do Estado como de suas mediações – dos “dispositivos de poder” – se esclarece quando se pergunta cui bono?, quem se beneficia? O Estado é o produto do caráter irreconciliável das classes sociais, como mencionamos. Já antecipava Rousseau – que fez frente a Marx no curso daqueles séculos em que Foucault situa o surgimento do novo poder – ao sustentar que a origem da propriedade privada era a origem da sociedade civil, em germe o Estado, quando houve alguns que decidiram cercar a terra dizendo “isto é meu” e houve gente que acreditou neles. Citamos o eloquente genebrino:

O primeiro que, tendo cercado um terreno, teve a ideia de dizer “isto é meu” e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditar nele, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, mortes, quantas misérias e horrores teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo a vala, tivesse gritado aos seus semelhantes: “Cuidem-se desse impostor. Estais perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não é de ninguém” (2013, Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, p. 324). 

No já mencionado curso de 1973-1974, Foucault havia definido o poder disciplinar como:

 certa forma terminal, capilar de poder, uma última engrenagem, uma modalidade mediante a qual o poder político e os poderes em geral conseguem, em última instância, tocar os corpos, agarrar-se a eles, levar em conta os gestos, os comportamentos, os hábitos, as palavras; a maneira, em síntese, como todos esses poderes, ao se concentrarem na descida em direção aos próprios corpos e ao tocá-los, trabalham, modificam e dirigem o que Servan chamava de “fibras moles do cérebro” (2020, p. 59). 

E continuava: “O poder disciplinar é uma modalidade determinada, muito específica da nossa sociedade, do que poderíamos chamar de contato sináptico corpo-poder” (p. 60). O curioso dessa última frase é que, no manuscrito desse texto, da lição dada em 21 de novembro de 1973, ele acrescentava: “O que implica, num plano metodológico, deixar de lado o problema do Estado, dos aparelhos do Estado, e libertar-se da noção psicológica de autoridade”. Vemos, mais uma vez, a impossibilidade de entender os poderes disciplinares como integrados a um marco que lhes confere uma lógica orientadora em um mesmo sentido. Poder-se-ia ainda criticar mais duramente a ideia de que a autoridade é uma noção psicológica, mas não é o momento para esse desenvolvimento. No entanto, embora pareça que ele não tenha pronunciado essa frase na aula, não é estranho que a tenha anotado, já que anos mais tarde essa será, basicamente, sua proposta emancipatória: operações psicológicas, trabalho espiritual e individual, na medida em que não supõe transformações do meio social que favoreçam o conjunto dos oprimidos, mas que dependeriam de cada um, ainda que possam ser realizadas em grupos. Tudo isso para se libertar de opressões que não teriam, voltamos a dizer, um correlato material ou que, se tivessem, a emancipação seguiria sendo subjetiva pelo tipo de reconhecimento que se faz das opressões.

Então, por que a renúncia às transformações estruturais? Por causa de sua teoria do poder. E por que essa teoria do poder? Porque leu mal o marxismo, identificando-o com o stalinismo, e se deixou seduzir pelo florescente neoliberalismo. Essa conclusão é simplista, embora sustentada pelo que foi exposto, mas revela o esqueleto da questão. Que prejuízos isso nos traz? É preciso remover os profundos alicerces de tantas derrotas históricas, teóricas e políticas e desmontar quarenta anos sem revoluções que pesam sobre as cabeças das massas; reconquistar a ideia de que o Estado é o garantidor da opressão do capital e que os poderes exercidos entre o Estado e os indivíduos têm uma lógica que os agrupa e direciona. Por isso, também é necessária a recomposição da ideia de classe, que se vê desagregada também pela estratégia das microrresistências derivadas da ontologia do poder proposta por Foucault.

Algumas considerações sobre o último Foucault

Foucault concluiu sua obra com o estudo da constituição do sujeito em relação ao governo de si, às práticas e exercícios espirituais que deveriam ser realizados para alcançar uma boa vida e uma emancipação dos micropoderes que oprimem os indivíduos (ainda que sobre isso também haja reservas tímidas tanto de Foucault quanto de seus comentaristas, alguns dos quais sustentam que não há tal individualismo, mas sim uma abertura para a comunidade, e que, também, a proposta ética de Foucault suporia um afastamento dos sujeitos em relação aos dispositivos opressivos do sistema, o que daria outra forma de relação entre eles). Em todo caso, o que é claro é que, por mais que exista um outro, não existe um projeto que diga respeito às maiorias oprimidas, nem uma libertação organizada das opressões que o próprio Foucault registra e estuda. Não nos estenderemos sobre esse ponto, mas proporemos alguns eixos de reflexão que consideramos pertinentes para a luta ideológica hoje em dia e que derivam da própria estratégia proposta por Foucault.

Assim, a respeito dos trabalhos de Foucault nos anos oitenta, nos perguntamos se estes não estariam relacionados – já que advogam por uma resistência particularista e uma espiritualidade de índole helenística (embora não busquem reivindicar esse modelo moral) – com o abandono de projetos coletivos diante das frustrações históricas e outros diversos motivos que extrapolam os limites conceituais deste trabalho, mas que percorremos parcialmente. O raciocínio consiste em que, como não há nada a ser mudado além de uma série de instâncias opressivas, não é estranho que, imerso no sucesso neoliberal e nas derrotas objetivas e morais dos Estados operários com governos burocráticos, essas vias para a emancipação tenham levado ao recolhimento individual e ao “salve-se quem puder”.

Uma sensibilidade semelhante pode ser observada hoje em dia, à qual se somam os novos discursos e práticas filhos da descrença nas religiões tradicionais (embora estas não tenham necessariamente diminuído sua influência; pense-se no hinduísmo na Índia, no islamismo no Oriente Médio ou no evangelismo na América Latina), a grande influência alcançada nas redes sociais por gurus espirituais de todo tipo, e o que poderíamos chamar de neopresentismo sem guerra em que vivemos após o “não há alternativa”. Esses discursos se encarnam nas crenças em constelações familiares, coaching ontológico, energias, astrologia, tarô (aqui uma análise detalhada sobre esse tema), ressurreição deformada e liberal em chave de autoajuda de filosofias helenísticas (como se estudou aqui), etc., e na situação contraditória em que, por um lado, se proclama que há coisas que dependem de nós e outras que não, como o funcionamento do sistema, por exemplo; e, fundamentalmente, que isso não depende dos esforços individuais de ninguém, de modo que nem faria sentido sequer pensar em reorganizá-lo ou virá-lo de cabeça para baixo; enquanto que, por outro lado, se afirma que, se alguém fracassa na tentativa de ser “seu próprio chefe” e em situações análogas em que se responsabiliza o indivíduo por suas misérias pessoais, a culpa é estritamente dele, por não ter sido suficientemente tenaz ou audaz como se supõe que o sistema exige de seus sujeitos bem-sucedidos.

Diante disso, temos que continuar desenvolvendo respostas científicas e combater as ideologias e os valores que direta ou indiretamente favorecem o individualismo e dificultam a unidade. Essas novas espiritualidades merecem suas réplicas, são problemas urgentes e que evidentemente interessam e são o novo coração de um mundo sem coração, com tudo o que isso implica. Parecem ser parte dos novos discursos de um mundo que precisa recorrer a esse ópio porque o mundo não satisfaz o que deveria satisfazer; e, por outro lado, formam – como diria Rousseau em O contrato social sobre os cristãos (cf. 2013, p. 202) – os piores cidadãos – e por isso é importante esse combate – porque depositam todas as suas energias no mundo futuro e não na realização terrena do que se projeta para a eternidade.

Foucault ou Trotsky

O contraponto ao argumento de Foucault, que incita ao abandono da tomada do poder estatal — tanto porque isso não proporcionaria as transformações sociais que supostamente preconizava, quanto porque se demonstrou, segundo ele, que o poder não está na “cabeça do rei” — será Trotsky com sua teoria da revolução permanente. Trotsky sustenta que a tomada do poder não é suficiente para alcançar o socialismo, pois este é um projeto consciente, “um período de duração indefinida e de uma luta interna constante [em que] vão se transformando todas as relações sociais” (Trotsky, L. 2011, A teoria da revolução permanente, p. 255), cultivam-se outros valores, outra cultura, outra forma de fazer política, etc., o que implica transformações que vão além da mera luta pelo poder — ainda que necessárias para ela — e que, por sua vez, não se encerram com a conquista do poder, mas se intensificam:

A conquista do poder, em si mesma, não transforma absolutamente a classe operária, e não lhe confere todos os atributos e qualidades de que necessita: a conquista do poder apenas lhe abre a possibilidade de estudar de fato, desenvolver-se e resolver suas deficiências históricas (Trotsky, L. 1919, “Cientificamente ou de qualquer maneira? Carta a um amigo”). 

Acreditamos que este argumento pode confrontar a teoria que, por considerar impossível e inútil a tomada do poder, prefere trabalhar contra os micropoderes que oprimem os indivíduos, supondo que o marxismo descartava isso, e assim repousar na comodidade imediatista de atacar micro-opressões. É verdade que Foucault criticava uma caricatura do marxismo — o estalinismo, o socialismo real — no qual a luta pela revolução política no interior da URSS já não existia, a não ser como o fantasma da Oposição de Esquerda que a percorria, o de Trotsky e sua teoria da revolução permanente. Diz Bensaïd:

Confundia-se a teoria de Marx com o positivismo pronunciado do estalinismo (e da social-democracia) […] Foucault fica preso na insustentável identificação entre estalinismo e marxismo. (2009, p. 173). 

A teoria do poder desenvolvida por Foucault, com seus deslocamentos e modificações, o leva a propor uma emancipação imediatista e individualista, que consiste fundamentalmente em se libertar de opressões particulares — todas colocadas no mesmo patamar — sem que haja uma que explique as demais ou que seja fundamental para que as outras possam ser genuinamente desativadas. Ou seja, Foucault, com sua teoria do poder, iguala as opressões (raciais, étnicas, religiosas, sexuais, de classe etc.) da mesma forma como mais tarde fariam as teorias liberais da interseccionalidade. Assim, como dissemos, não há uma opressão que explique as demais, e a luta deve ser feita por identidades (agrupadas ou não) que tentam se libertar. Basicamente, essa emancipação consistiria em transformar a si mesmo para viver uma experiência subjetiva diferente com sua opressão e/ou esperar que o Estado amplie direitos e que a sociedade aceite que determinadas formas de opressão não devem existir.

De forma incipiente, o desenvolvimento dessas ideias no fim do século XX se tornará, mais tarde, o debate entre reconhecimento (Butler) e redistribuição (Fraser). Por sua vez, dessa forma de conceber o poder e a resistência — atravessada por outras teorias como as do giro linguístico — é que Mouffe e Laclau, por exemplo, derivarão ideias como a da não centralidade da classe, concebendo políticas para movimentos sociais e políticas identitárias e particularistas. Sobre isso, Callinicos sustenta:

 A “política de identidade”, tão em voga entre os intelectuais de esquerda — isto é, a preocupação com formas políticas baseadas em identidades impostas ou assumidas (etnia, cor, gênero e preferências sexuais) — reflete, entre outras coisas, o desgaste da confiança em uma política universal de liberdade capaz de unir as vítimas das diferentes formas de opressão numa luta comum.(2011, pp. 30-31).

Duas últimas observações a esse respeito. A primeira é óbvia: uma reivindicação que, por tudo o que desenvolvemos até aqui, inclua em seus planos a tomada do poder estatal não deixa de considerar importantes as lutas que não se referenciam diretamente na classe. Como vimos Trotsky apontar, há uma política revolucionária para transformar essas formas de poder estudadas por Foucault, que configuram determinados modos de relações sociais. A segunda tem a ver com o fato de que essa política de identidade é efeito da desconfiança numa política que reúna todos os oprimidos — e, ao mesmo tempo, é motivo pelo qual essa política de unidade se torna difícil de alcançar, justamente por conta desses particularismos. A defesa de direitos democráticos, sua ampliação, é importante — mas sempre dentro de um projeto anticapitalista, explorando até o fim a dimensão sistêmica da opressão que representam, contra os desvios ou concessões que o Estado possa praticar a fim de não perder seu controle de classe. E não como propõe Mouffe, em sua reversão do socialismo por etapas, no qual, a partir da expansão de direitos, eventualmente, com sorte, se chegaria ao socialismo.

Somente por meio da luta de classes, da experiência direta das massas em processos de auto-organização a partir da base, com a direção estratégica de um partido revolucionário dotado de capacidade política e clareza programática historicamente comprovadas, será possível superar a dispersão das identidades parciais e reconstituir sua síntese na identidade política fundamental: a da classe trabalhadora enfrentando o sistema capitalista. A crescente impossibilidade de reprodução digna da vida sob o capitalismo, onde as condições materiais de existência se degradam progressivamente, levará ao reconhecimento de que a contradição fundante do capitalismo — a relação capital-trabalho — não é uma contingência, mas o núcleo estrutural a ser abolido.

Esperamos que estas linhas sirvam para ampliar os debates em torno da luta ideológica e estratégica — neste caso, centrada em torno do Estado e do poder —, mas que, com os temas e formas que assuma, deve tender à diversificação. Para isso, os debates são importantes, assim como a criatividade que desenvolvemos no calor dessas discussões e das experiências de luta, que também compõem a correlação de forças políticas.

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1. Em “O sujeito e o poder”, Foucault sustenta: “Não estive analisando o fenômeno do poder nem elaborando os fundamentos desse tipo de análise” (Dreyfus, H. L. e Rabinow, P., 2001, p. 241).

2. Cf. Castilla, E. 2025, Manual da resignação: acerca de Argentina humana de Juan Grabois.

3. “A particularidade dessas relações de poder implica superar a subordinação do poder à instância econômica, à ideologia e ao jogo das superestruturas e infraestruturas, bem como deixar de remeter esse poder ao sujeito constituinte; questões estas que procedem de um certo marxismo e uma certa fenomenologia”. (Giraldo Díaz, R. 2006. Poder e resistência em Michel Foucault, p. 107).

4. Ainda que a citação a seguir tenha sido feita sobre Vigiar e punir (1975), ela se aplica a essa etapa genealógica, e portanto vale também, se não mais ainda, para A vontade de saber.
“Que tipo de investimento do corpo é necessário e adequado para o funcionamento de uma sociedade capitalista como a nossa? Do século XVIII até o início do século XX, penso que se acreditava que o investimento do corpo pelo poder tinha que ser pesado, ponderado, meticuloso e constante. Daí esses formidáveis regimes disciplinares nas escolas, hospitais, quartéis, fábricas, cidades, alojamentos, famílias. E depois, a partir dos anos sessenta, começou-se a compreender que uma forma de poder tão pesada já não era tão indispensável como se pensava, e que as sociedades industriais podiam contentar-se com uma forma muito mais flexível de poder sobre o corpo. Descobriu-se, então, que o controle da sexualidade podia ser atenuado e adotar novas formas. É preciso estudar que tipo de corpo a sociedade atual necessita.”

5. No entanto, sobre isso também há debates, e poderia se considerar que sua “estética da existência”, levada a cabo em seu último período, não produz uma ruptura em sua produção intelectual, mas sim é a resposta a todos os problemas levantados em seu estudo sobre o poder. (Correa, J. 2022, O individualismo no último Foucault, p. 44).

6. Cf. Dávilo, B. 2018, Michel Foucault e a genealogia do sujeito moderno: governo, liberdade, verdade de si. Res publica (Madri), Vol. 21 N.º 1, 91-108.
No mesmo sentido, Maiello sustenta em “Notas sobre a luta de ideologias para além da Restauração burguesa” (2024) que: “Não se trata apenas de impor limites à ação estatal, mas sim que a economia de mercado se constitui no princípio de regulação interna da ação governamental. Por sua vez, o neoliberalismo norte-americano procurou estender a racionalidade do mercado, seus esquemas de análise e seus critérios de decisão, inclusive a âmbitos não primordialmente econômicos, como a família, a natalidade, a delinquência, a política penal, etc.”

7. Com “o livro” se refere a Vigiar e punir, de 1975. Os itálicos são do autor da nota.

8. Cf. Bensaïd, D. 2004, A política como arte estratégica, em Mudar o mundo.

9. O que, por sua vez, pode ser sustentado porque, continuando a lição citada (cf. p. 219), afirma que todas as formas estatais não pertencem a uma mesma árvore. Isso é verdadeiro apenas porque existiu a URSS, mas é outra discussão; depois acontece que essa afirmação se torna falsa, pois o restante das diferentes formas estatais se empenha em manter a diferença de classe, sendo assim esses ramos de uma mesma árvore.

10. Cf. Poulantzas, N. 2005. Estado, poder e socialismo, pp. 176-186. Para além das diferenças que possamos ter com a análise de Poulantzas, às vezes condescendente em alguns pontos centrais com Foucault, é interessante o diálogo que busca estabelecer entre a obra deste último e o marxismo, assim como as conclusões políticas que poderiam ser derivadas sobre o tema da resistência e da ubiquidade do poder.

11. Deleuze, 1987, Foucault, p. 105: “O Estado não existe, o que existe é um estatismo […]. Se a forma Estado, em nossas formações históricas, capturou tantas relações de poder, não é porque essas relações derivam dela, mas, ao contrário, porque uma operação de ‘estatismo contínuo’, por sinal muito variável segundo os casos, se produziu na ordem pedagógica, judicial, econômica, familiar, sexual, que tem por objetivo uma integração global”.
Ainda que nesta obra se suponha que Deleuze reconstrua a trajetória de Foucault por diferentes tópicos, há consenso de que desenvolve, na verdade, mais suas próprias posições.

12. Para um desenvolvimento um pouco mais detalhado desta questão, embora vulgarmente esquemático, sugerimos o artigo profoucaultiano de Fair, H., 2010, Uma aproximação ao pensamento político de Michel Foucault.

13. Para ampliar esses temas, sugerimos algumas leituras de diferentes autores ideológicos, interesses e profundidade. Negri, A. 2019, Marx depois de Foucault: o sujeito recuperado, pp. 243-255; Poulantzas, N. 2005, op. cit., pp. 179-180; Callinicos, A. 2011, op. cit., pp. 179-185. E, para uma leitura desde outra perspectiva crítica e ideológica: Giraldo Díaz, R. 2006, Poder e resistência em Michel Foucault; Deleuze, G. 2011, pp. 99-123, As estratégias ou o não estratificado, em Foucault.

14. Para conhecer diferentes posições sobre a possibilidade ou não de compatibilizar o marxismo, recomendamos o artigo de Chávez, D. 2022, Marx e Foucault: subsunção do trabalho, disciplina e biopoder.

15. As citações utilizadas por Tonelo são de Defender a sociedade, curso ministrado no Collège de France entre os anos de 1975-1976. Anos mais tarde, Foucault continuará sustentando o mesmo em algumas conferências publicadas pela primeira vez em Dreyfus, H. L. e Rabinow, P. 1982, Michel Foucault: além do estruturalismo e da hermenêutica. As conferências aparecem sob o título O sujeito e o poder. Sugerimos a leitura de ambas porque possuem um caráter de balanço (provisório) de sua obra e indicam quais foram, segundo o autor, as intenções de seus estudos.

16. Embora possamos considerar que o deslocamento na concepção de poder de Foucault comece em A ordem do discurso, aula inaugural no Collège de France em 1970, O poder psiquiátrico é um curso de inflexão onde aparecem pela primeira vez as noções de dispositivo e de microfísica e perdem-se outros esquemas conceituais.
Como sustenta Castro (2016, A verdade do poder e o poder da verdade nos cursos de Michel Foucault, pp. 51-52): “Em resumo, se em A Arqueologia do saber Foucault enfrentava a dupla tarefa de desfazer-se das categorias tradicionais da história do conhecimento e elaborar os novos instrumentos conceituais da arqueologia do saber; a partir de O poder psiquiátrico, a questão do poder será objeto de uma operação similar. Por um lado, deixar de lado categorias tradicionais como ideologia, dominação da classe burguesa ou repressão; por outro, ensaiar outras formas de análise do poder”, com as quais inaugura tangivelmente uma nova concepção de poder com a qual passará a operar, levando-o a algumas das conclusões teórico-políticas que já começamos a ver.

17. “Esse biopoder foi, sem dúvida, um elemento indispensável no desenvolvimento do capitalismo; este não pôde se afirmar senão ao preço da inserção controlada dos corpos no aparato de produção e mediante um ajuste dos fenômenos de população aos processos econômicos. Mas exigiu mais; necessitou do crescimento de ambos, seu fortalecimento ao mesmo tempo que sua utilizabilidade e docilidade; exigiu métodos de poder capazes de aumentar as forças, as aptidões e a vida em geral, sem com isso torná-las mais difíceis de dominar; se o desenvolvimento dos grandes aparelhos de Estado, como instituições de poder, asseguraram a manutenção das relações de produção, os rudimentos de anátomo e biopolítica, inventados no século XVIII como técnicas de poder presentes em todos os níveis do corpo social e utilizadas por instituições muito diversas (a família, o exército, a escola, a polícia, a medicina individual ou a administração de coletividades), atuaram no terreno dos processos econômicos, de seu desenvolvimento, das forças envolvidas neles e que os sustentam; operaram também como fatores de segregação e hierarquização sociais, incidindo nas forças respectivas de uns e outros, garantindo relações de dominação e efeitos de hegemonia; o ajuste entre a acumulação dos homens e a do capital, a articulação entre o crescimento dos grupos humanos e a expansão das forças produtivas e a repartição diferencial do lucro, em parte foram possíveis graças ao exercício do biopoder em suas múltiplas formas e procedimentos. A invasão do corpo vivo, sua valorização e a gestão distributiva de suas forças foram naquele momento indispensáveis.” (Foucault, 2007, pp. 170-171).

 

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