Virginia Pescarmona
Federico Puy
Ivana Otero
Esse texto foi publicado originalmente em espanhol para a edição de 18/05/2025 do Ideias de Izquierda Argentina
Adiantamos para nossos leitores uma das apresentações de um novo livro de Lev Vygotsky da Editora IPS: neste caso, Psicologóa Pedagógica, que pode ser adquirido aqui.
Psicologia Pedagógica compila lições destinadas a educadores nas quais Vigotski apresenta, de maneira clara e acessível, uma concepção de educação e de pedagogia construída com base em sua experiência prática revolucionária, como docente e pesquisador em uma escola para professores e outros estabelecimentos educacionais em Gómel – sudeste da Bielorrússia – após a revolução.
Como expressamos em outros prefácios e artigos 1 , sua obra não pode ser compreendida fora de seu contexto histórico nem da ação revolucionária na qual esteve imerso. Seu interesse pela psicologia vinculada à educação foi impulsionado pela necessidade de refletir sobre as transformações sociais em uma sociedade que, após a Revolução Russa de 1917, colocava pela primeira vez na história a classe trabalhadora e os povos oprimidos na direção de tomar em suas mãos as rédeas de seu próprio destino.
A publicação de Psicologia Pedagógica é uma excelente notícia para quem se interessa em conhecer a obra de Vigotski e também para aqueles que se aproximam dela pela primeira vez. Além disso, acreditamos que ela contribui para o esforço de unir o pensamento marxista com a educação — algo que a academia e os gabinetes ministeriais insistem em manter separados, repetidas vezes.
Em tempos de sobrecarga de (falta de) definições e “propostas” de governos que raramente explicitam suas perspectivas ou objetivos reais, contar com fundamentos sólidos torna-se imprescindível no debate educacional de nosso tempo. Então, por que Vigotski hoje? Porque sua obra não apenas oferece ferramentas para compreender os processos de aprendizagem, mas também é um convite para transformar a sociedade.
A educação como questão de classe: resistindo ao avanço neoliberal
A recuperação das obras de Lev Vigotski que estamos realizando pela Ediciones IPS acontece em um contexto de crise global do capitalismo, no qual emergiu uma reação que coloca em xeque diversas conquistas ou direitos, entre eles o acesso à educação.
Guardadas as devidas proporções e momentos históricos, propomos seus conceitos e elaborações para pensar a questão da educação em nosso tempo. Num mundo marcado pelo avanço do que muitos denominaram “internacional da direita” 2, cujas políticas buscam reeditar e aprofundar o modelo educacional neoliberal e individualista — alinhado aos interesses dos grandes capitais e de organismos internacionais como o FMI, o Banco Mundial e a OCDE — somando ainda um viés religioso com medidas obscurantistas.
Essa lógica se reproduz, entre outros âmbitos, no campo educacional, com base em um profundo desfinanciamento da educação pública. Trata-se de toda uma orientação em políticas educacionais e propostas pedagógicas que promovem ou aprofundam visões duais, reducionistas e unilaterais: o cognitivismo instrumental, o mainstream das neurociências cognitivas, o retorno ao determinismo genético, a educação das emoções numa chave biologicista. Diante disso, pensar o desenvolvimento complexo, dinâmico e dialético da infância fora dessas visões dualistas torna-se um ato de rebeldia 3.
Vivemos em um mundo onde milionários e magnatas afirmam que viajarão a Marte e planejam suas vidas em outros planetas, enquanto destroem este aqui com uma crise climática e ecológica de caráter civilizacional. São os mesmos que promovem diferentes variantes tecnológicas de inteligência artificial, que estão sendo exploradas para uso na educação e que colocam em questão o papel — e até mesmo a necessidade — da presença do professor. Alegam que isso seria necessário diante de um suposto atraso dos corpos docentes em relação às mudanças do mundo moderno. No entanto, o objetivo desse discurso é desviar a atenção e transferir boa parte da culpa aos docentes. Enquanto aspiram conquistar outro planeta, 333 milhões de crianças em todo o mundo vivem em pobreza extrema, e milhões não têm acesso a nenhum tipo de educação.
Nossa perspectiva é que, nesse contexto convulsivo em nível mundial e em cada país em particular, as batalhas decisivas ainda estão por vir. Preparamo-nos para uma etapa de enfrentamentos mais radicais entre as classes, o que abre caminho para a luta por novas ideias e novas formas de pensar. Por isso, as elaborações que estamos resgatando, reconstruindo e nos apropriando da obra de Lev Vigotski nos servem para contrabalançar esses ataques, preparar melhores respostas e refletir sobre como unir essa batalha de ideias a um cenário em que estejam em jogo a atividade e autodeterminação dos setores populares, partindo da necessidade de aprofundar nossa crítica de classe à educação capitalista.
Revolução, educação politécnica e valores socialistas
Como parte dessa luta por uma visão revolucionária da educação, no capítulo IV de Psicologia Pedagógica Vigotski analisa como os sistemas educacionais, ao longo da história, responderam essencialmente aos ideais da classe dominante e à estrutura econômica e social de cada época:
basta observar os sistemas educativos em seu desenvolvimento histórico para notar que os objetivos da educação, na realidade, sempre foram muito concretos e vitais, e sempre responderam aos ideais da época, à estrutura econômica e social da sociedade que determina toda a história de uma era. Se esses ideais sempre foram formulados com diferentes palavras, isso se deveu, em cada ocasião, ou à incapacidade científica do pensador, ou à hipocrisia de classe da época 4 .
Embora muitos de seus conceitos nos sirvam para pensar as diferentes épocas pelas quais passa o capitalismo e sua relação com a educação, ele desenvolve ali, em profundidade, certos problemas da educação em uma sociedade em transição ao socialismo após a revolução. Nesse sentido, aponta que “os objetivos da educação, na realidade, sempre foram bem concretos e vitais”, ligados aos interesses da sociedade em que se desenvolvem. Afirma, de maneira polêmica, que a educação teve, em todos os lugares e em todos os momentos, um caráter de classe, embora nem sempre isso seja reconhecido por aqueles que a promovem. Ou seja, para Vigotski, a educação é uma função social completamente determinada, que sempre se orienta aos interesses da classe dominante. Acreditamos que retomar essa definição não implica desconhecer a relativa autonomia do papel docente — questão que abordaremos mais adiante —, mas sim nos permite colocar em debate e compreender a relação entre um determinado sistema de exploração e opressão e as formas pelas quais esse sistema se inculca, se difunde e se sustenta.
Como expressamos no início, as ideias de Vigotski estão profundamente ligadas à experiência da Revolução Russa, na qual a educação foi um pilar fundamental. Em novembro de 1917, logo após o início da Revolução, o comissário de Instrução Pública, Anatoli Lunacharski, publicou o Decreto sobre a Educação Popular, no qual propunha uma distinção importante: o ensino é a transmissão de conhecimentos já definidos do professor para o aluno, mas a educação é um processo criador. Ao longo de toda a vida, a personalidade das pessoas é “educada”, se expande, se enriquece, se afirma e se aperfeiçoa 5 .
Com esse Decreto, Lunacharski enfatizava que as massas populares — entre elas, trabalhadores e camponeses — não apenas desejavam saber ler, escrever e se instruir nas ciências, mas também buscavam uma educação que respondesse à sua própria realidade social, distinta daquela das classes dominantes. Segundo essa perspectiva, a classe trabalhadora não deveria receber passivamente a cultura criada pelos intelectuais, mas construir sua própria concepção de mundo, reflexo de sua experiência coletiva:
As massas populares trabalhadoras — operários, soldados, camponeses — ardem em desejo de aprender a ler e escrever, de iniciar-se em todas as ciências. Mas aspiram igualmente à educação, que não pode ser dada nem pelo Estado, nem pelos intelectuais […] ninguém mais senão por elas mesmas. […]. Elas têm suas ideias, fruto de sua situação social, muito diferente daquela usufruída pelas classes dominantes e pelos intelectuais que até agora foram os criadores da cultura; têm suas ideias, seus sentimentos, sua maneira de abordar todas as tarefas do indivíduo e da sociedade. Cada um a seu modo, o operário da cidade e o trabalhador do campo edificarão sua própria concepção luminosa do mundo, impregnada do pensamento da classe trabalhadora. Este será o fenômeno mais grandioso e mais belo do qual as gerações futuras serão testemunhas e protagonistas: o da edificação, pelas coletividades de trabalhadores, de sua alma coletiva, rica e livre 6 .
A Revolução Russa não apenas expropriou os capitalistas e nacionalizou a economia, como também impulsionou transformações radicais em diversos âmbitos da vida social. Avançou-se na socialização do trabalho doméstico, descriminalizou-se a homossexualidade, permitiu-se o divórcio e garantiu-se o direito ao aborto — antes de qualquer outro país.
Como assinala a historiadora Wendy Goldman,
Os bolcheviques argumentavam que somente o socialismo poderia resolver a contradição entre o trabalho e a família. Sob o socialismo, o trabalho doméstico seria transferido para a esfera pública: as tarefas realizadas no lar por milhões de mulheres de forma individual e sem remuneração seriam atribuídas a trabalhadores pagos por meio da criação de refeitórios, lavanderias e centros comunitários de cuidado infantil. As mulheres seriam libertadas para ingressar na esfera pública em igualdade com os homens, sem os entraves do lar. As mulheres receberiam a mesma educação e o mesmo salário que os homens 7 .
Nadezhda Krúpskaia, dirigente bolchevique e principal referência do sistema educacional, propôs, juntamente com Lunacharski, uma escola mista, comum para todas as crianças, sem distinção de classe social ou gênero. Escolas foram construídas por todo o território, os exames e os castigos tradicionais foram eliminados, sendo considerados métodos mecânicos que “fomentam a obediência baseada no medo ou no interesse pessoal” 8 .
A educação na revolução buscava responder a um verdadeiro ideal de igualdade e construção coletiva. Por isso, em Psicologia Pedagógica, Vigotski critica a educação separada por gênero, tal como era praticada em sua época, ao considerar que ela reforçava os papéis de gênero predeterminados e dificultava a formação de vínculos baseados no companheirismo e na solidariedade. Além disso, ele aponta que essa separação se sustentava em uma concepção sexista da mulher, entendida principalmente como objeto sexual, o que contribuía para reduzir seu papel na vida social. Para Vigotski, essa dinâmica educativa respondia às necessidades da sociedade burguesa, onde os papéis de gênero estavam claramente delimitados: “ali intervinham as diferentes vocações para as quais meninos e meninas eram preparados na escola burguesa. O ideal da educação era uma cópia da vida que no futuro deveriam levar o homem e a mulher”9 .
Diante dessas aspirações elevadas para a época, o principal obstáculo em relação à educação era o alto índice de analfabetismo, que superava os 70% da população. Por isso, a Revolução recorreu à mobilização das massas em uma enorme campanha de alfabetização que incluiu todos os que soubessem ler e escrever. Ao mesmo tempo, impulsionou-se a organização dos sovietes da educação, uma forma de organização em que a direção do ensino não era imposta de cima, mas organizada pelo próprio povo trabalhador: “queremos que o povo dirija o país e seja dono de si mesmo […] Nosso trabalho consiste em ajudar verdadeiramente o povo a tomar seu destino em suas próprias mãos” 10 . A chegada de uma figura como Vigotski, de sua natal Gômel a Moscou, para se unir ao Instituto de Psicologia Experimental de Moscou (IPEUM) e iniciar seu curto, porém brilhante, caminho na psicologia, é inseparável das necessidades da Revolução frente a essas tarefas 11 .
Como assinalou León Trotsky:
o simples fato de que a Revolução de Outubro tenha ensinado o povo russo, as dezenas de povos da Rússia czarista, a ler e escrever, é incomparavelmente mais importante do que toda a cultura russa restrita de outros tempos12 .
A autogestão escolar e a educação politécnica
Seguindo o espírito da necessidade de participação desde baixo, nesta nova pedagogia os estudantes ocupam um papel central. Trata-se de uma elaboração científica que confronta a concepção tradicional na qual os estudantes são uma mera tábula rasa e o docente é um simples executor de conceitos pré-fabricados. Nesse sentido, afirma-se que: “até agora, o aluno sempre esteve sobre os ombros do mestre. Olhava tudo com seus olhos e julgava com sua mente. É hora de colocar o aluno sobre os próprios pés” 13 .
Por isso, Vigotski enfatiza a auto-organização dos estudantes, refletindo que: “a autogestão na escola, a organização das próprias crianças, é o melhor meio de educação moral” 14 . No entanto, adverte que isso não deve se limitar a uma simples imitação das estruturas adultas nem se reduzir ao cumprimento de formalidades.
Em virtude disso, organizar o meio social na escola significa não apenas criar o estatuto da direção escolar e convocar regularmente as crianças para as assembleias gerais, realizar eleições e observar todas as formas de sociabilidade que as crianças adotam com prazer dos adultos. Significa, antes, preocupar-se com os vínculos verdadeiramente sociais que devem impregnar esse ambiente. Começando pelas relações íntimas e amistosas, que envolvem os menores grupos sociais, passando depois às uniões mais amplas de caráter companheiro e terminando com as formas maiores e mais amplas do movimento infantil, a escola deve impregnar e envolver a vida da criança com milhares de vínculos sociais 15 .
Para Vigotski, “educar significa organizar a vida”, já que o crescimento individual está profundamente ligado ao meio social. Assim, a educação não pode se separar do contexto no qual está inserida e, por isso, “os problemas da educação só serão definitivamente resolvidos quando forem definitivamente resolvidos os problemas da ordem social” 16 . Enquanto persistirem contradições na sociedade, estas também afetarão os mais bem-intencionados esforços educacionais:
Todo esforço de construir ideais de educação em uma sociedade com contradições é uma utopia porque, como vimos, o único fator educativo que estabelece as novas reações da criança é o meio social, e enquanto este contiver contradições insolúveis, essas contradições provocarão fissuras na educação mais bem pensada e inspirada 17 .
Outro eixo central foi a educação politécnica. Em debate com aqueles que queriam que a educação se limitasse à preparação para uma profissão específica, defendia-se que o conhecimento deveria estar ligado à produção e à preparação para dirigir a sociedade. Esse foi um debate que percorreu toda a Revolução Russa e teve diferentes momentos. Para Vigotski, ela deveria estar conectada às necessidades e aspirações do povo trabalhador, sustentando-se que o sistema educacional deveria permitir que o filho de um operário industrial pudesse ser operário em uma fábrica, ou diretor de uma indústria, ou membro da Academia de Ciências, sem que a escolha profissional fosse restringida desde a infância. Isso significava educação geral universal, tanto no nível primário quanto no secundário, e descartava a possibilidade de especialização profissional precoce nas escolas. O desenvolvimento desse aspecto não se dá apenas no campo prático, relacionado à “política educacional” ou à elaboração dos currículos, mas também com fundamentos científicos da Psicologia: “a criança contém em potência uma infinidade de personalidades futuras; pode vir a ser isto, aquilo ou aquilo outro. A educação realiza a seleção social da personalidade externa” 18 .
Trata-se de uma proposta de formação politécnica que não significa “pluralidade de ofícios” ou a combinação de muitas especialidades em uma só pessoa, mas o conhecimento dos fundamentos gerais do trabalho humano 19 . Onde o trabalho se converte em conhecimento científico e, para adquirir os hábitos necessários a esse trabalho, é preciso dominar verdadeiramente todo o enorme capital de conhecimentos acumulados sobre a natureza, os quais são utilizados em cada aperfeiçoamento técnico.
Segundo Vigotski, o mais importante é a ação puramente educativa que se realiza durante esse trabalho: ele se transforma em um trabalho consciente por excelência, une-se o trabalho intelectual ao trabalho manual, exige-se dos participantes o máximo de esforço de todas as forças da inteligência e da atenção, e eleva-se o labor de um operário comum aos degraus superiores do trabalho criativo humano.
Mas sua visão da educação vai além. Para Vigotski, a tarefa de educar é complexa e deve estar baseada no conhecimento e no método científico. Isso implica:
Duas tarefas: primeiro, o estudo individual de todas as propriedades particulares de cada educando, e, segundo, a adaptação individual de todos os métodos de educação e da influência do meio social sobre cada um deles. Medir todos pela mesma régua é o maior erro da pedagogia, e sua principal premissa exige, sem falta, o aspecto da individualização, ou seja, a determinação consciente e precisa dos objetivos individuais da educação para cada aluno em particular 20 .
Outro aspecto desenvolvido é a educação estética, entendendo a arte como uma atividade humana, a criação como expressão do desenvolvimento humano, com seus limites e potencialidades:
Acontece que, como toda vivência intensa, a vivência estética cria uma orientação muito marcada para as ações futuras e, é claro, nunca passa sem deixar marcas em nossa conduta futura. Muitos comparam com toda razão a obra poética a um acumulador de energia, que a libera posteriormente 21 .
A reflexão o conduz a polêmicas sobre esse aspecto, e à afirmação de que a arte transfigura a realidade não apenas nas construções da fantasia, mas também na reelaboração real das coisas, dos objetos, das situações. A moradia e a roupa, a conversa e a leitura, a festa escolar e o modo de andar: tudo isso pode servir, em igual medida, como o material mais promissor para a elaboração estética 22.
Atualidade do debate sobre o potencial do papel docente e a luta pelo socialismo
Muitas das concepções apontadas em Psicologia Pedagógica por Vigotski continuam atuais para pensar diferentes problemas educacionais hoje, como o desenvolvimento das infâncias e adolescências e o papel do docente, entre outros. Incluir essa abordagem é fundamental porque contribui com definições muito concretas sobre o trabalho educativo: por um lado, as infâncias e adolescências não são uma tábula rasa, mas sujeitos ativos em processo de formação; por outro, é essencial diferenciar entre a individualização da educação — como atenção aos tempos, interesses e trajetórias singulares — e o individualismo educacional, que fragmenta, isola e responsabiliza o sujeito pelos resultados de sua escolaridade. Esses debates, que poderiam parecer ultrapassados, seguem plenamente atuais no campo educacional, reacendidos por correntes ligadas à neurociência e à chamada “gestão” das emoções, que exacerbam o individualismo e reforçam lógicas meritocráticas.
A partir da nossa leitura, a abordagem de Vigotski propõe uma perspectiva socialista da sociedade e, com ela, uma pedagogia da cooperação, orientada a potencializar plenamente o desenvolvimento humano a partir da autogestão da vida coletiva e a formar sujeitos capazes de serem protagonistas conscientes no governo e na organização do coletivo. A partir dessa visão mais ampla, acreditamos que o papel do docente está nos antípodas de se reduzir ao de mero transmissor ou “gramofone” de saberes oficiais. Ao contrário, o educador deve assumir a tarefa de organizar o entorno social no qual se dá o processo de ensino-aprendizagem, reconhecendo-se como parte fundamental dessa reeducação crítica voltada para outra concepção de educação que não se restrinja às quatro paredes da sala de aula. Nesse sentido, nosso ponto de partida não pode ser outro senão questionar a profunda subordinação atual da educação às lógicas do capital.
Diferente dos governos que exigem que o professor seja um profissional “faz-tudo” — que exerça o papel de cuidador, assistente social, psicólogo, e por aí vai — encontramos em Psicologia Pedagógica um Vigotski que sustenta que o trabalho integral do pedagogo deve estar intrinsecamente vinculado ao seu trabalho social, criativo e à luta por outra forma de vida. Em suas próprias palavras: “o mestre deve ser mestre até o fim e, ao mesmo tempo, deve ser não apenas mestre ou, melhor dizendo, deve ser algo mais do que mestre”23 .
Esse potencial papel docente, junto com a centralidade que Vigotski atribui à autogestão escolar e a uma educação “politécnica” na luta pelo socialismo, são parte de um caminho que podemos repensar à luz dos debates e lutas atuais. Nós, que nos reivindicamos socialistas, pensamos em uma educação que acompanhe e prepare os filhos da classe trabalhadora para serem dirigentes da nova sociedade, de uma nova ordem.
Por isso, diante do ataque constante que pretende anular esse aspecto do papel docente, junto com a precarização de suas condições de trabalho, é fundamental que os educadores consigam vincular os conflitos educacionais com o que acontece no conjunto da sociedade. As escolas têm o potencial de se transformar em um espaço-chave para a organização comunitária, escolas como núcleos de resistência frente às políticas de ajuste e ataque a direitos, onde se articulam as demandas imediatas pelas condições de trabalho docente, com as condições materiais das famílias trabalhadoras e dos setores populares, e com a própria educação. Junto a isso, a luta por uma pedagogia crítica baseada em valores de solidariedade e cooperação, e os conteúdos da própria educação, tornam-se indispensáveis para essa articulação.
Em pleno século XXI, as tensões entre capitalistas e trabalhadores vão se tornando cada vez mais agudas. Os empresários e os organismos de crédito internacionais querem que a classe trabalhadora trabalhe cada vez mais horas para garantir maiores lucros. Enquanto produzem tecnologias que servem aos seus próprios interesses e não às necessidades da humanidade, querem chamar isso de era da robótica e da inteligência artificial. A demanda por redução da jornada de trabalho e por tempo disponível para a vida, que poderia ser dedicado muito mais à educação — a qual poderia exercer um papel criativo e de potencialização das capacidades humanas — marca um horizonte de luta por uma sociedade sem exploração nem opressão.
Nossa luta está voltada, hoje mais do que nunca, para que o desenvolvimento tecnológico e a acumulação de conhecimentos (produzidos pela sociedade, mas hoje apropriados por um punhado de capitalistas) possam estar a serviço da emancipação do ser humano e da conquista de uma relação harmoniosa com o planeta. Quantos estudantes com diferentes capacidades e potencialidades encontramos nas salas de aula, que o capitalismo esmaga e deixa apenas lutando por um prato de comida para sobreviver.
Alerta de spoiler. Vigotski finaliza o livro sintetizando as aspirações históricas sobre as quais se apoia a concepção educativa revolucionária com uma citação retirada do livro Literatura e Revolução, de Leon Trotsky, que coloca no centro a ideia de que a pedagogia, em um sentido amplo e profundo, após a revolução e em paralelo ao desenvolvimento tecnológico, passará a ser a rainha do pensamento social. Que após essa transformação profunda, abrir-se-ão debates, criar-se-ão correntes de pensamento, gerar-se-ão intercâmbios acalorados. Vigotski estava pensando na transição do capitalismo ao socialismo.
Nesse mesmo sentido, acreditamos que nessa luta pelo socialismo:
se abrem para o educador possibilidades ilimitadas para a criação da vida em sua infinita diversidade. Para além dos estreitos limites da tarefa e da vida pessoais, ele se tornará um verdadeiro criador do futuro. Então, a pedagogia, como criação da vida, ocupará o primeiro lugar 24 .
O que expusemos aqui são apenas algumas reflexões possíveis sobre as elaborações de Lev Vygotsky. Aspiramos ter gerado interesse e questionamentos suficientes para que façam sua própria leitura de Psicologia Pedagógica e que ela passe de mão em mão, circule por salas de aula, corredores, bibliotecas, oficinas, encontros, reuniões acadêmicas, políticas, sindicais, em escolas e mais. Não propomos uma leitura linear, única ou fechada. O debate está aberto. E a luta por transformar o mundo para conquistar uma nova educação, como parte da luta por transformar o mundo, está colocada. Mãos à obra.
1. Referimo-nos às obras de Lev Vygotsky já publicadas pela IPS: Vygotsky, Lev, O significado histórico da crise da psicologia, Buenos Aires, Ediciones IPS, 2022, e Lições de paidologia, Buenos Aires, Ediciones IPS, 2024. E também a Otero, Ivana e Vilardo, Claudio, “Vygotsky: nas pegadas de uma vida revolucionária”, Ideas de Izquierda, 19/10/2023; Duarte, Juan, “Vygotsky, a Revolução Russa e o marxismo: uma primeira aproximação”, Ideas de Izquierda, 1/07/2024; Duarte, Juan, “100 anos da Revolução Russa. Vygotsky e a álgebra da revolução”, La Izquierda Diario, 8/11/2017. Todas consultadas em 26/03/2025 em: https://www.laizquierdadiario.com.
2. Esses governos, representados por figuras como Donald Trump nos Estados Unidos, Giorgia Meloni na Itália e Javier Milei na Argentina, entre outros, emergem muitas vezes como consequência do fracasso dos governos chamados “progressistas” que, tanto na América Latina quanto na Europa, não se propuseram a transformar as condições estruturais do sistema.
3. Insiste-se que o/a docente deve ser um “facilitador”, como se seu trabalho fosse uma mera técnica. Mas a tarefa docente tem um aspecto prático e um intelectual. O conhecimento com o qual trabalhamos – coletivo, situado – é precisamente o que tentam nos arrancar, reduzindo-o a medições padronizadas. Por isso, esta publicação é uma contribuição para construir fundamentos que, em vez de se adaptarem a essas tendências dominantes, tenham como horizonte uma visão dialética e integral do desenvolvimento das infâncias”, La Izquierda Diario, 10/04/2024, consultado em 26/03/2025 em: https://www.laizquierdadiario.com/Novedad-editorial-Aportesde-Vigotski-para-recuperar-una-vision-marxista-en-educacion.
4. Ver neste livro, p. 242.
5. Lunacharski, A. V., “Decreto sobre a educação popular”, 11/11/1917, em Reed, John, Dez dias que abalaram o mundo, Buenos Aires, Ediciones IPS, 2017, p. 345.
6. Idem.
7. Goldman, Wendy, La mujer, el Estado y la revolucion, Buenos Aires, Ediciones IPS, 2010, p. 29.
8. Ver neste livro, p. 242.
9. Ver neste livro, p. 128.
10. Sheila Fitzpatrick, historiadora australiana reconhecida e especializada na história da Rússia e da União Soviética, oferece uma biografia completa de Lunacharski em sua obra Lunacharski e la organización soviética de la educação y de las artes (1917-1921), México, Siglo XXI, 1977.
11. Cf. Van der Veer, R. e Valsiner, J., Understanding Vygotsky: a quest for synthesis, Oxford UK e Cambridge EUA, Blackwell, 1991.
12. Leon Trotsky, “Em defesa da Revolução de Outubro”, Conferência em Copenhague, novembro de 1932, em Outubro: escritos sobre a Revolução Russa, Buenos Aires, Ediciones IPS, 2013, p. 279.
13. Ver neste livro, p. 380.
14. Ibidem, p. 281.
15. Ibidem, pp. 281-282.
16. Ibidem, p. 282.
17. Idem.
18. Ver neste livro, p. 108.
19. Ibidem, p. 236.
20. Ibidem, p. 264.
21. Ibidem, p. 299.
22. Também refletirá sobre a educação estética, a qual definirá como importante para introduzir as reações estéticas na própria vida. Para Vygotsky, “A beleza deve se tornar, de algo raro e festivo, uma exigência da vida cotidiana. E o esforço criativo deve impregnar cada movimento, cada palavra, cada sorriso da criança”. Ibidem, p. 306.
23. Ibidem, p. 383.
24. Trotsky, L., Literatura e Revolução, Buenos Aires, RyR, 2015. Tradução de Alejandro Ariel González.