Revista Casa Marx

A independência da África do Sul e as teses de Trotski

Daniel Lencina

Nahuel Guzman

Foi em 31 de maio de 1961. Pelas lentes de Leon Trotski, vemos alguns dos possíveis caminhos que propôs em 1935 para alcançar a verdadeira independência.

Em 1487, Bartolomeu Diaz foi o primeiro europeu a chegar ao ponto mais ao sul da África, e o chamou de Cabo das Tormentas. Mais tarde, D. João II de Portugal mudaria o nome para Cabo da Boa Esperança. O objetivo principal era conseguir expandir as rotas comerciais imperialistas.

Em 1797, a Grã-Bretanha ocupou a área do Cabo da Boa Esperança durante a Quarta Guerra Anglo-Holandesa. Os holandeses declararam falência e os britânicos anexaram a Colônia do Cabo em janeiro de 1806. O governo britânico suspendeu o tráfico de escravos, para finalmente aboli-lo em todas as suas colônias em 1833 (a abolição foi apenas de palavra, pois nunca deixou de ocorrer).

Entre 1867 e 1886, a África do Sul, impulsionada primeiro pela descoberta de diamantes e depois de ouro, vivenciou o auge econômico e a exploração de seus nativos, a escravidão e a necessidade de mão de obra aumentaram as contradições de classe.

O objetivo do governo britânico era consolidar “uma África inglesa do Cabo ao Cairo”. Mas as duas pequenas repúblicas de origem bôer (colonos holandeses), o Transvaal e o Estado Livre de Orange, eram um obstáculo aos objetivos ingleses. Essa oposição desencadeou a Guerra dos Bôeres de 1889-1902. Foi a primeira vez que o Império Britânico utilizou campos de concentração, onde mais de 26.000 bôeres morreram, incluindo mulheres e crianças. Após a vitória britânica, o controle total da região foi alcançado e, então em 1910, a União da África do Sul foi criada.

Em 1934, os partidos nacionais e o partido sul-africano se fundiram para formar o Partido Unificado. Seu principal objetivo era buscar a reconciliação entre os afrikaners e o restante dos brancos, uma união que acabou fracassando quando o partido votou pela entrada na Segunda Guerra Mundial. A ala do partido nacionalista que chegou ao poder em 1948 simpatizava com a ideologia nazista e foi a impulsionadora e a principal promotora do que mais tarde seria conhecido como Apartheid, que em africâner significa “separação”.

O regime político do Apartheid foi imposto a sangue e fogo, com benefícios para a raça branca que eram realmente avassaladores às liberdades da raça negra na África do Sul, como o fato de que somente brancos podiam votar, viajar livremente pelo país e era considerado legal que  uma pessoa branca ganhasse mais do que uma pessoa negra mesmo fazendo o mesmo trabalho. Os negros tinham que viver em áreas distantes dos brancos e estudar em escolas separadas, já que sua educação deveria ser limitada. Sob tal opressão, surgiram formas de resistência contra a segregação racial; greves, manifestações e sabotagens que foram brutalmente reprimidas pelo governo nacional.

O Massacre de Sharpeville

Um dos eventos mais lembrados e condenados foi o que ficou conhecido como o “Massacre de Sharpeville”, um crime que ocorreu em 21 de março de 1960, quando a polícia abriu fogo contra uma manifestação que protestava contra o apartheid. O resultado dessa repressão brutal foi 69 mortos e 180 feridos. Após esse massacre, o governo declarou estado de emergência, mais de 11.000 pessoas foram presas e o CNA (Congresso Nacional Africano) e o PAC (Congresso Pan-Africano) foram banidos, com seus membros  colocados na clandestinidade e forçados a se esconder ou se exilar.

A partir desse momento, ambas as organizações abandonaram a estratégia tradicional de protesto não violento e iniciaram a luta armada contra o Apartheid, mas com uma estratégia reformista, da qual Nelson Mandela foi seu principal líder, ficando preso por 27 anos por sua militância política. Mesmo da prisão, no entanto, seguia defendendo uma saída política conciliadora.

Sharpeville marcou um ponto de inflexão  para o povo sul-africano e desencadeou uma série de protestos ao redor do mundo condenando as mortes e a segregação racial.

Finalmente, em 1960, foi realizado um referendo para que os brancos votassem a favor ou contra a união com o Reino Unido. 52% votaram contra. A África do Sul tornou-se independente do Reino Unido, mas foi apenas em 31 de maio de 1961 que se oficializou a República da África do Sul.

A visão de Trotski sobre os possíveis caminhos para a independência

Agora vamos ver como Trotski pensou a relação e as tarefas do movimento operário nos países imperialistas e suas colônias. Para isso, recomendamos especialmente ao leitor a leitura do ensaio “Sobre as teses sul-africanas”, escrito em meados da década de 1930, onde Trotski reflete junto à pequena seção sul-africana da Quarta Internacional sobre as tarefas em questão (esta seção sul-africana é a que primeiro traduziu o Manifesto Comunista para o africâner).

A primeira definição de Trotski sobre isso é categórica:

“As possessões britânicas na África do Sul constituem um domínio apenas da perspectiva da minoria branca. Da perspectiva da maioria negra, a África do Sul é uma colônia escravizada. Nenhuma mudança social (principalmente uma revolução agrária) pode ser considerada enquanto o imperialismo britânico mantiver o controle da África do Sul. A derrubada do imperialismo britânico é tão indispensável para o triunfo do socialismo na África do Sul quanto na própria Grã-Bretanha.”

Trotski levanta os possíveis caminhos para a independência da África do Sul e argumenta que a liquidação da hegemonia do imperialismo britânico naquele país poderia ocorrer como consequência da derrota militar britânica e da desintegração do império. Nesse mesmo sentido, apontava que:

 

“Outra possibilidade, que na prática está ligada à primeira, é uma revolução na Grã-Bretanha e nas suas possessões coloniais. Três quartos da população sul-africana (quase seis milhões de um total de cerca de oito milhões) são não europeus. Uma revolução vitoriosa é inconcebível sem o despertar das massas nativas. Ao mesmo tempo, isso lhes dará o que lhes falta hoje: confiança em sua própria força, uma consciência pessoal e um nível cultural mais elevado.”

E como consequência lógica dessa situação, avalia a possibilidade de uma “república negra” formulando a seguinte hipótese estratégica:

“Nessas condições, a república sul-africana emergirá, antes de tudo, como uma república “negra”; é claro, isso não exclui a igualdade completa para os brancos ou relações fraternais entre as duas raças; dependerá fundamentalmente da conduta adotada pelos brancos. Mas é óbvio que a maioria predominante da população, libertada de sua dependência escravizante, deixará sua marca no Estado.”

Trotski argumenta que o partido revolucionário deve tomar a questão da opressão racial em suas próprias mãos e, nesse sentido, lutar pela unidade dos trabalhadores negros e brancos, unidos contra a burguesia nativa e imperialista. Além disso, apontava também como somente um governo de trabalhadores e camponeses pode resolvê-los como uma forma de “ditadura do proletariado (negro)”.

Na mesma linha, Trotski faz uma analogia com a Revolução Russa de 1917 na questão das nacionalidades oprimidas pelo czarismo. Argumenta que o direito dos negros de construir seu próprio estado, separados dos brancos — se assim o desejarem — é mais do que legítimo, e enfatiza que a Revolução Russa triunfou porque tanto as nacionalidades oprimidas quanto o campesinato, com a questão da reforma agrária, deram ao proletariado a oportunidade de tomar o poder para resolver essas questões — o que transformou a revolução democrática em uma revolução socialista — de maneira ousada. (ver “A Questão Nacional”).

Mesmo em um texto anterior ao citado, Trotski sustenta, em dura polêmica com líderes reformistas na Inglaterra – após a greve geral de 1926 –, que “para cada habitante das Ilhas Britânicas há cerca de nove escravos coloniais” e, refletindo sobre as possibilidades e tarefas revolucionárias do movimento operário naquele país, sustenta que: “os operários elegeriam seus representantes, não nas circunscrições eleitorais, estabelecidas para enganá-los, que atualmente dividem a Inglaterra, mas pelas fábricas e oficinas. Os Conselhos de Deputados Operários (Sovietes) renovariam todo o aparato estatal de cima a baixo. Os privilégios de nascimento e riqueza desapareceriam junto com a falsa democracia que é mediada pelos Bancos. Uma verdadeira democracia operária seria estabelecida, unindo a gestão da economia do país à sua administração política. Um governo, pela primeira vez verdadeiramente apoiado no povo, estabeleceria relações livres, igualitárias e fraternais com a Índia, o Egito e as demais colônias atuais.” (ver “Para onde vai a Inglaterra?”)

A independência da África do Sul foi o produto de uma grande luta do povo negro e do grande declínio do imperialismo britânico. Apesar disso, não foi produto de uma revolução. O CNA, sendo a liderança majoritária do povo negro, foi gradualmente rebaixando seu programa e concordou em chegar ao poder por meio de eleições em uma república burguesa. Como resultado, não se conseguiu que o proletariado inglês desenvolvesse organizações soviéticas na luta contra seu próprio governo imperialista.

“A arma histórica para a libertação nacional só pode ser a luta de classes” (Trotski):

Ao contrário da opinião de Trotski, Nelson Mandela e o CNA já na década de 1980 eram proeminentes na tentativa de impedir o desenvolvimento de uma revolução negra na África do Sul. A mobilização e a atividade da classe trabalhadora negra se intensificaram tanto que não puderam ser contidas apenas pela repressão. Essa situação estava começando a ameaçar o domínio da burguesia branca. O imperialismo norte-americano percebeu que a situação não poderia continuar como antes. O governo dos EUA exerceu forte pressão sobre o governo de De Klerk e outros representantes da classe dominante branca para forçá-los a aceitar algum tipo de concessão, como um governo “majoritário” (negro) com condicionantes importantes.

O acordo alcançado entre De Klerk e a direção do Congresso Nacional Africano (CNA) foi o deformar um governo de compromisso com representantes de todos os partidos, liderado por Mandela. Somente nas eleições de 1999 as restrições seriam suspensas. A direção do CNA, especialmente Mandela, concordou em fazer um acordo com a classe dominante branca em troca da sua integração a esta. Eles garantiram que nada fundamental mudaria. Os dirigentes do CNA, por sua vez, prometeram aceitar a implementação de políticas de austeridade, a dominação do grande capital branco e não tomar nenhuma ação contra os responsáveis ​​por crimes ocorridos no passado ​​contra as massas. Em outras palavras, aceitaram uma entrega completa em troca da liquidação dos aspectos formais do Apartheid, sem os quais a transição não teria sido possível.” (Ver “Transições para a Democracia”. Um instrumento do imperialismo dos EUA para administrar o declínio de sua hegemonia.”)

Hoje, a África do Sul continua sendo uma semicolônia valorizada somente por sua imensa riqueza. Os negros chegaram ao poder após uma transição democrática por meio de uma Comissão de Reconciliação, na qual o arcebispo negro Desmond Tutu desempenhou um papel de destaque. Apesar dessa mudança, os brancos continuam sendo donos das principais empresas e a maioria negra continua vivendo na pobreza. Ainda assim, as possibilidades latentes de luta anti-imperialista na África do Sul permanecem mais do que vivas.

Carrinho de compras
Rolar para cima