Mathias Nery
Neste texto buscamos analisar como Fanon propõe a desalienação do negro, quais fundamentos e relações devem ser negadas para recusar de modo autêntico a condição de inferioridade posta pelo colonialismo na sua primeira obra, Pele negra, mascaras brancas.
Fanon, foi um filósofo, psiquiatra e revolucionário que lutou em prol da libertação da Argélia até seus últimos anos de vida1, marcada por sucessivas rupturas entre o “ideal e a realidade cotidiana, entre a dignidade do homem, a mesma em qualquer parte, e a segregação, o racismo incontornável, normal, inscrito no seio desse cotidiano”(Cherki, 2022, p.38). Esta experiência começa mais profundamente com sua participação na segunda guerra mundial. Levado pelos ideais humanistas, alistou-se no exército francês para lutar contra o nazismo junto com vários jovens das Antilhas. Dentro do exército democrático frances os jovens antilhanos encontraram “uma espécie de sombra distante, mas real, da escravidão e do navio negreiro”(Ibid.) quando embarcaram no Oregon, no meio da noite e como muitos dentro do porão. Com uma estratificação em base a raça e origem, o exército francês possuía camadas bem definidas, os soldados de origem da África Subsaariana inseridos na infantaria senegalesa, já os soldados provenientes das Antilhas eram assimilados como voluntários europeus. No entanto, a violência era a marca e era orientada pelo racismo dentro do exército francês, qualquer “desleixo” a repreensão era na forma de pontas-pés nas nádegas(Ibid). Querendo lutar contra o nazismo, que declarava um superioridade racial ariana, Fanon deparoou-se com uma “descriminação étnica e o nacionalismo mesquinho” (Ibid, p.43), claramente arrependido pela sua escolha de lutar pelos ideais democráticos da França imperialista, que se revelou uma “falsa ideologia, esse escudo utilizado por laicos e políticos imbecis. Eu estava errado!”(Fanou apud Cherki, 2022, p.40) – afirmou Fanon. Com o fim da guerra, em 1945 ele volta a Fort-de-France, estuda com Cesèrie, mas no mesmo ano troca a Antilha pela Metrópole, vai a universidade na França, e escolhe estudar medicina no âmbito da psiquiatria em Lyon em 1946.
Durante sua formação, Fanon produziu Peau noire, masques blancs (Pele Negra, Máscaras Brancas), combinando seu interesse em psicanálise, existencialismo e crítica ao colonialismo e ao racismo, além de sua própria experiência pessoal. O texto, inicialmente submetido como tese de doutorado, foi rejeitado frente às exigências ainda positivistas da academia médica francesa. Fanon então, em curto intervalo de tempo, fez uma nova dissertação mais técnica que lhe garantiu o título. Diferente do texto original que se tornou um clássico, a segunda tese permaneceu inédita por décadas, sendo publicada apenas em 2015 no volume Écrits sur l’aliénation et la liberté, organizado por Jean Khalfa e Robert Young.
Neste texto buscamos analisar como Fanon propõe a desalienação do negro, quais fundamentos e relações devem ser negadas para recusar de modo autêntico a condição de inferioridade posta pelo colonialismo na sua primeira obra, Pele negra, mascaras brancas. A obra fanoniana guarda um caráter particular, ela não só busca desvelar as consequências do colonialismo e racismo na “alma” do negro, como também fincar um debate dentro da psicologia , das elaborações filosoficas e correntes politicas do seu tempo2, alertando suas insuficiências para analisar a situação do negro. Insuficientes também para propor uma “solução” as psicopatologias. Este objetivo é colocado explicitamente no prefácio da obra
Reagindo contra a tendência constitucionalista em psicologia do fim do século XIX, Freud, através da psicanálise, exigiu que fosse levado em consideração o fator individual. Ele substituiu a tese filogenética pela perspectiva ontogenética. Veremos que a alienação do negro não é apenas uma questão individual. Ao lado da filogenia e da ontogenia, há a sociogenia.(Fanon, 2008, p.28)
Ou seja, a sua análise da psique do negro colonizado, em espécial o negro antilhano, está norteada pela sóciogênese. Este conceito além de um único aparecimento na obra, não é explicado a fundo por Fanon, no entanto, ele nos deixa pistas sobre quais fatores serão analisados, a relação entre o fator econômico, fruto da espoliação e opressão colonial, e “interiorização, ou melhor, por epidermização dessa inferioridade”(Fanon, 2008, p.28 grifos nossos)3. O primeiro é como a sociedade está estabelecida, suas regras, seus comércio, a divisão de classe, os costumes e vícios. O segundo é como, frente a sociedade existente, o negro age sobre ela e como se constrói subjetivamente.4
O foco da obra é justamente essa interiorização, o que Fanon busca diagnosticar politicamente como os negros, por terem sido historicamente mistificados, possuem os seus desejos determinados pela sociedade, a consequência desta aceitação é a busca insessante ao reconhecimento do branco mistificador, ao passo que se nega. A análise influenciada bastante por Adler, Hegel(interpretado por Jean Hyppolite e Kojeve), Marx, Cesárie, Sartre e, mesmo que não citada, Simone de Beauvoir busca delinear como a identidade do negro colonizado se dá espremido entre a consciência de si e o mito socialmente criado. Assim, a realidade formulada pela colonização não permite que o negro passe de uma certeza subjetiva de si para uma verdade universalmente válida.
Fanon contra a visão racista de inatismo
O esforço para demonstrar os motivos sociais que geram valores, uma historização dos desejos, que norteiam as atitudes dos negros e negras permite Fanon desmascarar o argumentos inatistas presentes nas concepções da sua época, no primeiro livro encontramos diretamente contra Octave Mannoni. Para este a relação entre “civilizados” e “primitivos” demonstra uma aptidão natural em governar e ser governado, em outros termos, os povos “primitivos” possuiriam uma relação de inferioridade anterior a chegada dos colonos, de modo que seus espíritos e consciência já aguardava um “herói” que os guiasse.
Fanon demonstra que o argumento utilizado pelo psicanalista Mannoni é no mínimo falacioso, pois ao determinar uma pré-condição de inferioridade aos nativos não percebe que a condição de inferioridade vivida por eles é resultado do processo colonial, do contato entre a civilização europeia que impõe pela violência esta posição. Em termos sartrianos, Mannoni não entende que o nativo foi inserido nesta situação, pois ele compreende que o que determina o ser nativo é a tendência a esta situação colonial, Fanon busca chamar atenção para o desprezo dos fundamentos históricos do surgimento da colonizado, o negro malgaxe não era negro até surgir uma sociedade que o inferiorizasse, o classificasse. Ou seja, com uma visão próxima às marxistas, Fanon identifica que o erro de Mannoni decorre de buscar um estudo puramente ontológico para entender a condição colonial e não as relações que fazem nascer esta condição e a diferença hierárquica entre povos distintos, como o desenvolvimento técnico e armamentício dos povos europeus combinado com sua política de expansão marítima para extrair das “novas terras” riquezas que colocou as civilizações em choque, assim, para garantir e expandir o lucro do empreendimento, a dominação dos povos nativos foi usado como ferramenta.5
Neste contexto, que o capítulo seguinte, “A experiência vivida pelo negro”, aparece justamente na necessidade de responder mais frontalmente como se dá o surgimento da visão de mundo (weltanshauung) da população negra. Acreditamos como Gordon (2015) que Fanon encontrou em Simone de Beauvoir a concepção de uma identidade constituída e imposta por um outro que possibilitou o martinicano criticar as posições racistas que mistificaram o negro tentando enclausurar em um campo animalesco.6
Enquanto identidade contruída por um outro, o negro é negro perante o branco, por isso que Fanon aponta uma insuficiencia em qualquer ontologia que em busca de definir o ser por caracteristicas gerais no intuito determinar suas as especificações, não percebe que o negro em seu ser determinado pelo ambito social. Isso remonta o que no início da obra ele afirma sobre a necessidade de uma sociogênese para analisar uma sociedade colonizada e civilizada. O negro é colocado frente a dois sistemas de referência, o mundo dos seus costumes e instâncias (sua metafísica) que foi degradada e o mundo colonial (branco), o qual o foi inserido violentamente. O negro perde seu esquema de elaboração corporal, se enxerga na terceira pessoa. A sua inferioridade passa pelo crivo do outro. A referência utilizada é a passagem da figura da percepção da Fenomenologia de Hegel, nela o “eu” ganha conhecimento do seu corpo a partir da negação, pela descoberta sensorial da existência das coisas e descobre o seu próprio corpo como outra coisa. No entanto, se essa é a dialética do corpo e mundo, o negro possui uma médiação, um obstáculo que o impediria de se relacionar imediatamente com o mundo, o negro possui um certo estigma constuituido em terceira pessoa, que determina seu modo de agir, por isso Fanon afirma que abaixo do esquema corporal, existe um esquema histórico-racial.7
Os elementos que utilizei não me foram fornecidos pelos ‘resíduos de sensações e percepções de ordem sobretudo táctil, espacial, cenestésica e visual’, mas pelo outro, o branco, que os teceu para mim através de mil detalhes, anedotas, relatos. (Fanon, 2008, p.105).
O esquema corporal elaborado anteriormente passou a ser epidérmico social. Deste modo, para analisar a constituição da subjetividade negra não é permitido fazer uma redução para descoberta de como o ser em geral interage com o mundo, com os fenômenos em sua volta. Para Fanon, o resíduos de sensações e percepções do sujeito estão mediados pelas relações sociais em que está inserido. Os mil detalhes e anedotas que Fanon refere-se é o esforço consciente através da ficção, com livros, filmes e estórias que buscam moldar a percepção da sociedade sobre o negro. Marx, em 18 de brumário de Luís Bonaparte, livro conhecido e referenciado por Fanon, afirma
Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram( Marx,2011, p.25)
Se para Marx o que estava em jogo era a relação entre sujeito e história, em debate com a concepção hegeliana, em certo sentido, podemos afirmar que Fanon busca compreender essa transmissão de circunstâncias sociais nos níveis da objetividade e subjetividade no processo da constituição da individuação do negro. Assim, com o risco de simplificar um pouco a questão, a constatação que dentro da sociedade o negro possui uma carga simbólica de negatividade(mal) e o branco positividade(bem), não ser algo natural, mas um sistema simbólico criado e imposto pelo maniquismo do mundo colonial, a população negra precisaria buscar negar estas circunstâncias transmitidas, para conquistar o status de sujeito. Esta reflexão, de como lutar contra o mundo que lhe degrada, Fanon irá se voltar a debater com as principais figuras do movimento de negritude.
O debate de Fanon com os movimento de negritude
Em Antilhanos e Africanos de 1955, Fanon determina que Cesarie proporcionou a primeira experiência metafisica ou ontologica do negro antilhano, pois o poeta ao voltar a sua terra natal reivindicou a identidade negra como positiva, foi uma valorização do rejeitado, e nas manifestações de 1943 que surgiu o proletariado do pais, culminou que nas eleições pos luta libertação (que não ocorreu, a martinica continua como um departamento de ultramar frances) a cada três deputados, dois eram comunista. A influência de Césaire fez que combinasse a experiência política e ontológica, no entanto alerta Fanon, que ao passar do tempo e as diversas experiência que os antilhanos tiveram “parece que o antilhano, depois do grande engano branco, está a caminho de viver agora na grande miragem negra” (Fanon, 2021, p.66). Isso porque o antilhano lançou-se à África na busca do seu antepassado perdido e dos seus irmãos de cor, que a pouco tempo os antilhanos faziam questão de reforçar sua superioridade em relação aos africanos(Ibidem).
Fanon conclui que o processo de desvalorização do negro, por ter sido socialmente descrito como aculturado, sem civilização, sem “longo passado histórico”(Fanon, 2008, p.44) seja a “origem dos esforços dos negros contemporâneos em provar ao mundo branco, custe o que custar, a existência de uma civilização negra.”(Ibid.), em referência principalmente ao movimento de negritude na figura de Senghor. Olhando para as transformações que envolvem a população negra, a questão que suscita é por que o negro ainda permanece nesta condição de inferiorizado? A saída seria valorizar o negro, como uma supercompensação adleriana? 8 Fanon formula que a valorização do negro, mesmo que historicamente válida é insuficiente para responder o problema vivido, assim, aproximando da concepção marxista de dialética, para superar esta condição é necessário “que cesse para sempre a servidão do homem pelo homem. Ou seja, de mim por um outro.” (Fanon, 2008 p.191), acabar com a forma material que sustenta a alienação do negro é o que permite desalienar psicologicamente de modo efetivo.
É interessante notar que Fanon está se diferenciando de duas respostas comum em sua época frente ao problema da alienação do negro frente a estrutura colonial e ao status de inferioredade que a cultura burguesa subemteu os negros. O primeiro é contra certo espirito civilizacional comum a tipico nacionalismo relativamente liberal criolo que se desenvolveu no caribe no entre guerras. Esse espírito influenciou inclusive lideranças anticoloniais que possuíam uma certa ambivalência frente à cultura ocidental e consideravam que a autoafirmação negra passava pela imitação do Ocidente.9 A segunda diferenciação, ainda que em forma de uma elucidaçao crítica, é a desconfiança que Fanon apresente com as visões essencialista que insistiam na busca do ser “tipicamente negro”. Essa diferenciação não é menor uma vez que ela antecipa as profundas divergencias políticas que surgiram entre Senghor e Fanon frente as independencias africanas.
Esse é um ponto fundamental sobre a leitura fanoniano para compreender como ele estava em busca de uma respostas política concreta, que só poderia ser resolvida na luta, e não através de um modelo de inserção/valorização gradualista ou através de uma resignação cultural.
A produção da alienação da população negra
O objeto de estudo principal são os negros que possuem essa psicopatologia, esta consciencia alieada que se nega e fixa-se em um mundo branco mistificado. Seu objetivo é realizar um estudo que possibilite a desalienação do negro, “ele havia intitulado o manuscrito ‘Essai sur la desalienation du Noir’ (Ensaio Sobre a Desalienação do Negro)” (Cherki, 2022, p.56). O livro possui algo como estudos de casos, dois tipos são centrais, o que podemos classificar como seus relatos de vida, na escola no seu país natal, na guerra, sua chegada na França, que está presente em toda obra e os em base a textos literários, Je suis martiniquaise de Mayotte Capécia no capítulo “A mulher de cor e o branco” e o texto de René Maran, Un homme pareil aux autres, no capítulo “O homem de cor e a branca”. Há outros estudos de caso analisados na obra, mas em segundo plano para fortalecer alguma argumentação.
A tese que existe uma diferença na intenção do negro ao socializar, que está presente no capítulo seis, “A psicopatologia do negro”, fundamenta a argumentação fanoniana na constatação que a realidade vivida pelo negro não permite uma distinção entre o vivido e o mito preto. É necessario compreender que há uma cisão referencial, o negro(mistificado) se enxerga em terceira pessoa. O mito do preto reproduzido por meios de comunicação em massa, os livros e escolas, são artifícios das classes dominantes para que os indivíduos (a criança negra colonizada e até a branca) desde a infância criem uma imagem negativa do negro, de certo modo, a consequência para o antilhano é interioriza este mito, o mito constitui “a visão do mundo da coletividade a qual ele pertence” (Fanon, 2008, p.135). Esta condição, da materialização do mito na vivência generalizada dos negros, demonstra que na relação social “o preto é um objeto fobógeno e ansiógeno” (Ibid., p.134). O negro olha a si como algo a ser evitado, o peso da epidermização deste processo o coloca em um paradigma que seu movimento de desejo de validação vai em direção a um Outro (o branco).
Na primeira parte do livro Fanon analisa como a população negra age na sociedade marcadamente racista, a primeira dimensão é no campo da linguagem e os outros dois capítulos está voltada para as relações amorosas, a segunda característica da análise é voltada aos fundamentos, objetivos e subjetivos, que os leva a determinada ação. O primeiro capítulo explicita a importância da linguagem, “falar é existir absolutamente para o outro” (Fanon, 2008, p.33), falar uma língua “é sobretudo assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização.” (Ibid.). Assim Fanon apresenta o problema central do capítulo, que para o negro antilhano estará mais próximo do homem verdadeiro, quanto mais tiver incorporado a língua francesa. “É uma das atitudes do homem diante do Ser” (Idem, p.34, grifo nosso), falar é existir diretamente para o outro, no entanto, a partir da colonização o outro do negro não é mais o negro, e sim o branco, assim a tentativa de incorporar o mais perfeito do francês é o que possibilita abrir o mundo expresso pelo francês, o mundo do branco.
Isso implica que para um povo colonizado, “isto é, todo povo no seio do qual nasceu um complexo de inferioridade devido ao sepultamento de sua originalidade cultural” (Ibid.), a língua do colonizador se estabelece como a padrão. Todo o esforço do negro antilhano para negar sua cultura local é para se aproximar da metrópole, sendo orientado pelas famílias falarem apenas o francês, o francês do branco, e entre os amigos o mais eloquente nesta língua será considerado como “próximo ao branco”. Por isso que na relação estabelecida daquele que consegue ir à França com os que nunca foram existe um ar de superioridade. Dentro da relação antilhano, branco e negro africano, que o antilhano tentou se distanciar, o antilhano por se lançar a língua da metrópole mas é insuficiente, o mundo francês sabe que ele não é igual, por mais eloquente que seja é negro.
A superação da condição de alienação do negro
O negro antilhano, para Fanon, não se lançou na luta ate a morte, ele foi determinado como inferior e aceitou esta posição. Na tradução de Renato de Silveira (2008) consta uma nota de rodapé especificando o caso, pois Fanon no corpo do texto trata como se a liberdade da condição de escravo tenha sido dada sem luta, contra essa generalização consta que “talvez nas Antilhas, mas não em geral. Hoje, não há como sustentar a generalidade desta hipótese, as provas da luta negra pela liberdade, em várias partes da América, são abundantíssimas” (Fanon, 2008, p.182) Mais adiante na obra Fanon também fala das lutas que os negros nas América travam e da revolução de São Domingos, a primeira revolução escrava vitoriosa, localizando o problema da passividade nos negros que convivem com a França ainda em condição de colonizado. Com esta visão, de uma situação que não houve luta, Fanon pensa que o negro não conheceu o verdadeiro preço da liberdade
Ele passou de um modo de vida a outro, mas não de uma vida a outra. Do mesmo modo que um paciente recai quando lhe anunciam que está melhor e que sairá do asilo em poucos dias, assim também a notícia da libertação dos escravos provocou psicoses e mortes súbitas.(Ibid, p.183)
Neste caso, alerta Fanon que também o senhor possui uma consciência outra em relação ao hegeliano. Se em Hegel(2014) o escravo se volta ao objeto, e essa relação imediata é o que torna possível superar sua condição de inferioridade, a consciência escrava que Fanon descreve se volta para o senhor, buscando a brancura e a validação deste (este é o caráter psicopatológico do racismo). Por sua vez, em Hegel, por ter tido uma batalha, o senhor reconheceu em algum momento o seu escravo como uma consciência, que por perder a batalha se tornou inferior, para Fanon o senhor, na relação colonial, não reconhece a consciência do escravo em nenhum momento, somente o seu trabalho.
No entanto, existe neste negro que ainda não lutou por sua liberdade a vontade de lutar, tendo em vista que somente de modo formal sua situação de inferioridade mudou, a vida continua marcada pelo racismo e submissão, a liberdade não foi autêntica, a ideia de q ue “a revolução social não pode obter sua poesia do passado, mas apenas do futuro.” (Marx apud Fanon, 2008, p.184) faz Fanon discordar das correntes do movimento de negritude, para ele conhecer uma civilização negra do século XV ou que em algum momento Platão trocou cartas com um intelectual negro, não aponta uma solução pratica para seu problema:
Ficaríamos muito felizes em saber que existe uma correspondência entre tal filósofo preto e Platão. Mas não vemos, absolutamente, em que este fato poderia mudar a situação dos meninos de oito anos que trabalham nas plantações de cana da Martinica ou de Guadalupe. (Fanon, 2008, p.190)
A importância a como a sociedade está estruturada influência como Fanon pensa a constituição do sujeito, se ele apontava a ontologia como insuficiente, para valorizar a “experiência vivida”, ele não poderia cair em uma perspectiva essencialista
Para Fanon, o que diferenciava os negros dos brancos não era seu espírito africano (como em Senghor) ou sua negritude fundamental (como em Césaire), mas sua experiência vivida de ser negro: acima de tudo, sua experiência do que Merleau-Ponty chamou de corpo fenomenal.(Shatz, 2024, tradução nossa)
Assim, mesmo em discordâncias com Sartre sobre o caráter da identidade negra moldada pela negritude ser um momento de negação da negação central em seu Orfeu negro, Fanon justifica a necessidade de reivindicar positivamente em base a um sentido puramente político.
Fanon deu grande valor a essa experiência, por mais agonizante que tenha sido para ele na França: apesar de toda a sua crença no “homem”, ele não estava preparado para repudiar sua negritude como uma paixão trágica. Enquanto a supremacia branca persistisse, o absoluto negro – a consciência de habitar um corpo negro em um mundo branco – seria uma arma necessária. (Ibid. tradução nossa)
Apesar desta instância política da obra, Fanon parece deslocar a interpretação da epígrafe de Marx ao ponto de afirmar que “quer se queira, quer não, o passado não pode, de modo algum, me guiar na atualidade.”(Fanon, 2008 p.186), tendo em vista que para Marx o passado pode não fornecer o conteúdo de uma transformação futura, tendo em vista que as estruturas sociais e as subjetividades produzidas pela burguesia são degradantes, mas, no mínimo, o passado possibilita não cair em erros historicamente já vistos, conhecer o passado possibilita impedir a realização da farsa histórica.
A angústia presente no primeiro capítulo de Pele negra, máscaras brancas, que evocava a tese onze da Teses sobre Feuerbach, aparece no final da obra com uma reflexão da incontornável convocação para a luta que a realidade opressiva o coloca. Não como um dever moral que a história cunhou, como se houvesse uma missão negra a ser realizada, ou um fardo branco a ser exposto. Fanon não pode aceitar ser um prisioneiro do passado, seja positivamente ou negativamente, ele toma uma perspectiva existencialista, em que o ser humano não pode ser fixado em nada, ele é solto, e possui apenas sua liberdade para se agarrar. É ela a única coisa que não se pode negar, “é em nome da liberdade, como condição humana, que ele advoga e se coloca como sujeito ativo de uma práxis revolucionária” (Faustino, 2020, p.81). A liberdade é o que permite, no momento da sua existência, em “um belo dia no mundo e me atribuo um único direito: exigir do outro um comportamento humano.” (Fanon, 2008, p.189)
Exigir este comportamento é o que orienta a desalienação do negro, com uma diferenciação das especificações de como se dá esta desalienção, Fanon alerta
Não cessarei de repeti-lo, é evidente que o esforço de desalienação do doutor em medicina de origem guadalupense se faz compreender a partir de motivações essencialmente diferentes daquelas do preto que trabalha na construção do porto de Abidjan. Para o primeiro, a alienação é de natureza quase intelectual. Na medida em que concebe a cultura européia como um meio de se desligar de sua raça é que ele é um alienado. Para o segundo, é como vítima de um regime baseado na exploração de uma raça por outra, no desprezo de uma parte da humanidade por uma civilização tida por superior.(Fanon, 2008, p.185)
Com clareza que a desalienação no campo intelectual não permite libertar a população negra da condição de não-ser, dado que a esmagadora maioria está inserida em posições degradantes, é necessário dar fim ao sistema de exploração do humano pelo humano.
Não levamos a ingenuidade até o ponto de acreditar que os apelos à razão ou ao respeito pelo homem possam mudar a realidade. Para o preto que trabalha nas plantações de cana em Robert só há uma solução, a luta. E essa luta, ele a empreenderá e a conduzirá não após uma análise marxista ou idealista, mas porque, simplesmente, ele só poderá conceber sua existência através de um combate contra a exploração, a miséria e a fome.(Ibid.)
Assim, o combate contra a exploração, a miséria e a fome, fornece a tentativa de retomada de si, para Fanon está a possibilidade de criar “as condições de existência ideais em um mundo humano”(Ibid). Perspectiva que aproxima da marxiana em Sobre a questão Judaica, em que Marx define que “toda emancipação é redução do mundo humano e suas relações ao próprio homem” (Marx, 2010, p. 54, grifos do autor). Marx ao analisar a sociedade burguesa em 1843 via uma dicotomia entre cidadão e humano, esta sociedade admite uma divisão entre o interesse privado e social, mas de modo que este se submete àquele. Assim a existência do cidadão abstratamente cumpre a função de garantir a existência do humano egoísta, que pode gozar da sua liberdade, que na sociedade burguesa significa desfrutar da sua propriedade. Portanto, a comunidade política, é uma farsa, o ser humano propriamente dito e verdadeiro não leva o outro em consideração, na verdade o outro limita a sua liberdade (o gozo da propriedade privada).
Para Marx a humanidade, com protagonismo da classe operária, quando reconhecer e organizar suas próprias forças, acabará com essa distinção e fará o humano se entender enquanto gênero, e não mais indivíduo egoísta. Para Fanon, a população negra emancipar-se seria se inserir dentro das relações humanas autenticamente e negar a cisão (o enxergar-se em terceira pessoa) vivenciada por consequência do não reconhecimento do seu ser e dos seus semelhantes como seres humanos dotados de consciência de si, de liberdade, ao passo que projetava no branco um modelo humano cinicamente perfeito tão distante e inalcançável, era seu horizonte. Ou seja, concretizar a desalienação do negro, e consequentemente, desmistificar também os mistificadores, os brancos, é uma atividade em nome da liberdade, seja das condições sociais, como dos seus desejos.
Notas
*Fanon Falando em Acra, capital de Gana, 1958. Foto: desconhecido, cortesia: London Review of Books
1. Frantz Fanon faleceu em 6 de dezembro de 1961, aos 36 anos, vítima de leucemia. Antes do diagnóstico, viveu episódios marcantes de perseguição. Em 1959, um grave acidente de carro em Marrocos, o levou a buscar tratamento médico em Roma onde foi alvo de uma tentativa de assassinato por La Main Rouge, um esquadrão da morte paramilitar financiado pelos serviços secretos franceses. Uma bomba colocada sob seu carro matou uma criança, o que fez Fanon escapar por pouco de outro atentado. Ele exigiu a mudança de quarto no hospital antes da chegada de um assassino armado. Esses episódios ilustram os riscos que corria devido à sua atuação política enfrentando as forças paramilitares coloniais franceses e também adversários internos, dada a intensa luta pelo poder dentro da Frente de Libertação Nacional Argelina. Apesar dessas ameaças, Fanon continuou militando até que a leucemia o debilitou progressivamente. Foi tratado nos Estados Unidos, mas não resistiu à doença. Um de seus últimos atos foi ditar, do leito de morte, o manuscrito de Os Condenados da Terra, publicado pouco após sua morte, obra que se tornaria referência fundamental nos debates sobre colonialismo e libertação nacional.
2. Stuart Hall demonstra essa característica ao afirmar a impossibilidade de uma leitura de Pele negra, máscaras brancas que ignore três diálogos inter-relacionados: o primeiro com a psiquiatria colonial francesa; o segundo, o diálogo de “Fanon com Sartre, ou mais exatamente, através de Sartre, com o fantasma de Hegel, especialmente a dialética senhor/escravo delineada em A Fenomenologia.”(Hall,1996, tradução nossa); o que nos leva ao terceiro diálogo, o debate de “Fanon com a Negritude, ou a ideia da cultura negra como fonte positiva de identificação, e a questão do nacionalismo cultural e da raça como força autónoma.”(Hall,1996, tradução nossa)
3.Davison Faustino (2018) sugere que o conceito de sociogenia em Fanon é um presente oculto que estrutura teoricamente todos os textos do autor formando um fio de continuidade entre Peles Negras, Mascaras Brancas e o próprio Condenados da Terra. Esta leitura se destaca ao combater uma divisão entre um “jovem” fanon, culturalista, acadêmico e abstrato e um “maduro” violento, revolucionário e terceiro mundista. Os que advogam tal leitura ignoram os chamados efusivos em Peles Negras, Mascaras Brancas, a ação política tão bem ilustrada na citação do 18 Brumário: “A revolução social não pode obter sua poesia do passado, mas apenas do futuro. Não pode começar consigo própria sem antes se despojar de todas as superstições relativas ao passado. As revoluções precedentes apelavam para a memória da história mundial, a fim de se drogar com o próprio conteúdo. Para realizar o próprio conteúdo, as revoluções do século XIX devem deixar os mortos enterrarem os mortos. Naquelas, a expressão ultrapassa o conteúdo, hoje, o conteúdo ultrapassa a expressão.”
4.Este cuidado fanoniano com o que é interiorizado pelo negro se aproxima da concepção de Vygotsky, quando este identifica no desenvolvimento de aprendizagem as relações sociais subjazem as genéticas: “Qualquer função no desenvolvimento cultural do menino ou da menina aparece duas vezes, ou em dois planos. Primeiro aparece no plano social e depois no plano psicológico. Em primeiro lugar, aparece entre as pessoas como uma categoria interpsicológica e depois aparece no menino ou na menina como uma categoria intrapsicológica. Isso também é certo com relação à atenção voluntária, à memória lógica, à formação de conceitos e ao desenvolvimento da volição[..] As relações sociais ou as relações entre as pessoas subjazem geneticamente a todas a s funções e às suas relações.”(Vygotsky apud Cubero e Luque, 2004, p.99)
5. Barbara Fields analisa esta tendência na década de 90, chamando atenção para o fato de que alguns pesquisadores utilizam: “Argumentos por definição e tautologia acabam por substituir a análise, em qualquer coisa que se relacione a pessoas de descendência africana. É provável que a maioria da historiografia americana pense a escravidão primariamente como um sistema de relações raciais – como se o principal negócio da escravidão fosse a produção de supremacia branca ao invés da produção de algodão, açúcar, arroz e tabaco. Um historiador chegou ao ponto de chamar a escravidão de “o segregador absoluto”. Ele não se pergunta porque europeus à procura do método absoluto de segregação dos africanos teriam todo o trabalho e despesa de transportá-los através do oceano para esse propósito, quando eles poderiam atingir o mesmo objetivo simplesmente deixando os africanos em África” em Slavery, Race and ideology in the United States, New Left Review, I/181, May-June 1990.
6. Faustinho (2020) aponta para a importância da escolha do subtítulo de capítulo “A experiência vivida do negro”, demonstra como a influência do existêncialismo está presente em como Fanon pensa o sujeito: “No entanto, o título do 5 o capítulo de Peau Noire, Másques Blancs é visivelmente inspirado no subtítulo de Le Deuxième sexe, Tome 2: L’expérience Vécue (1949). Nesse livro, Beauvoir assume receber influência direta de Richard Wright (1908-1960), na possibilidade de pensar a mulher como um tornar-se, desde a infância até a velhice. Para os existencialistas, o termo “experiência vivida” – introduzido por Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), a partir da inspiração no Erlebnis alemão – é um construto teórico fundamental (GORDON, 2015)”.(Faustino, 2020, p.83)
7. A utilização do conceito “esquema corporal” demonstra a influência do pensamento de Merleau-Ponty em Pele negra, máscaras brancas, o peso que o martinicano dá ao “olhar”, no sentido da percepção, também é outro termo de clara influência do fenomenólogo.
8. Fanon desenvolve mais a ideia de supercompensação de Adler quando descreve a mulher negra como aquela que se perde na compensação e vai à supercompensação, passagem que gerou diversos debates sobre a interpretação fanoniana sobre a questão de gênero, que não entraremos neste texto pois é necessário uma atenção especial. A ideia central de Adler consiste em : “Quando o senso de inferioridade se avoluma ao ponto de a criança recear jamais ser capaz de compensar sua fraqueza, surge perigo de que, em sua luta pela compensação, ela se não satisfaça com uma simples realização do equilíbrio das forças; exigirá uma supercompensação, procurará superequilibrio das conchas da balança! Lutar pelo poder e dominação se poderá tornar tão exagerada e intensa, que deverá ser tachada de patológica. Quando isto sucede, as relações ordinárias da vida deixam de ser satisfatórias. ” (Adler,1957, p.83 grifo nosso)
9. Sobre esse tema ver Caliben´s Freedom. The Early Political Tough of C.L.R James (Bogues, 1997)
Bibliografia
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