Revista Casa Marx

Juventude e Lutas de Classes em Angola: uma tradição de combate ao MPLA

Katró Ungila (Movimento Terceira Divisão) em colaboração com João De Regina

A gênesis da luta de classes em Angola:

Embora alguns intelectuais contemporâneos neguem a existência da luta de classes em África, a luta de classes sempre esteve presente em nossa história e foi central para o pensamento revolucionário no continente. A tradição de luta africana em diferentes momentos, especialmente durante as lutas pela independência, foi evidentemente atravessada pela influência de diferentes tradições do marxismo. É verdade que as direções dos movimentos aderiram ao marxismo deturpado pela influência burocrática de matriz soviética e chinesa que recriaram, à sua maneira, propostas militaristas e nacionalistas que não lograram romper a subordinação frente ao imperialismo e não impediram o neocolonialismo. No processo, essas direções precisaram impedir, com o uso da força e repressão, outras tendências que buscavam saídas mais radicais com viés da democracia operária aliada aos camponeses. A história da luta de classes africanas é cosmopolita e internacional, assim como em outros lugares que o marxismo influenciou, no continente africano não foi diferente: ao mesmo tempo que transformou a luta, foi transformado no calor dos acontecimentos por intelectuais africanos que tomaram para si a doutrina revolucionária. Apesar do marxismo ser exterior ao continente africano, nega-lo, através desta argumentação, é reivindicar um ilusório pensamento endógeno que não se apropriaria criativamente de uma doutrina revolucionária. 

 

Foi com referencial da luta de classes e luta contra o imperialismo que muitos líderes independentistas compreenderam suas atividades políticas como inseridas na gramática e na realidade da luta de classes. Nessa perspectiva, por exemplo, que Américo Boavida (1922-1968), angolano médico e combatente pelo MPLA durante as guerras de libertação contra as forças portuguesas, ao analisar a Guerra de Independência de Angola, defendia que a luta do povo angolano contra o colonialismo português se inscrevia em um contexto mais amplo de luta de classes (BOAVIDA, 1967, p. 35). 

 

Para ele e muitos de sua geração, a guerra de independência de Angola e das demais colônias africanas, era luta de classes pois era a luta:

“…de uma comunidade oprimida contra uma minoria opressora, uma guerra entre escravizados e escravagistas, de trabalhadores forçados dos campos contra o colono senhor das plantações e das roças, de operários e aprendizes contra os patrões… com interesses econômicos contraditórios e inconciliáveis” (BOAVIDA, 1967, p. 35).

Ao final, defende-se a existência de interesses econômicos contraditórios e inconciliáveis. Assim, uma geração de lutadores passou a compreender a expansão sistemática do capitalismo como um processo que não apenas contrariava formas específicas de mercado pré-existentes, como colidia com modos de vida das sociedades africanas, que possuíam concepções distintas de sociabilidade, propriedade e reprodução social. Antes da imposição capitalista, havia, em diversas sociedades africanas, experiências coletivas de propriedade da terra, sistemas de troca baseados em reciprocidade, bem como formas de organização social e de filiação que não eram orientadas primordialmente pelo lucro. É importante reconhecer que essas sociedades não eram homogêneas nem isentas de hierarquias e formas internas de opressão, e que mesmo sociedades mais comunitárias existiam contemporaneamente a impérios e sociedades altamente hierarquizadas. Contudo, a sociedade tradicional, marcada por vínculos comunitários, na medida que se choca com a exploração capitalista, se articulada em uma estratégia revolucionária e na luta dos trabalhadores, pode revelar-se como uma poderosa fonte de resistência e de imaginação política. A filosofia ubuntu1, por exemplo — embora não seja representativa de toda a África —, expressa bem esses valores de interdependência e solidariedade, que podem inspirar alternativas ao individualismo competitivo imposto pelo capitalismo.

Américo Boavida apresenta uma análise contundente sobre as relações de poder e exploração nas colônias portuguesas. Ele identifica, por exemplo, a existência de duas classes fundamentais e irreconciliáveis em disputa pela terra e pelo controle dos meios de produção: de um lado, a burguesia portuguesa e os setores coloniais ligados ao capital metropolitano; de outro, os trabalhadores e camponeses africanos, cuja exploração era essencial para a sustentação do Estado burguês português. Nessa estrutura de exploração e dominação colonial, o interesse do salazarismo era manter e intensificar a colonização de sua ocupação em territórios africanos, como Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde e Moçambique, como uma estratégia para compensar o atraso econômico de Portugal e posicioná-lo na competição capitalista global frente às potências burguesas. A insistência do regime em manter essas colônias era, assim, um esforço deliberado para garantir fontes baratas de matérias-primas, força de trabalho e mercados cativos, elementos considerados indispensáveis à sobrevivência do capitalismo português. A citação acima evidencia precisamente a percepção de Boavida sobre o caráter de classe da guerra de libertação nacional, marcada pela oposição estrutural entre os interesses da comunidade oprimida e da minoria opressora, que, embora numericamente insignificante, controlava as bases econômicas e políticas da colônia.

É com esse espírito consciente de que tratava-se de uma luta de classes que os mais variados movimentos de libertação de Angola (União dos Povos de Angola – UPA; União dos Povos do Norte de Angola – UPNA; Frente Nacional de libertação de Angola – FNLA; Movimento Popular de Libertação de Angola – MPLA; União Nacional para Independência Total de Angola – UNITA) vão para luta contra dominação colonial portuguesa, tendo esse país alcançado a sua independência no dia 11 de Novembro de  1975. No entanto, atualmente em Angola existe uma evidente contradição, no artigo “Stalinismo em Angola: O Massacre do 27 de Maio de 1977 – Parte I” (2024), José Gomes Hata, fundador do Movimento Terceira Divisão-Angola2, faz uma crítica contundente ao regime angolano:

“Um país que se transformou em uma ditadura usando inicialmente símbolos tão caros ao movimento marxista, e hoje sem pudores, mantém diversos presos políticos, exilados ou simplesmente silenciados em seus mais elementares direitos.”

Como o mesmo MPLA, que se vangloriou cabeça da independência e da construção de um suposto socialismo, em seguida guiou Angola para um capitalismo extrativista que vemos hoje? Neste artigo destrinchamos este processo rumo às amarras neocoloniais do imperialismo, restaurando o capitalismo e se transformando na burguesia nacional, aderindo e estimulando o neoliberalismo neocolonial.

MPLA: Do Stalinismo ao neoliberalismo extrativista neocolonial 

Diferente de outras nações imperiais europeias, Portugal não havia iniciado qualquer processo de descolonização entre as décadas de 1950 e 1960. Ao contrário, criou a hipócrita retórica lusotropicalista para justificar seus domínios coloniais com palavras mais amenas como “províncias ultramarinas”.  Como afirma Fanon: 

“O trabalho do colono é tornar impossíveis quaisquer sonhos de liberdade do colonizado. O trabalho do colonizado é imaginar todas as combinações possíveis para aniquilar o colono.” 

A resiliência portuguesa em manter seus territórios incentivou a concepção em grupos nacionalistas de que o caminho para independência passava necessariamente pela luta armada. É nesse contexto que acontece a formação de movimentos de libertação em Angola e outras colónias portuguesas. O MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), fundado em 1956, articulou setores urbanos, intelectuais mestiços e trabalhadores, com uma orientação nacionalista, tendo como inspiração a luta anticolonial e a influência burocrática da URSS. Paralelamente, surgiram outros movimentos: a FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola), com base majoritariamente entre os bakongo no norte do país, e a UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola), criada posteriormente em 1966 por Jonas Savimbi, com forte penetração no centro e sul de Angola, entre populações ovimbundu. 

A partir de 1961, esses grupos iniciaram a guerra de libertação nacional contra o colonialismo português, marcada por uma série de levantes armados. O primeiro grande levante, o Levante da Baixa de Cassanje (3 a 4 de Janeiro de 1961), foi uma rebelião massiva de trabalhadores rurais contra a exploração colonial portuguesa e ficou conhecido como Massacre da Baixa de Cassanje devido à intensa repressão. Um mês depois, em 4 de fevereiro de 1961, ocorreu o ataque à Cadeia de Luanda, organizada pelo MPLA, que se tornou o mais simbólico por ocorrer na capital e ter forte impacto político. Nesta data, militantes nacionalistas tentaram libertar presos políticos atacando postos da PIDE e de outras forças de segurança em Luanda. Embora militarmente limitado, o levante, com autoria reivindicada pelo MPLA, teve um impacto simbólico decisivo, demonstrando a disposição organizada dos movimentos nacionalistas em confrontar diretamente o regime colonial. Poucas semanas depois, em 15 de março, a UPA, liderada por Holden Roberto — que em breve se integraria à FNLA — desencadeou uma insurreição massiva no norte de Angola, especialmente nas regiões do Uíge e Malanje. Os ataques visaram tomar as propriedades coloniais, plantações e postos administrativos portugueses, resultando na morte de milhares de colonos e trabalhadores africanos acusados de colaboração, e desencadeando uma violenta repressão militar por parte do exército português.

Este início formal da guerra de libertação nacional se estendeu pelos 15 anos seguintes, alimentado pela intransigência do regime salazarista, pela mobilização crescente dos movimentos nacionalistas e pelo apoio internacional que estes passaram a receber. Angola, Moçambique, Guiné e Cabo Verde desenvolveram heroicamente o combate contra o exército colonial portugues, conquistaram a solidariedade dos trabalhadores e da juventude em quase todas as partes do mundo e influíram decisivamente no contexto interno portugues, impondo uma verdadeira crise para burguesia, que culminará na Revolução dos Cravos em 1974.  

Após a independência em 1975, assim como Deolinda Rodrigues anteviu3, se inicia em Angola uma guerra civil causada pelas disputas ideológicas entre os três principais movimentos nacionalistas: o MPLA, com sua base consolidada em Luanda e no litoral, emergiu como a força dominante após proclamar unilateralmente a independência, em novembro daquele ano. Já a UNITA e a FNLA, apoiadas por diferentes potências externas capitalistas, contestaram esse poder, transformando o conflito angolano em uma guerra civil de longa duração, que combinava disputas internas e interesses geopolíticos globais e evidenciava o desastre das orientações stalinistas (seja sua variante soviética, seja variante chinesa) que implicou na luta fratricida em Angola e em outros contextos em conflitos armados entre Estados operários degenerados, como o confronto sino-vietnamita de 1979, quando duas nações formalmente socialistas se enfrentaram militarmente em nome de interesses nacionais divergentes. 

No caso angolano, antes mesmo das potências ocidentais se envolverem diretamente no conflito, as divisões no campo socialista já haviam contribuído para a fragmentação dos movimentos de libertação. A China, no contexto da ruptura sino-soviética e da exportação de sua estratégia revolucionária maoísta, buscou apoiar alternativas ao MPLA, que era identificado como uma correia de transmissão da burocracia soviética. Assim, Pequim forneceu treinamento militar, armas e apoio político inicialmente à FNLA e, posteriormente, à UNITA, liderada por Jonas Savimbi, que visitou a China e foi formado em estratégias guerrilheiras maoístas. O apoio chinês expressava a contradição profunda no seio do movimento comunista internacional: enquanto Moscou sustentava o MPLA com armas, conselheiros e suporte logístico, Pequim alimentava os movimentos rivais, promovendo uma guerra fratricida entre forças que, em tese, deveriam compartilhar o horizonte da emancipação anticolonial e socialista. Esse episódio angolano tornou-se, assim, emblemático do colapso do internacionalismo proletário diante das estratégias de poder estatais e burocráticas das duas grandes potências que disputavam a hegemonia sobre os processos revolucionários dos países semicoloniais. Nas mãos das burocracias e de suas estratégias geopolíticas, o internacionalismo proletário se subordina aos interesses locais de elites nacionalistas e não aos do avanço da revolução internacional. A guerra civil angolana revelou os limites das orientações stalinistas, que priorizavam alianças estatais e interesses de aparato, em oposição a uma estratégia global de avanço da revolução e da unidade internacional do proletariados e dos povos oprimidos. 

A trajetória do MPLA desde sua fundação esteve marcada por uma constante centralização do poder que aumentou criticamente após a direção do Estado angolano independente. As crises que marcaram o MPLA ao longo dos anos, como a disputa com Viriato da Cruz4, a Revolta do Leste[5^] e a Revolta Ativa6,  não expressam apenas a diversidade política e étnica presente no movimento mas também os limites de uma concepção substitucionista que nega a importância da auto organização das massas e da unidade dos oprimidos e que constroi uma unidade artificial e ilusória em base ao militarismo, repressão  e métodos burocráticos. O ponto culminante desse processo foi o episódio do 27 de Maio de 1977, resultado direto da crescente concentração de poder nas mãos de Agostinho Neto e do endurecimento político frente às dissidências. O levante liderado por Nito Alves, expressão das tensões acumuladas entre a liderança central e setores descontentes, foi sufocado de forma brutal, consolidando de maneira trágica a opção pela centralização burocrática e pela repressão como instrumentos de manutenção da unidade partidária e estatal.

O 27 de Maio representou um momento decisivo de purgas internas e de profunda reorganização do poder em Angola, cujas consequências se estenderam por décadas, instaurando um clima de medo e silenciamento que moldou as relações políticas e sociais do país, estabelecendo um padrão de repressão sistemática repetido em diversos momentos e deixando um trauma coletivo que só começou a ser reconhecido e debatido publicamente muito tempo depois, sobretudo a partir dos anos 2000, com as iniciativas de familiares das vítimas e de organizações de direitos humanos; atualmente, essa data é lembrada tanto como símbolo da violência política e das lutas fratricidas que marcaram a construção do Estado angolano, quanto como um episódio central para compreender os processos de consolidação autoritária e a trajetória do MPLA como partido dominante.

A guerra civil angolana se desenvolve em conflitos militares característicos do contexto da guerra fria. Logo após a independência de Angola, em novembro de 1975, tropas sul-africanas atravessaram a fronteira da Namíbia (então ocupada pela África do Sul) e invadiram o sul de Angola com o objetivo de apoiar e instrumentalizar os movimentos contra o MPLA, que havia declarado o governo em Luanda com apoio militar cubano e soviético. Esta intervenção marcou o início formal da presença militar sul-africana em Angola. Esta incursão, chamada de Operação Savannah, avançou rapidamente até próximo de Luanda, mas foi contida pela resistência do MPLA com apoio de tropas cubanas.

A UNITA se alinhou ao campo anticomunista, recebendo apoio substancial dos Estados Unidos e da África do Sul do apartheid. A FNLA contou com o respaldo do Zaire de Mobutu e dos EUA. Esses apoios externos transformaram o conflito angolano em um dos principais palcos da Guerra Fria na África. Para enfrentar essas ameaças, o MPLA reforçou a centralização do poder, consolidando um modelo de Estado fortemente hierarquizado, que, após a vitória militar, se posicionou como dirigente exclusivo do processo de reconstrução nacional.

Um equívoco comum nas tradições de esquerda que se deixam seduzir por qualquer forma de militarismo com retórica progressista é considerar experiências como a do MPLA revolucionárias em si, apenas por seu caráter guerrilheiro e pelo enfrentamento de inimigos historicamente justos, como o imperialismo e os regimes segregacionistas da África Austral. No entanto, o regime de partido único que o MPLA instituiu sobreviveu à guerra civil aprofundando seu caráter reacionário e centralizando de forma ainda mais rígida o poder estatal. Como refletiu Fanon em Os Condenados da Terra (1961, p. 164) ao observar os Estados africanos que se formavam após o processo de libertação: 

“O partido único é a forma moderna da ditadura burguesa sem máscara, sem disfarce, sem escrúpulos, cínica.” 

O chamado “socialismo angolano” expressava, sobretudo, um projeto de modernização nacional e unificação nacional, orientado por um pragmático alinhamento com o “campo socialista” durante a Guerra Fria, sem jamais se traduzir na construção de uma economia planificada baseada na auto-organização dos trabalhadores urbanos ou do campesinato. Após o colapso da União Soviética, o MPLA redirecionou rapidamente sua orientação internacional, aderindo ao neoliberalismo e forjando alianças estratégicas com potências ocidentais, especialmente os Estados Unidos, que passaram a ser parceiros centrais no setor petrolífero e na reconstrução estatal. Tal reconfiguração não foi suficiente para encerrar de imediato a guerra, que prosseguiu até 2002, marcada por violências atrozes e pela resistência da UNITA, liderada por Jonas Savimbi até sua morte naquele ano. 

A vitória final do MPLA selou não apenas o fim da guerra, mas também a consolidação de um modelo econômico neoliberal profundamente marcado por um extrativismo intensivo e por uma centralização autárquica, na qual o Estado, sob controle do MPLA, é o parceiro e gestor privilegiado do capital internacional na gestão dos recursos naturais, em especial o petróleo e os diamantes. Os antigos guerrilheiros socialistas se transformaram e fundiram-se a uma elite político-empresarial que transformou o partido numa máquina de acumulação e reprodução de poder. Esse neoliberalismo angolano não implicou na abertura política substancial, o que implica uma lentíssima descentralização política forte controlada e que mantém métodos autocráticos brutalmente violentos. O neoliberalismo em Angola criou novos, transformou e reforçou os traços autoritários do regime, agora legitimado pela estabilidade pós-guerra e pelas oportunidades de negócios que oferecia ao capital internacional.

O movimento dos Revús e a crise de legitimidade do regime angolano

Duas décadas após o fim da guerra civil, Angola consolidou-se como o segundo maior produtor de petróleo da África Subsaariana. Apesar do expressivo crescimento econômico ocorrido na década de 2010 e de avanços concretos em diversas áreas — como a elevação da expectativa de vida, que passou de 47 anos em 2002 para 62 anos em 2022, e a melhora do índice de desenvolvimento humano, que subiu de 0,41 para 0,59 no mesmo período —, o país ainda enfrenta elevados níveis de desigualdade entre sua população e território, um Estado autocrático que beneficia a exploração extrativista e concentra o poder no MPLA que se confunde com o Estado, além de possuir uma forte dependência do petróleo e gás. No entanto, buscamos ressaltar aqui que, atravessada pelos ventos da Primavera Árabe, Angola viveu um reacender do ativismo político e do movimento de massas que colocou em cheque o MPLA e implicou em diversos desafios ao regime político no país. 

O dia 7 de março de 2011 marcou simbolicamente o surgimento da chamada “geração dos Revús”- jovens angolanos que, inspirados pelas mobilizações da Primavera Árabe, passaram a desafiar abertamente o regime de José Eduardo dos Santos, no poder desde 1979. Essa tentativa de protesto público, organizada principalmente por meio das redes sociais e celulares, tinha como objetivo central exigir a queda do que entendem como uma ditadura do MPLA em Angola. Embora a manifestação em Luanda tenha sido violentamente reprimida, com prisões preventivas, ameaças e sequestros de organizadores, o 7 de março consolidou-se como um marco do início de uma nova era de contestação política no país. Jovens quebraram o ciclo de silêncio e medo instaurado após o massacre de 27 de Maio de 19777, passando a protagonizar lutas políticas por meio de protestos públicos e produção cultural. 

Pejorativamente chamados de “Revús” ou “frustrados sem sucesso escolar” pelo próprio presidente José Eduardo dos Santos, foram verdadeiros intelectuais, artistas e ativistas que encontraram no rap revolucionário e no movimento hip hop instrumentos de luta fundamentais. Antes limitados à expressão musical em ambientes restritos, eles passaram a levar suas críticas diretamente para as ruas de Luanda e outras cidades. Os protestos se intensificaram nos anos seguintes e o regime respondeu com o sequestro e assassinato dos ativistas Isaías Cassule e Alves Kamulingue em 2012, o que evidenciou a violência e crescente deslegitimidade do MPLA. Outro acontecimento decisivo de enfrentamento entre o regime e jovens em Angola foi o caso “15+2”, em que um grupo de 17 jovens ativistas angolanos foram presos em junho de 2015, em Luanda, acusados de atos preparatórios de rebelião e associação criminosa. O nome “15+2” se popularizou porque inicialmente 15 deles foram detidos durante um encontro em que estudavam e discutiam livros sobre desobediência civil e resistência pacífica. Pouco depois, outros dois ativistas foram presos por solidariedade ao grupo, consolidando a expressão. O caso ganhou repercussão internacional por evidenciar a criminalização do ativismo e da oposição política em Angola, sob regime do MPLA e do José Eduardo dos Santos. A prisão e o julgamento dos “15+2”  tornou-se símbolo da repressão à liberdade de expressão e ao direito de protesto no país, mas também a consolidação de  uma nova geração de ativistas dispostos a desafiar o poder. 

Inspirados pelas revoltas no norte da África e em outras partes do continente, os Revús interpretaram a crise angolana não apenas como um problema de governança, mas como um sintoma estrutural da falta de legitimidade de regimes pós-coloniais que, embora formalmente independentes, mantiveram formas de dominação e exploração a serviço de uma elite local e de interesses imperialistas. Contudo, à medida que o movimento se consolidava, surgiu também uma disputa sobre os rumos da ação política: enquanto uma parte manteve a perspectiva revolucionária, voltada à derrubada do regime, outra, apoiada em agendas internacionais implementadas por ONGs e financiadas por potências ocidentais, defendeu uma política de “ativismo” em si mesmo, focada em reformas e ações cívicas e na pauta da descentralização gradual do regime, propondo a criação de autarquias, maior liberdade de expressão, lisura eleitoral, entre outras demandas democráticas, mas não em uma perspectiva revolucionária, mais gradual buscando espaço dentro do próprio sistema autoritário. Essa inflexão gerou críticas internas e lutas políticas entre posições mais radicais e aqueles que apostam mais em processos institucionais. A contradição destes últimos se tornaram evidentes no contexto das eleições gerais de 2022, nas quais setores oposicionistas atuaram, em aliança com a oposição tolerada pelo regime, muitas vezes, como canais de descompressão do descontentamento popular, sem romper com a estrutura de poder consolidada pelo MPLA e ainda capitulando e se vendendo aos métodos patrimonialistas do MPLA. 

Quando José Hata (2024) argumentou que o regime angolano, após se apropriar de símbolos marxistas para consolidar o poder, adotou práticas típicas de uma ditadura, caracterizadas pela repressão política, prisão de opositores, violação dos direitos fundamentais da pessoa e, o mais grave, com repressão contra classe trabalhadora, não se tratava apenas do período de regime de partido único supostamente socialista. Ao ficarem cômodos com o alcance de algumas tarefas democráticas burguesas traíram a revolução socialista, a qual eles haviam se proposto, tornando-se hoje a burguesia que oprime a classe trabalhadora. Mantiveram os métodos de repressão a favor do capital e contra a juventude em luta. Por isso dizemos que o desafio dessa vanguarda que emergiu não é pequeno. Enfrentam a repressão e cooptação do regime e precisam combinar métodos conspiratórios com as pequenas aberturas legais que o regime permite. No entanto, não está descartado que essa juventude continue se fundindo a novos elementos da luta de classes angolana e desenvolvendo uma tradição que reivindique a independência de classe e um marxismo não deturpado pela história oficial do MPLA.

É nesse longo processo histórico, marcado pela necessidade imperiosa de uma nova direção revolucionária, que surgem, criam-se e se fortalecem alternativas de organização política em Angola. Entre elas, destaca-se o movimento Hip Hop Terceira Divisão, um grupo de revolucionários que se inspiram no trotskismo. Fundado em 2002, nos momentos finais da guerra civil, em Luanda, por José Gomes Hata, preso político no emblemático processo “15+2”, e  por outros militantes, o movimento nasce como uma crítica frontal ao regime. Inspirado nos ideais revolucionários de sua mãe, ex-guerrilheira ligada ao Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), José Hata escolheu, entre todas as possibilidades de vida, trilhar o caminho da militância revolucionária, combatendo aqueles que, apropriando-se de símbolos caros ao marxismo, consolidaram-se no poder e instauraram uma ditadura de feição stalinista. Um regime que reprime, explora e aprisiona a classe trabalhadora, enquanto concentra a riqueza do país, acentuando de forma drástica as desigualdades sociais e econômicas, e submetendo as maiorias populares a uma situação de pobreza extrema e exploração sistemática.

O continente africano, e Angola em particular, não são exceção frente ao desafio imposto pela crise da direção revolucionária do proletariado. Desde a Primavera Árabe, em 2011, uma série de levantes populares e mobilizações da classe trabalhadora têm se multiplicado em diversos países africanos. No entanto, essas manifestações, embora expressem um descontentamento social profundo, em geral carecem de uma direção política organizada que possa transformar a rebeldia espontânea em uma revolução consciente e orientada para a tomada do poder pela classe trabalhadora.

Em Angola, o movimento Hip Hop Terceira Divisão representa uma tentativa de superar essa ausência de direção revolucionária. O grupo tem atuado, apesar dos riscos e perseguições, na organização de protestos, na formação política e na defesa da necessidade de construir quadros revolucionários. A sua atuação se diferencia das principais forças da oposição institucional, que, como observa Edson Urbano (2023, p. 33), acabam funcionando apenas como “válvula de escape para descomprimir o descontentamento das massas”, como ficou evidente nas eleições gerais de agosto de 2022, quando, apesar das expectativas populares, não se verificaram mudanças estruturais no regime.

Novos caminhos na luta da classe em Angola

As mobilizações recentes da classe trabalhadora em Angola indicam a abertura de novos caminhos na luta de classes. Entre os principais episódios, destaca-se a greve geral do funcionalismo público e de outros setores em 2024, realizada em três fases: de 20 a 22 de março, de 22 a 30 de abril, e de 3 a 14 de junho. Foram dias de intensa paralisação, que, segundo informes das centrais sindicais e até mesmo da imprensa oficial, alcançou índices de adesão entre 75% e 95% em diversos locais de trabalho, como ocorreu na Empresa Nacional de Electricidade (ENDE).

Apesar das ameaças de repressão que antecederam a paralisação e da detenção de dirigentes sindicais no primeiro dia, a greve demonstrou a força organizativa da classe trabalhadora. Um dos aspectos mais significativos foi a unificação das lutas: assembleias conjuntas e uma data única para a paralisação contribuíram para a construção de uma frente comum, capaz de expressar demandas coletivas com maior contundência.

Além do funcionalismo, outros setores populares se solidarizaram com a mobilização, como as zungueiras (vendedoras ambulantes), que expressaram abertamente seu apoio à greve. Esse apoio evidencia a potencial convergência entre diferentes segmentos da classe trabalhadora angolana, historicamente afetados pela precarização, pela informalidade e pelas políticas neoliberais.

Diante desse cenário, abre-se a possibilidade de construção de novos caminhos políticos que superem a tradicional bipolaridade entre MPLA e UNITA, que há décadas limita o horizonte das alternativas institucionais em Angola. Como afirmou o rapper MCK: “Caminhos de como os jovens podem construir pautas que não dependam da bipolaridade UNITA e MPLA… Devemos ser nós, os jovens, as nossas universidades, a nossa sociedade, a ditar o nosso futuro e não esperarmos ofertas políticas que o façam”. A afirmação de MCK está em consonância com as reflexões de Fanon, especialmente quando o filósofo afirma: “Precisamos saber que a unidade africana só poderá ser realizada sob impulso e sob direção dos povos, isto é, contrariamente aos interesses da burguesia.” (1961, p. 163). 

Esses novos caminhos colocam em pauta a urgência de uma transformação estrutural que vai além do alcance das tarefas democráticas: o fim da autocracia do MPLA, a ruptura com todo o tipo de imperialismo, a suspensão do pagamento da dívida externa e a convocação de uma assembleia constituinte livre e soberana, imposta pela luta, onde os revolucionários possam defender a construção de um governo dos trabalhadores e um socialismo edificado desde baixo, realizando um acerto de contas com a deturpação dos símbolos e ideais revolucionários do próprio MPLA.

No entanto, é importante reconhecer que a crise de legitimidade do regime não se traduz automaticamente em avanços para a esquerda revolucionária. Ao contrário, cresce também em Angola a influência de tendências liberais e pró-capitalistas, que buscam canalizar o descontentamento social para projetos de alternância elitista, sem romper com as estruturas fundamentais de exploração e opressão. Nesse contexto contraditório, cabe à juventude e às vanguardas operárias e populares a tarefa de seguir construindo uma nova tradição, forjada na experiência direta de lutas como a greve geral do funcionalismo e os protestos camponeses contra o bloqueio do acesso às lavras na província do Uíge. Essas experiências concretas podem, ser levadas até o fim, servir como base para a emergência de uma alternativa revolucionária enraizada nas demandas e na auto-organização da classe trabalhadora e dos setores oprimidos em Angola.

Notas 

*Texto editado e revisado por Amanda Cinti

** Imagem do https://www.izquierdadiario.es/Angola-e-Nossa-A-45-anos-de-su-independencia

1. Ubuntu é uma filosofia africana da cultura Bantu. O ser Muntu (“homem” ou “pessoa” em uma tradução imprecisa segundo Ezio Lorenzo Bono) se constitui e molda na relação com a comunidade, pautado no princípio do uno: “sou porque nós somos”.

2. O Movimento Hip Hop Terceira Divisão é um grupo artístico, político e revolucionário angolano com inspiração marxista atuante desde 2002.

3.Deolinda Rodrigues de Almeida (1939–1967) foi uma das principais militantes do MPLA, conhecida como “Mãe da Revolução Angolana”. Ela foi capturada e assassinada em 1967 por guerrilheiros da FNLA, tornando-se um símbolo da luta pela independência. Em seus diários e cartas (compilados no livro “Diário de um Exílio sem Regresso”), Deolinda expressou preocupação com o futuro de Angola: ela temia que os movimentos de libertação (MPLA, FNLA, UNITA) entrariam em conflito após a saída dos portugueses.

4.Viriato da Cruz (1928-1973) Fundou o PLUA (Partido da Luta Unida dos Africanos de Angola) em 1953 e, em 1956, participou da fundação do MPLA. Em 1962, Viriato rompeu com o MPLA, exilando-se na China, onde morreu em 1973.

5.A Revolta do Leste foi um conflito interno no MPLA entre a ala de Agostinho Neto e a facção de Daniel Chipenda na região leste de Angola entre 1966 e 1967. 

6. O movimento interno no MPLA conhecido como “Revolta Ativa”, liderado por intelectuais e militantes que criticavam a direção de Agostinho Neto aconteceu entre 1974 e 1975.

7. O 27 de Maio de 1977 foi um dos episódios mais sangrentos e controversos da história de Angola pós-independência, marcado por uma purga política interna no MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), resultando na execução sumária de milhares de pessoas acusadas de “fraccionismo” e tentativa de golpe de Estado contra o governo de Agostinho Neto.

 

Bibliografia:

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MCK: Nos dias que correm tornou-se mais difícil ser artista de intervenção – https://www.lilpastanews.net/2024/03/mck-nos-dias-que-correm-tornou-se-mais.html?m=1

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Tradução de Enilce Albergaria Rocha e Lucy Magalhães. Prefácio de Jean-Paul Sartre. Posfácio de Deivison Mendes Faustino (Deivison Nkosi). Rio de Janeiro: Zahar, 2023. p. 87.

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MARQUES, Rafael. Dos Santos envergonha os angolanos. Maka Angola, 7 jun. 2013. Disponível em: https://www.makaangola.org/2013/06/dos-santos-envergonha-os-angolanos/. Acesso em: 1 jun. 2025.

SANTOS, Sousa Jamba. *O rosto pacífico de Angola: biografia de um processo de paz (1991-2002).* Lisboa: Nova Vega, 2010.

MATEUS, Dalila Cabrita; MATEUS, Álvaro. Purga em Angola: O 27 de Maio de 1977. 2. ed. Lisboa: Texto Editores, 2008.

Camponeses protestam contra bloqueio de acesso às lavras na província do Uíge. (2023, 20 de setembro). Esquerda Diário. https://www.esquerda…

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