Pedro Pequini
.
Imagem: jovens palestinos em um ato por justiça por uma jovem trans assassinada em Haifa em 2019.
Enquanto o genocídio se aprofunda em Gaza, drones sobrevoam Jenin e casas são demolidas na Cisjordânia, o Estado de Israel desfila com bandeiras arco-íris nas maiores paradas do orgulho LGBT do mundo. Vestido com as cores da diversidade, ele se vende como o “único país do Oriente Médio onde gays são livres”. Mas essa imagem não passa de propaganda colonial: Israel não é um Estado “inclusivo” — é um Estado de apartheid que, em 2025, avança para uma nova fase de agressão imperialista na região.
Após mais de vinte meses de intensificação do genocídio em Gaza, com mais de 80 mil palestinos mortos e uma ofensiva total contra Rafah, Israel agora amplia o conflito com o Irã, arrastando potências regionais e globais para o centro do tabuleiro militar. A ofensiva israelense contra Teerã, bem como contra o Hezbollah no sul do Líbano, marcam uma nova escalada no Oriente Médio — e são usados por Netanyahu para fortalecer alianças imperialistas com os EUA e legitimar sua brutal campanha colonial.
Essa manipulação da pauta LGBT tem nome: pinkwashing. Uma estratégia de propaganda que promove a suposta aceitação sexual de Israel para ocultar seus crimes de guerra, o apartheid contra o povo palestino e sua lógica profundamente racista e colonial. Mas, além da denúncia, é preciso olhar para a outra face dessa história: a resistência queer palestina.
Contra o mito civilizatório promovido pelo sionismo, foram ativistas palestinos queer que reuniram e sistematizaram, em árabe, os vocabulários e siglas para dar nome às distintas sexualidades em seus próprios termos. Não apenas existem pessoas LGBTQIAPN+ árabes e palestinas: são elas que estão na linha de frente de uma das experiências mais avançadas de luta queer no mundo árabe.
Pinkwashing: o arco-íris a serviço do genocídio
O pinkwashing israelense é uma forma perversa de manipular a linguagem dos direitos humanos. Desde os anos 2000, Tel Aviv investe em campanhas para se promover como “gay friendly”, atraindo turistas e ganhando aliados diplomáticos com base na imagem de modernidade e tolerância. Essa imagem é usada, especialmente em contraste com os países vizinhos, para construir uma narrativa orientalista: o Ocidente (Israel) como livre e democrático; o Oriente (os árabes) como atrasado e violento.
Mas essa lógica esconde uma realidade brutal: Israel não protege os direitos LGBT — ele os instrumentaliza como propaganda de guerra. Enquanto o regime sionista, onde o casamento igualitário segue proscrito, ergue bandeiras coloridas em Tel Aviv, pratica a ocupação militar mais bárbara do século XXI, que afeta diretamente pessoas LGBTQIAPN+ palestinas. Como mostram investigações da jornalista Theia Chatelle traduzidas pela FEPAL, a inteligência israelense espiona e chantageia palestinos queer, em aplicativos de relacionamento como o Grindr, para usá-los como informantes, aproveitando-se do medo do conservadorismo local para controlar comunidades inteiras.
Um ativista queer palestino foi abordado pela Unidade 8200, que exigiu sua colaboração como informante sob ameaça de expor sua orientação sexual. A chantagem, baseada no medo do ostracismo social e da violência por discriminação, forçou-o a colaborar por um período — até que foi denunciado à sua comunidade como “colaborador”. Gravemente ameaçado, ele desapareceu sob risco real de violência física, deixando um rastro de terror e isolamento.
Outro palestino LGBT, após ser pressionado a fornecer informações, teve sua identidade sexual exposta. A comunidade local reagiu rapidamente: passou a circular que ele era ‘digno de punição’. Dias depois, foi encontrado morto. O assassinato, último elo de uma longa cadeia de violência lgbtfóbica, ilustra como a chantagem sionista se entrelaça tanto com a lógica militar de Israel — que impõe isolamento e condições de vida completamente desumanas — quanto com a repressão conservadora, fomentada também pelas burguesias e milícias árabes da região, que reproduzem sistemas de opressão patriarcal, lgbtfóbica e autoritária.
Em pelo menos um caso relatado, um homem LGBT buscou proteção oficial após ser chantageado por agentes israelenses. Sua denúncia à administração militar local resultou em sua prisão sob a acusação de “colaboração”.
Theia destaca que muitos desses casos não chegam a ser denunciados porque as vítimas vivem sob medo constante de expulsão ou assassinato. A chantagem visa não apenas o indivíduo, mas ajuda a manter toda a rede queer palestina em silêncio, por medo de exposição e retaliações comunitárias e militares.
Além disso, o próprio governo israelense já difundiu esquetes homofóbicos e discursos preconceituosos em árabe para tentar desmobilizar a solidariedade internacional entre movimentos LGBT e a causa palestina. Ou seja: Israel não é amigo das pessoas LGBT — é um enclave imperialista no mundo árabe que necessita e fomenta a opressão aos LGBTs como tática de guerra, gerando pânico e desconfiança geral.
Essa ofensiva ampliada torna o pinkwashing ainda mais estratégico: em um momento em que o genocídio promovido por Israel alcança as TVs e os celulares de todo o mundo e é questionado em manifestações massivas ao redor do globo, a propaganda da “diversidade” torna-se uma ferramenta diplomática e cultural para justificar o apoio do imperialismo. O arco-íris serve como cortina de fumaça para esconder a fumaça dos bombardeios. Enquanto promove-se Tel Aviv como paraíso LGBT, o governo Netanyahu estreita alianças militares com os EUA (onde Trump aprofunda uma brutal repressão às pessoas trans) e outras potências, numa tentativa desesperada de isolar a causa palestina — inclusive das redes progressistas que antes simpatizavam com ela.
A vanguarda queer palestina: linguagem e resistência
Diante desse cenário, é comum que se imagine o mundo árabe como um deserto de repressão sexual e moralismo. Essa imagem, embora amplificada pela propaganda imperialista, tem ressonância material, uma vez que as direções dos Estados, as milícias e as burguesias árabes da região são profundamente patriarcais, misóginas e LGBTfóbicas. Isso se expressa, por exemplo, nas legislações que criminalizam relações homoafetivas — como na Arábia Saudita, onde a pena pode chegar à morte; no Egito, onde o regime realiza perseguições sistemáticas sob acusações de ‘devassidão’; ou ainda nas práticas repressivas de grupos como Hamas, Hezbollah e diversas milícias locais, que impõem rígidos controles sobre os corpos e as sexualidades dissidentes.
Mas essa mesma lógica de opressão não se limita à esfera dos costumes: ela está diretamente ligada à função que essas burguesias cumprem na ordem capitalista e imperialista. A história da Revolução Palestina de 1936 a 1939 é uma demonstração categórica disso. Diante do levante operário e camponês palestino contra o colonialismo britânico e a expansão do sionismo, as burguesias árabes regionais — sejam as monarquias do Golfo, a dinastia Hachemita na Jordânia, ou os governos egípcios e sírios da época — não apenas se recusaram a apoiar de fato a resistência palestina, como atuaram ativamente para desmobilizá-la. Foram agentes da conciliação com o imperialismo, preocupados mais em preservar seus próprios privilégios de classe e seus pactos com os colonizadores do que em garantir qualquer forma de libertação nacional.
Esse papel não foi um episódio isolado do passado. Ele se repete até hoje. Enquanto o genocídio em Gaza escancara as entranhas do colonialismo sionista, as direções dos Estados árabes — sejam as ditaduras militares, como no Egito; as monarquias ultraconservadoras, como Arábia Saudita, Jordânia e Emirados Árabes; ou os próprios setores burgueses palestinos ligados à Autoridade Palestina — seguem atuando como correias de transmissão do imperialismo. Seja pelo silêncio cúmplice, seja pela normalização de relações com Israel, como fazem os países signatários dos Acordos de Abraão, ou ainda pela repressão interna contra seus próprios povos e movimentos sociais.
Por isso, não só é falso enxergar a opressão às dissidências sexuais e de gênero no mundo árabe como uma suposta ‘característica cultural’; como também é falso imaginar que as burguesias árabes possam representar qualquer alternativa real à libertação da Palestina ou ao fim do genocídio. Tanto no campo da luta anti-imperialista quanto no combate ao patriarcado e à LGBTfobia, essas classes estão objetivamente do lado da manutenção da ordem. É exatamente contra elas — e não ao lado delas — que se levanta a resistência queer palestina, que, mesmo sob ocupação, cerco militar e repressão interna, segue na vanguarda da luta LGBTQIAPN+ no mundo árabe, articulando a luta contra o colonialismo, o capitalismo e todas as formas de opressão.
Foram ativistas palestinos queer que, junto a questionar profundamente o pinkwashing do Estado genocida de Israel, reuniram as primeiras siglas e léxicos em árabe para expressar vivências LGBTQIAPN+ no contexto do mundo árabe, como mostra o “Queer Arab Glossary”. Essa criação mostra profundamente a potência criativa e disruptiva do povo palestino, sendo os primeiros a oferecer de forma sistematizada e de fácil acesso os nome às diversidades sexuais e de gênero para todo o mundo árabe.
Diversidade sob vigilância: o capitalismo precisa de opressão
Como aponta o artigo “LGBTQIAPN+: um pecado ao capital”, o capitalismo não tolera as dissidências sexuais e de gênero por serem libertárias — mas sim porque pode lucrar com elas. A tolerância seletiva do sistema depende da utilidade política e econômica dessas identidades: desde que rendam votos, compras e submissão ao status quo.
É por isso que Estados como Israel ou corporações como Coca-Cola, Google e Amazon defendem “direitos LGBT” — mas financiam guerras, precarizam trabalhadores, poluem territórios indígenas e reprimem greves. Não há contradição aqui: a diversidade vendável é funcional à ordem capitalista.
No caso de Israel, isso é levado ao extremo. A “aceitação” LGBT está submetida ao projeto colonial sionista: serve para mostrar ao mundo que o Estado é “democrático”, mesmo praticando um genocídio contra todo um povo. Os corpos queer que resistem a essa lógica — especialmente os corpos queer palestinos — são tratados como ameaças e neutralizados com vigilância, chantagem e repressão.
A revolução permanente como horizonte queer-palestino
Como apontava Trótski na teoria da revolução permanente, a libertação nacional dos povos oprimidos — como o palestino — não pode se realizar plenamente sem romper com o capitalismo global que sustenta o colonialismo e o apartheid. A luta contra Israel é uma luta por uma “Palestina livre do rio ao mar”, mas também por uma transformação radical da ordem econômica, social e sexual imposta pelo imperialismo.
Ela se conecta às lutas da classe trabalhadora internacional, das mulheres, da juventude, dos refugiados, das pessoas racializadas e de todos que não têm lugar na normatividade imposta pelo capital. E aponta um horizonte radical: um mundo onde o desejo não seja vigiado, onde os corpos não sejam alvos e onde nenhuma identidade precise se submeter para existir.
Do coração do imperialismo norteamericano à França e ao redor do mundo cresce a expressão de uma juventude trabalhadora, racializada e LGBT que ocupa as universidades e paralisa seus locais de trabalho, pois conecta profundamente a batalha contra os lucros dos patrões à luta por libertação sexual e ao apoio incondicional à luta do povo palestino. Vemos, em cada greve e em cada boicote a nível internacional, com a classe trabalhadora se colocando em cena para impedir que cheguem as armas e suprimentos para Israel, o único sujeito capaz de dar uma resposta ao massacre em curso. Por isso, apostamos na unidade da classe trabalhadora internacional, unificando trabalhadores árabes e judeus, para erguer uma Palestina livre, laica, operária e socialista do rio ao mar.
Artigo inspirado no PocNic com o ativista LGBT palestino, Kais Husein, realizado na Calourada da UFABC e organizado pelo coletivo LGBT Prisma e a Secretaria de Combate às Opressões do CABCH