Revista Casa Marx

O horizonte trágico de Cristina em Lula

Danilo Paris

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Não são apenas coisas boas, como a paixão pelo futebol, que tem aproximado Brasil e Argentina. Nos dois principais países da América do Sul, a atuação do judiciário pode marcar um antes e um depois nos regimes políticos constituídos após as ditaduras militares, e vale dizer, nos dois casos para favorecer setores de extrema-direita. Com um intervalo de sete anos, os dois países assistiram à prisão de figuras políticas centrais em processos explicitamente políticos, operados sob a lógica do lawfare — o uso instrumental do sistema judiciário para interferir arbitrariamente na política. E, como sempre, nunca é demais lembrar que, em ambos os casos, a influência de agências e departamentos dos EUA se fez presente, com interesses geopolíticos claros, reafirmando seu histórico de intervenções na América do Sul.  

Cristina Kirchner, presidente por duas vezes e vice em uma, foi condenada à prisão e impedida de exercer cargos públicos por toda a vida. A Suprema Corte (com apenas três juízes) manteve a condenação de Cristina ocorrida em 2022, impedindo sua candidatura a deputada provincial — o que lhe daria imunidade. Por ter mais de 70 anos, cumprirá pena em prisão domiciliar, diferentemente de Lula, que passou parte de sua sentença em uma cela em Curitiba. Assim como no Brasil, há diversas evidências de interferência dos EUA, que agora conta com Trump como seu chefe de estado, um aliado de Milei no principal imperialismo no mundo. 

O que une os dois países é o ataque a direitos democráticos fundamentais, como o de escolher seus representantes, para remodelar regimes políticos mais à direita. Tanto Cristina quanto Lula administraram o capitalismo em seus países, governando em consonância com os interesses do capital financeiro. No entanto, encarnaram, cada um em seu contexto particular, aspirações sociais por melhores condições de vida. Ainda que tenham implementado ataques à direitos sociais, mantiveram uma imagem de maior identificação com demandas populares.  

Por isso, as prisões e a cassação de seus direitos políticos revelam um objetivo mais amplo. O que está em jogo é a tentativa de impor reformas muito mais duras do que essas figuras seriam capazes de promover. Justamente por tentarem conciliar uma retórica “popular” com a gestão do capitalismo, sua permanência no poder limitaria a radicalidade das reformas ultra-neoliberais que figuras como Bolsonaro e Milei, representantes da extrema-direita mais reacionária do Cone Sul, tem como projeto, que devastam direitos sociais e a estrutura econômica de seus países.  

No entanto, os caminhos que levaram às prisões de Lula e Cristina foram distintos. Compreender essas diferenças é essencial por dois motivos. Primeiro, para analisar a correlação de forças em cada país a partir de suas particularidades; segundo, para avaliar as perspectivas futuras, já que Cristina explicitamente aponta Lula como seu horizonte, alimentando a esperança de que, assim como ele, será liberada e retornará ao poder.  

Um retrato das diferenças entre as correlações de forças entre os dois países ficou evidente no momento da prisão de Cristina. No Brasil, enquanto apenas 10 mil pessoas foram às portas do Sindicato dos Metalúrgicos quando Lula se entregou, o ato contra a prisão de Cristina reuniu 150 mil na Praça de Maio. Por trás desses números está uma sucessão de acontecimentos e decisões que apresentaremos a seguir. 

A prisão de Lula foi um grande momento de uma série de eventos que moldaram uma correlação de forças cada vez mais à direita. Para entender esse processo, é preciso analisar não apenas a ofensiva burguesa, mas também a defesa, ou a falta dela, por parte dos setores atacados. Nesse sentido, a política do PT e de Lula foi decisiva para enfraquecer a resistência, atuando, em alguns casos, para sabotá-la ativamente.  

Para compreender esse período, é preciso recapitular o intenso processo de luta de classes que marcou o PT, quando eclodiram as grandes manifestações populares no Brasil durante as Jornadas de Junho de 2013. Foram manifestações massivas que eclodiram inicialmente contra o aumento das passagens de ônibus e foram brutalmente reprimidas pelos governos da época, especialmente em São Paulo, onde Geraldo Alckmin (então no PSDB) era governador e Fernando Haddad, prefeito.  

Naquele momento, o segundo governo Dilma aplicava medidas de austeridade, enquanto os serviços públicos se deterioravam e o país sediou a Copa do Mundo. O contraste entre os investimentos em megaeventos e a precarização dos direitos sociais gerou indignação popular. Esse cenário se desenvolveu no contexto da crise capitalista de 2008, que tornou inviáveis até mesmo concessões parciais. Paralelamente, setores da burguesia brasileira, radicalizados pela crise, viram uma oportunidade para impor seu projeto sem esperar pelas eleições.  

PT e PSDB eram os principais polos do regime político brasileiro. O primeiro com um com um discurso reformista (ainda que mantendo os pilares neoliberais) e o outro, abertamente neoliberal. Hoje, ironicamente, Alckmin (agora no PSB) é vice-presidente de Lula, e Haddad, seu ministro da Economia. Essa união simboliza a convergência entre os polos políticos anteriores a Bolsonaro, um “retrato” das modificações que ocorreram no regime político brasileiro.  

Lula, já em seu primeiro mandato, sinalizou aos grandes empresários que não promoveria nenhum tipo de ruptura, apresentando uma reforma da previdência como uma de suas primeiras medidas. Apesar disso, em seu segundo mandato, Lula conseguiu implementar políticas sociais, como aumentos do salário mínimo e programas de transferência de renda, aproveitando o superciclo das commodities, que também beneficiou a Argentina, o que lhe conferiu um grande prestígio popular iniciando o fenômeno denominado “lulismo”. 

A Operação Lava Jato, iniciada em 2014, emergiu como uma resposta da direita à crise orgânica – entendida como crise de hegemonia – desencadeada a partir de 2013. A força-tarefa, liderada pelo juiz Sérgio Moro, que depois se tornaria ministro de Bolsonaro, usou métodos autoritários, como prisões preventivas e delações premiadas sob coerção. A mídia hegemônica atuou como braço ideológico da operação, construindo uma narrativa de “combate à corrupção” que criminalizava centralmente o PT.  Anos depois, a “Vaza Jato”1  revelou conversas entre Moro e promotores, comprovando os objetivos políticos desse processo. 

Além disso, a burguesia brasileira mobilizou os setores mais abastados das classes médias, que gerou impacto em setores mais populares, para promover manifestações de rua que pudessem dar um respaldo ‘social’ aos ataques que pretendiam realizar. Eram mobilizações de centenas de milhares de pessoas convocadas pelos grandes meios de comunicação e por algumas igrejas (em particular, neopentecostais) , que as cobriam exaustivamente, contribuindo para criar maior legitimidade tanto para a Operação Lava Jato quanto para o golpe institucional-parlamentar.

Paralelamente, o Congresso avançava no impeachment de Dilma, concluído em 2016. Michel Temer (MDB), seu vice, assumiu e implementou reformas brutais, como a Reforma do Ensino Médio, que precarizou a educação pública, a PEC do Teto de Gastos, que congelou investimentos em saúde e educação por 20 anos, a Reforma Trabalhista, que flexibilizou direitos históricos e Lei da Terceirização, que ampliou a precarização do trabalho. Temer também iniciou a tramitação da Reforma da Previdência, concluída sob Bolsonaro. Ou seja, um pacote de ataques de enorme magnitude que marcou uma mudança estrutural nos direitos sociais da classe trabalhadora e do povo brasileiro. 

No entanto, essas medidas não passaram sem resistência. Em abril de 2017, uma greve geral paralisou o país, com adesão estimada em 40 milhões de trabalhadores. Foi a maior da história brasileira, do ponto de vista quantitativo. A mobilização foi tão forte que atrasou as reformas, forçando Temer a priorizar apenas a trabalhista. Os estudantes também vinham de processos de mobilizações muito importantes, em escolas e universidades e também confluíram com o chamado de greve geral.  

No entanto, em dezembro de 2017, uma segunda greve, já convocada, foi cancelada horas antes de ocorrer. As centrais sindicais, incluindo a CUT (ligada ao PT), negociaram com Temer a suspensão em troca da restituição do imposto sindical. Essa traição desmobilizou a classe trabalhadora e abriu caminho para a eleição de Bolsonaro em 2018.  

Contudo, mesmo após todos esses ataques e com uma correlação de forças já mais à direita, Lula liderava as pesquisas para as eleições de 2018. Para impedir sua vitória, o poder judiciário, com o auxílio dos militares, prenderam Lula com o STF proibindo até mesmo a possibilidade dele realizar entrevistas. 

Vale lembrar que o plano das diferentes frações da burguesia brasileira não era, em seu princípio, eleger Bolsonaro. Inicialmente, todos os principais partidos da burguesia brasileira apoiavam Geraldo Alckmin nas eleições de 2018. Bolsonaro surge como um filho ilegítimo do golpe e, por ser aquele que mais encarnava o ódio ao PT, foi quem conseguiu roubar a cena e capitalizar a campanha anti petista iniciada desde 2014. Assim, Bolsonaro esvaziou as intenções de voto em Alckmin, que terminou com apenas 4,76%. A burguesia, então, adequou seus planos e passou a apoiar Bolsonaro para que ele seguisse implementando as medidas iniciadas por Temer.

No contexto da crise capitalista, com o agravamento da situação social da pandemia, Lula só foi solto e reabilitado porque a burguesia percebeu que ele era o único capaz de derrotar Bolsonaro, cujo governo, apesar de alinhado economicamente, gerava instabilidade institucional. A reabilitação de Lula não veio por acaso. Ele garantiu que não revogaria as reformas de Temer e Bolsonaro, buscando se apresentar como um gestor “confiável” do capitalismo brasileiro. Para isso colocou ninguém menos que Geraldo Alckmin como vice, a figura que era o principal representante do neoliberalismo no Brasil.   

Essa longa retomada é para deixar evidente os inúmeros processos políticos e de luta de classes que se deram até a prisão de Lula. A correlação de forças foi sendo moldada à direita a partir de inúmeros ataques burgueses de grande magnitude que incluíram um golpe parlamentar-institucional, algo que não se deu na Argentina. 

Por isso, não é possível comparar o desfecho da situação de Lula ao comparar a situação atual da Argentina. Os momentos anteriores a sua prisão e sua reabilitação, são decisivos para pensar as diferenças entre os dois países, assim como os capítulos que ainda estão por vir. Na Argentina, podemos dizer que a luta contra uma tentativa de impor um regime “neolibertador” 2  está apenas começando, e ainda estamos distante da situação abertamente reacionária que se abriu no Brasil. 

Além disso, começamos a ver o início de uma oposição social a Milei, com diversas lutas econômicas de diferentes setores. Do ponto de vista da resistência social também há essa diferença de tempos. Não ocorreu na Argentina uma traição de um grande processo de luta de lutas de classes como foi a derrota imposta à classe trabalhadora através traição da greve geral de 2017. 

Também do ponto de vista da magnitude dos ataques há importantes diferenças. Milei já aplicou cortes brutais no orçamento, mas ainda não conseguiu aprovar reformas como a trabalhista ou previdenciária. Para isso, conta com o apoio do FMI, e seus bilhões de dólares, e prepara uma nova ofensiva após as eleições legislativas de outubro. 

A prisão de Cristina Kirchner integra essa estratégia de eliminação de opositores e consolidação de um regime autoritário, que ainda requer ataques maiores para se consolidar. Não à toa, logo após sua condenação, o governo de Milei e sua secretária de segurança Patrícia Bullrich aprovaram medidas repressivas, como a possibilidade da polícia prender arbitrariamente, até mesmo pelo que é postado pelas pessoas em suas redes sociais em um tentativa de constituir um regime político abertamente policial. Um regime que se prepara preventivamente diante da possibilidade de levantes sociais que possam colocar em risco seus planos.   

Aqui também, do ponto de vista dos grupos que compõem o governo, há diferenças substantivas particularmente entre os setores que sustentam Milei e aqueles que apoiaram Bolsonaro. No Brasil, os militares contribuíram um papel chave para a chegada de Temer ao poder e posteriormente para auxiliar Bolsonaro em seu governo. Generais de alta patente ocuparam cargos importantes na administração pública brasileira – realidade distinta da argentina, tanto pela menor projeção política dos militares (refletindo diferenças nos processos de redemocratização) quanto pelos conflitos entre Milei e sua vice-presidente Victoria Villarruel, que mantém estreitos vínculos com setores castrenses.

Além disso, é importante considerar a pressão política direita de agências econômicas do imperialismo dos EUA na Argentina.O FMI é um ator político fundamental, do qual o governo Milei depende para continuar existindo. Ao mesmo tempo em que os empréstimos do FMI oferecem fôlego ao governo argentino, a pressão pelo ritmo e intensidade dos ataques é um fator de constante instabilidade, e que pode desatar revoltas sociais pelos efeitos que eles geram. 

Evidentemente é preciso considerar que o próprio PT não queria uma resistência séria à prisão de Lula. Ainda que os planos de Cristina possam ser semelhantes, o ato massivo na Praça de Maio revela um setor que não aceitará passivamente medidas autoritárias e bonapartistas. O que hoje já começa a se revelar é que a política do peronismo será de conter e controlar esse sentimento, buscando canalizá-lo para as eleições, no entanto, a hipótese que a indignação contra ataques democráticos e reivindicações econômicas possam se mesclar, causam preocupações em diferentes frações da burguesia argentina. Em comparação com o Brasil, para dar maior legitimidade à prisão de Lula foram inúmeras as operações políticas e judiciais, como já dissemos.      

Como sabemos, e como ela próprio declara, Cristina e o kirchnerismo veem em Lula um horizonte. Acreditam que, assim como ele, serão reabilitados. O que não dizem é que Lula só foi reabilitado porque aceitou todas as reformas e impediu qualquer processo de resistência sério contra o golpe institucional-parlamentar, as reformas e sua própria prisão. Sua reeleição não significou a revogação dos ataques, mas sua consolidação.  

Por isso, inspirados em Lula, a consigna “vamos a volver” de Cristina, tem um conteúdo muito concreto. Significa esperar passivamente as próximas eleições, sem construir qualquer plano de lutas sério contra os ataques de Milei, o que significaria na prática uma tragédia para a classe trabalhadora argentina. Em outras palavras, o peronismo, como o PT, aposta numa oposição domesticada, esperando que Milei faça o trabalho sujo para depois retomar o poder sobre os escombros dos direitos sociais.  

Até lá, ataques como os aplicados no Brasil podem ocorrer, e, mesmo que o peronismo retorne à Casa Rosada, isso seria sobre os escombros dos direitos dos trabalhadores. Por isso, a luta contra a prisão e a proscrição de Cristina é fundamental, pois a burguesia utiliza ataques aos direitos democráticos mais elementares para impor seu projeto mais agressivo. 

Ao mesmo tempo, isso deve ser feito com completa independência política do peronismo e do kirchnerismo, que não levarão a nenhuma luta séria contra essas medidas, como demonstra a CGT, que se nega a convocar qualquer ação de luta em nível nacional. Essa é a política que vem sendo levantada pelo PTS (organização irmã do MRT na Argentina), através de milhares de militantes que atuam em frentes importantes, como a luta do Hospital Garrahan, dos trabalhadores da SECCO, da fábrica Georgalos, e de dezenas de universidades e escolas por todo o país — e também por meio de suas figuras públicas e deputados nacionais, como Myriam Bregman, Nicolás del Caño, Christian Castillo e Alejandro Vilca.

A lição do Brasil é clara: sem resistência massiva e independente, a “volta” de Cristina significará apenas a manutenção da herança deixada por Milei, assim como faz Lula no Brasil. Além do mais, as consecutivas quedas de aprovação do governo Lula revelam o fracasso dessa política de conciliação de classes. A extrema-direita brasileira não está derrotada, mesmo com a possibilidade de Bolsonaro ser preso. Outros dos seus representantes, como Tarcísio de Freitas (atual governador de São Paulo), estão atuando no regime político para retornar ao poder e voltar a impor seu projeto reacionário. Vale lembrar, que essa mesma figura recebe vultosas cifras do governo de Lula para aplicar ataques e privatizações. 

A estratégia do peronismo e do petismo confluem em um ponto fundamental. Buscam canalizar o descontentamento social para as vias eleitorais, enquanto grandes ataques são aprovados. Construir um caminho de independência de classe é tarefa urgente e necessária para enfrentar tanto os ataques da extrema-direita quanto as variantes supostamente reformistas – que servem apenas para desviar e conter a luta de classes, acabando por administrar um país estruturado conforme o programa ultra-neoliberal.

 

NOTAS:

1. A Vaza Jato foi uma série de vazamentos de mensagens trocadas entre membros do Ministério Público Federal (MPF) e do juiz Sérgio Moro, envolvidos na Operação Lava Jato. Os diálogos, divulgados pelo site The Intercept Brasil a partir de junho de 2019, revelaram conluios, parcialidade e estratégias ilegais para condenar Lula e interferir no processo eleitoral de 2018.

2. O conceito refere-se ao regime instaurado na Argentina após o golpe de Estado de 1955, autodenominado “Revolução Libertadora”. Seu objetivo era impor uma ordem política e social baseada na repressão e na proscrição de opositores, principalmente o peronismo, com o intuito de implementar políticas de ajuste e disciplinar o movimento operário, alinhando-o aos interesses do imperialismo na América Latina.

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