Juan Dal Maso
Algumas recapitulações e conjecturas.
O recente triunfo da Nova Frente Popular (NFP) nas eleições legislativas da França foi recebido com alegria por amplas massas da classe trabalhadora e populares dentro e fora do país. A derrota da ultradireitista Frente Nacional (hoje chamada Rassemblement National) é claramente uma boa notícia. No entanto, o assunto, como de costume, não é tão simples. De fato, enquanto Mélenchon afirma que o NFP deve ser o responsável pela formação do governo (o que implicaria uma situação de coabitação com Macron), aumentam as especulações de que Macron acabará finalmente fazendo algum tipo de acordo com a “ala direita” da nova frente, assim como aqueles que dizem que, se o NFP conseguisse formar governo, apresentariam imediatamente uma moção de censura. Abre-se um daqueles períodos de instabilidade próprios da época de crise do sistema parlamentar em geral e das últimas décadas em particular, mas que, pelas condições e atores envolvidos, é extremamente novo.
Aqui, usaremos essas circunstâncias como uma desculpa para voltar a algumas questões históricas e estratégicas 1 primeiro, para depois realizar algumas conjecturas sobre as relações entre esquerda, classe trabalhadora, democracia e socialismo no presente.
As origens do Frente Popular
Conforme discutido na atual conjuntura francesa, a Frente Popular (FP) é uma referência histórica e política significativa da esquerda no país. Quando se fala da FP, refere-se, de maneira ambígua, seja intencionalmente ou não, a dois processos: a formação de uma aliança entre forças políticas (o stalinismo, a social-democracia e o partido radical) e um dos maiores movimentos de massas da história da França, que teve seu ponto mais alto nas greves com ocupações de fábricas em junho de 1936.
Desde o final de 1928, a Internacional Comunista seguia a orientação do chamado “terceiro período”, que colocava um sinal de igualdade entre a social-democracia e o fascismo. Após a ascensão de Hitler em 1933 – facilitada enormemente por essa linha suicida – começaria uma virada que teve seu momento decisivo em 1934.
Em 6 de fevereiro deste ano, uma manifestação armada dos grupos fascistas franceses provocou a renúncia do governo de Daladier. Seis dias depois, houve uma manifestação massiva dos sindicatos em resposta. Nesse contexto, o Partido Comunista Francês (PCF), que dias antes caracterizava o presidente renunciante como “radical-fascista” e o líder social-democrata Léon Blum como “social-fascista”, realizou uma mudança de 180° em sua orientação. Iniciaram-se negociações com a SFIO (partido social-democrata, com o qual o PCF até pensou em se fundir) para formar uma aliança à qual se juntaria depois o partido radical (com base na pequena burguesia republicana).
A Frente Popular está associada aos nomes de Maurice Thorez, principal líder público do PCF em 1934, e de Georgi Dimitrov, que foi o porta-voz de sua generalização pela Comintern em 1935. No entanto, Daniel Guérin afirma (assim como outros autores) que, na verdade, foi o tcheco Eugen Fried – figura subterrânea que efetivamente dirigia o bureau do partido junto com um grupo composto por quadros estalinistas húngaros, poloneses e russos – quem propôs essa política a Thorez. 2
Essa aliança fez sua primeira aparição pública como tal em 14 de julho de 1935 na Praça da Bastilha. A união dos partidos operários, centrais sindicais e o partido radical garantiu uma manifestação massiva, mas, ao mesmo tempo, a restringiu dentro de limites muito claros. Os três partidos concordaram em não permitir a radicalização da luta de classes para não assustar a suposta burguesia democrática, sob o argumento de defesa da democracia contra o fascismo.
O VII Congresso da Comintern: elogios à Frente Único Operária, votos à Frente Popular
Em agosto de 1935, a Comintern realizou seu VII Congresso que instaurou essa política de Frentes Populares como linha internacional dos partidos stalinistas. Reformulou-se significativamente a estratégia da Internacional Comunista, que havia nascido contrapondo à democracia burguesa a ditadura do proletariado. O VII Congresso situou-se nos marcos do campo “democrático” contra o fascismo, promovendo a subordinação dos partidos comunistas à burguesia “democrática” em uma versão stalinista da velha política menchevique de aliança com a burguesia liberal ou “progressista”.
Os argumentos de Dimitrov (comunista búlgaro que na época era o dirigente da Comintern) em seu discurso ao VII Congresso partiam da necessidade da frente única da classe trabalhadora, propondo concretamente a unidade sindical e a frente única entre comunistas e social-democratas e denunciando aqueles que argumentavam que os partidos democrático-burgueses eram melhores aliados que os comunistas na luta contra o fascismo.
Após toda essa explicação, Dimitrov afirmava que a frente única proletária não era suficiente e que era necessário uma frente popular antifascista que permitisse realizar uma luta de massas contra o fascismo:
Na mobilização das massas trabalhadoras para a luta contra o fascismo, temos como tarefa especialmente importante a criação de um amplo frente popular antifascista com base na frente única proletária. O sucesso de toda a luta do proletariado está intimamente ligado à criação da aliança de luta do proletariado com o campesinato trabalhador e com as massas mais importantes da pequena burguesia urbana, que formam a maioria da população mesmo nos países industrialmente desenvolvidos. […] Para a criação da frente popular antifascista, é de grande importância abordar de maneira acertada todos aqueles partidos e organizações que recrutam uma parte considerável do campesinato trabalhador e das principais massas da pequena burguesia urbana. Nos países capitalistas, a maioria desses partidos e organizações – tanto políticos quanto econômicos – ainda estão sob a influência da burguesia e seguem a esta. A composição social desses partidos e organizações não é homogênea. Neles aparecem, ao lado dos camponeses sem terra, camponeses muito ricos, ao lado dos pequenos comerciantes, grandes empresários, mas a direção é feita por estes últimos, os agentes do grande capital. Isso nos obriga a tratar essas organizações de maneira diferenciada, considerando que, muitas vezes, a massa de seus afiliados não conhece a verdadeira face política de sua própria direção. Em determinadas circunstâncias, podemos e devemos direcionar nossos esforços para ganhar esses partidos e organizações ou setores isolados deles para a frente popular antifascista, apesar de sua direção burguesa.
Portanto, à frente única da classe operária, que os stalinistas sabotaram até a ascensão de Hitler, o VII Congresso propôs “agregar” uma frente popular antifascista com as organizações da pequena burguesia, o que era um eufemismo para designar partidos burgueses com apoio das camadas médias. O programa de luta antifascista deveria ser definido de acordo com a realidade de cada país. Por exemplo, na França, as tarefas da “frente popular antifascista” se reduziam à defesa da democracia burguesa e do então vigente acordo entre França e URSS contra a Alemanha, concluindo:
E se o movimento antifascista da França levasse à formação de um governo que lutasse contra o fascismo francês de maneira efetiva, não apenas com palavras, mas com ações, que implementasse o programa de reivindicações da frente popular antifascista, os comunistas, sem deixar de ser inimigos irreconciliáveis de todo governo burguês e partidários do Poder Soviético, estariam dispostos, apesar de tudo, diante do crescente perigo fascista, a apoiar tal governo.
Em uma passagem um tanto infeliz de um trabalho fundamental[ Hajek, Milos, Historia de la Tercera Internacional. La política de frente única (1921-1935), Barcelona, Crítica, 1984, p. 322.]] para compreender a problemática da Frente Única na história da Terceira Internacional, Milos Hajek repreende Trótski por se opor à política de frentes populares, embora esta coincidisse com o que ele próprio havia proposto na Alemanha para impedir a ascensão de Hitler. Mas é Hajek quem confunde a Frente Única proletária com a Frente Popular, confusão muito comum, por sinal, na intelectualidade de esquerda.
Trótski sustentava que era necessário implementar a Frente Única operária, ou seja, dos partidos comunista e social-democrata, para a luta contra Hitler. De sua perspectiva, qualquer acordo pontual com uma força burguesa “democrática” estava subordinado a uma orientação de luta independente da classe operária. Trótski defendia que, com uma luta decidida, a classe operária alemã poderia estabelecer sua hegemonia revolucionária sobre toda a nação. Portanto, sua política era proletária, mas não obreirista, pois supunha a articulação da unidade da classe operária e desta última com os demais setores oprimidos.
Por outro lado, a Frente Popular implicava a unidade da classe operária com um setor supostamente “progressista” da burguesia para enfrentar o fascismo com os métodos e nos marcos da democracia burguesa e, por isso, era precisamente o contrário da Frente Única operária tanto quanto a uma política hegemônica. Nos países imperialistas, implicava o abandono da luta de classes e nas colônias o abandono da luta anti-imperialista, em função da defesa do imperialismo “democrático” francês ou britânico. A Frente Única proletária, por outro lado, implicava a possibilidade de um desenvolvimento da luta de classes até a constituição de sovietes e a luta pelo poder, unindo-se também à luta anti-imperialista nas colônias.
A (não tão) curiosa coincidência entre Laclau/Mouffe e Trótski
Em seu clássico livro Hegemonia e estratégia socialista, Ernesto Laclau e Chantal Mouffe tomam as formulações de Dimitrov, assim como outras de Mao e Togliatti sobre a democracia de novo tipo ou a democracia progressiva, como um avanço na “lógica desconstrutiva da hegemonia” que se separa de uma posição classista, tanto em relação ao pertencimento de classe quanto à definição da democracia:
Esta é a mudança que ocorre na política comunista a partir do VII Congresso do Komintern e do relatório de Dimitrov, no qual se abandona formalmente a linha estratégica de “classe contra classe” do terceiro período e se inicia a política das frentes populares. Aqui, implicitamente, deixa-se para trás a concepção de hegemonia como simples e externa aliança de classes, e passa-se a conceber a democracia como terreno comum que não é absorvido por nenhum setor social específico […] Uma transformação do vocabulário político acompanha essa mudança estratégica: fórmulas que vão desde a “nova democracia” de Mao até a “democracia progressiva” ou as “tarefas nacionais da classe operária” de Togliatti tentam se situar nesse terreno – difícil de definir em termos dos parâmetros marxistas, na medida em que o “popular” e o “democrático” são realidades tangíveis ao nível da luta de massas, mas impossíveis de atribuir em termos de um estrito pertencimento de classe 3 .
Laclau e Mouffe estavam certos. A política de Frentes Populares situava o comunismo como ala esquerda do “campo democrático” e subordinava a luta de classes à oposição entre democracia e fascismo, como no caso da Espanha ou França (sobre os quais diremos algo em breve). Questionar essa operação ideológica não significa que para desenvolver a luta de classes fosse (ou seja atualmente) necessário equiparar a democracia burguesa e o fascismo, questão que Trótski havia explicado exaustivamente em seu tempo. Mas uma orientação da luta contra o fascismo do ponto de vista de classe impunha o caminho da luta revolucionária contra ele e não uma “luta” subordinada aos objetivos dos partidos “democráticos”, como era a política dos partidos comunistas a partir dessa nova orientação estratégica. Talvez por isso, se dá a curiosidade de que Trótski 4 faz um balanço muito parecido ao de Laclau e Mouffe sobre o VII Congresso da Comintern, mas de uma concepção oposta à dos referenciais pós-marxistas:
O eixo de todas as discussões no congresso foi a última experiência na França, sob a forma da chamada “Frente Popular”, que era um bloco de três partidos: Comunista, Socialista e Radical. […] A derrubada do gabinete de Daladier por uma insurreição das bandas armadas da reação (6 de fevereiro de 1934) provocou uma série de mudanças radicais na distribuição das forças políticas […] Os próprios dirigentes que até 6 de fevereiro tachavam o radical de esquerda Daladier de fascista e o dirigente socialista León Blum de social-fascista, diante do assalto do fascismo autêntico perderam toda confiança em si mesmos e em sua bandeira e – sob as instruções diretas de Moscou, claro – resolveram buscar a salvação em uma aliança com os partidos democráticos, não apenas com os socialistas, mas também com os radicais […] Há vinte e um anos, Lenin lançou a consigna de ruptura com o reformismo e o patriotismo. Desde então, todos os chamados dirigentes centristas, oportunistas e intermediários lançaram contra Lenin a acusação de sectarismo, mais que qualquer outra. Pode-se concordar ou discordar de Lenin, mas não se pode negar que a Internacional Comunista foi fundada precisamente com base na impossibilidade de conciliar as duas tendências fundamentais do movimento operário. O Sétimo Congresso chegou à conclusão de que o sectarismo foi a origem de todas as derrotas subsequentes do proletariado. Assim vemos que Stalin corrige o grande “erro” histórico de Lenin, e de forma radical: Lenin criou a Internacional Comunista; Stalin a está liquidando
Vamos ver então, em que terminou essa desconstrução/liquidação.
As experiências da França e Espanha
Em abril/maio de 1936, a Frente Popular ganhou as eleições na França, designando a Assembleia Nacional ao social-democrata León Blum como presidente. As greves e ocupações de fábricas se estenderam por todo o país em junho de 1936, que passou à história como um dos períodos mais importantes da luta da classe operária na França.
O governo Blum negociou com os sindicatos aumentos salariais, 40 horas semanais de trabalho e férias pagas. Sua política visava terminar com as greves através de concessões, enquanto não tomava nenhuma medida séria diante do crescimento do fascismo. Blum esclarecia que seu governo não pretendia expropriar a burguesia, enquanto Thorez sustentava que “é preciso saber terminar uma greve”. A Frente Popular francesa também não prestou nenhum apoio à república espanhola na luta contra Franco.
Enquanto isso, a burguesia fugia com grande parte dos depósitos em ouro durante abril e junho. O governo da Frente Popular aplicou uma desvalorização de 37% da moeda em outubro do mesmo ano e posteriormente, em março de 1937, voltou a ceder ante a oposição dos bancos de pagar um imposto que compensasse seus ganhos pela desvalorização, restabelecendo o mercado livre do ouro. Quando os banqueiros colocaram em prática um “golpe financeiro” em junho de 1937 retirando os depósitos de ouro, Blum demitiu-se pela primeira vez e apoiou em dezembro do mesmo ano a reintrodução das 40 horas de trabalho semanais, avançando sobre as conquistas salariais e sindicais da classe trabalhadora, inclusive reprimindo greves e ocupações como a da fábrica Goodrich em dezembro de 1937 5 . Em 1938, a Frente Popular se rompeu pela dupla pressão da burguesia e da política de alianças da URSS (naquele momento girando para um acordo com o nazismo alemão) que incidia diretamente na política do PCF. A mesma Assembleia Nacional que havia votado a constituição do governo Blum em 1936, votou em 1940 os plenos poderes a Petain, que foi um fantoche da ocupação nazista.
Na Espanha, a experiência foi ainda mais trágica. A Frente Popular constituída pelo PCE, o PSOE, Esquerda Republicana, o POUM e grupos menores, ganhou as eleições em 1936, somando mais tarde à ala direita dos anarquistas. O levante de Franco em 18 de julho daquele ano e um cruel processo de guerra civil deram forma a uma revolução que se desenvolvia nos campos, nas fábricas e nas cidades como uma revolução operária e camponesa, enquanto se combatia na frente militar da república contra os fascistas. A política da Frente Popular, sintetizada no slogan “primeiro ganhar a guerra, depois a revolução” foi se opor às coletivizações de terra, o controle operário e a administração operária direta das fábricas e a continuidade das milícias (que fundiram com o velho exército e os guardas de assalto da polícia no Exército Popular). O esmagamento do “maio catalão” em 1937 foi um dos marcos da política repressiva do governo frentepopulista. O governo de Negrín montou um circuito repressivo pelo qual passaram anarquistas, trotskistas e poumistas, incluindo o assassinato de Andreu Nin, dirigente do POUM e ex-Ministro da Justiça do governo catalão. Igual ao seu análogo francês, a Frente Popular espanhola nunca se propôs a libertação das colônias como Marrocos, apesar de que uma grande parte da tropa franquista era composta por soldados oriundos desse país.
A questão das frentes e da vontade coletiva
No final de 1937, em “A lição da Espanha: última advertência”, Trótski destacava a diferença entre a Frente Único Operária e a Frente Popular, as possibilidades do primeiro de hegemonizar o campesinato e a impossibilidade do segundo de estabelecer qualquer orientação que fosse no interesse da classe operária:
Os teóricos da Frente Popular não vão além da primeira regra da aritmética: a soma. A soma de comunistas, socialistas, anarquistas e liberais é maior do que cada um de seus termos. No entanto, a aritmética não é suficiente; são necessários, no mínimo, conhecimentos de mecânica. A lei do paralelogramo de forças se verifica também na política. A resultante é, como se sabe, tanto menor quanto mais divergentes são as forças entre si. Quando os aliados políticos puxam em direções opostas, a resultante é zero. O bloco das diferentes agrupações políticas da classe operária é absolutamente necessário para resolver as tarefas comuns. Em certas circunstâncias históricas, um bloco desse tipo é capaz de arrastar as massas pequeno-burguesas oprimidas, cujos interesses estão próximos aos do proletariado, já que a força comum desse bloco é muito maior do que as resultantes das forças que o constituem. Por outro lado, a aliança do proletariado com a burguesia, cujos interesses, atualmente, nas questões fundamentais, formam um ângulo de 180º, não pode, em termos gerais, senão paralisar a força reivindicativa do proletariado. A guerra civil, na qual a força da violência é importante, exige um supremo compromisso dos participantes. Os operários e camponeses não são capazes de assegurar a vitória senão quando lutam por sua própria emancipação. Nessas condições, submetê-los à direção da burguesia é garantir de antemão sua derrota na guerra civil.
Veremos quanto desse paradoxo entre a mera adição e a lei do paralelogramo de forças opera na dinâmica da NFP na França. O que nos parece, tanto para o passado quanto para o presente, é que as alianças baseadas em uma “unidade antifascista” com forças burguesas têm a contradição destacada por Trótski em seu trabalho de 1937 e que poderiam ser grafadas com a diferença entre as aspirações dos trabalhadores e habitantes das áreas populares que votaram na NFP e o que estão dispostos a fazer personagens como Hollande, que aproveitaram o surgimento da nova coalizão para voltar da morte política.
Mas, como já dissemos também muitas vezes, não se podem resolver os paradoxos da realidade com citações dos clássicos. Também não é nosso interesse “pontificar” sobre a história das Frentes Populares, enquanto o “povo de esquerda” se entusiasma com a NFP. Apenas queremos que esta informação esteja disponível, pelo menos, para a militância (não somente a trotskista) e que cada um faça a experiência correspondente.
O tema de fundo continua sendo o de como se ergue uma “vontade coletiva”. A interpelação classista está mais ou menos desvalorizada em termos gerais por diversas razões: a declinação da relação comunismo/classe operária (muito mal representada pelo stalinismo), o surgimento de movimentos organizados em função de demandas identitárias separadas da questão de classe, a preeminência do pós-modernismo, etc. No entanto, o caso da França é diferente do de outros países. Lá podemos ver uma classe operária que mantém muitos elementos de continuidade com o movimento operário tradicional (posições fortes na economia do país, tanto na indústria quanto nos serviços, comunicações e logística, peso dos sindicatos na vida política do país apesar de não ter um nível muito alto de sindicalização) combinados com características próprias da atualidade (alto nível de “racialização” e “feminização”, relação estreita entre a condição de classe e a pertença às áreas populares, níveis crescentes de precarização). Se atendermos a essas condições, as possibilidades de constituir um bloco popular com eixo na classe trabalhadora são muito mais altas do que em outros lugares da Europa. Há uma questão de estratégia política que remete à contraposição de perspectivas que fazíamos antes entre Laclau/Mouffe e Trótski: uma “hegemonia” discursiva (que informa também a perspectiva melenchoniana do “populismo de esquerda”) que desfoca a questão de classe ou uma hegemonia baseada na articulação política de forças sociais, que se constituem como forças materiais com um projeto revolucionário. O processo em curso pode ser um ponto de apoio para a segunda perspectiva, desde que a classe trabalhadora não se proponha a ser uma espectadora passiva das manobras parlamentares, mas uma protagonista decidida da luta por suas próprias reivindicações. Sigamos a oportuna recomendação de Jean-Paul Marat: somente as massas mobilizadas de modo permanente podem impedir que os parlamentos e os governos distorçam suas demandas.
Nos passos da Convenção e da Comuna
Nos últimos anos, tem-se popularizado na intelectualidade a ideia de que, em escala internacional, estamos atravessando um interregno de evolução incerta. O que está claro, como aponta Nancy Fraser em Capitalismo Canibal, é que volta-se a falar de capitalismo e socialismo (com diversas expressões e peso desigual segundo os países) como alternativas opostas, contra a naturalização desse sistema que havia imposto a ofensiva neoliberal.
Eu acrescentaria também que as recentes revoltas mostraram a centralidade do espaço urbano e as potencialidades e limites da “forma multidão” na hora de enfrentar as derivações restauradoras do Estado.
Ao mesmo tempo, o auge das extremas direitas repõe a dicotomia entre autoritarismo e democracia, que remete à retórica das Frentes Populares históricas de defesa da democracia contra o fascismo, mas também pode assumir a forma mais à direita da “frente republicano”.
Daí a retórica republicana da NFP, os pronunciamentos daqueles distritos onde Macron tinha mais chances do que os candidatos frentepopulistas no segundo turno e a afirmação de Mélenchon de que a unidade da esquerda salvou a república. Sem especular sobre a questão de até onde realmente um governo de RN seria incompatível com o regime da Vª República, que tem suas boas doses de bonapartismo (ainda mais graças à erosão operada por Macron dos chamados “corpos intermediários”), é importante notar que no “povo de esquerda” predomina um imaginário composto de algum tipo de combinação entre democracia representativa e direitos sociais, e a ação direta não necessariamente se coroa em uma tendência à auto-organização que implicaria uma democracia distinta, mais apropriada pelas suas formas à posição social da classe trabalhadora.
Em meados dos anos 30, Trótski havia sugerido a quem buscava defender a democracia contra o avanço do fascismo, mas sem tomar medidas contra a propriedade privada, que “não se inspirassem nas ideias e métodos da Terceira República, mas sim nos da Convenção de 1793”.
Depois de propor a abolição do Senado e da instituição presidencial, ele destacava a importância de uma Assembleia Única que concentrasse os poderes executivo e legislativo:
Uma assembleia única deve combinar os poderes legislativo e executivo. Seus membros seriam eleitos por dois anos, por sufrágio universal de todos os maiores de dezoito anos, sem discriminações de sexo ou nacionalidade. Os deputados seriam eleitos com base nas assembleias locais, constantemente revogáveis por seus constituintes, e receberiam o salário de um trabalhador especializado.
Essa é a famosa “democracia mais generosa” que “facilitaria a luta pelo poder operário”.
A expressão “democracia mais generosa” tem um caráter metafórico, mas se nos atentarmos às questões afirmadas por Trótski, podemos deduzir que sua principal característica é um igualitarismo radical: abolição dos poderes especiais, condições iguais para eleger e ser eleito, controle permanente e revogabilidade dos representantes por seus eleitores e igualdade material entre eles por meio da equiparação salarial.
Esse tem sido um tema de debate com La França Insumisa, que pode ser estendido com mais razão ainda à NFP.
Mas é importante destacar que esse programa também foi colocado em prática pela Comuna de Paris em 1871. Em O Estado e a Revolução, Lenin havia resgatado a implementação dessas medidas, junto com a substituição das tropas regulares pelo povo armado, como um passo da democracia burguesa para a democracia proletária.
A este respeito, é singularmente notável uma das medidas decretadas pela Comuna, que Marx sublinha: a abolição de todas as despesas de representação, de todos os privilégios pecuniários dos funcionários, a redução dos salários de todos os funcionários do Estado ao nível do “salário de um operário”. Aqui é onde se expressa de um modo mais evidente a viragem da democracia burguesa para a democracia proletária, da democracia dos opressores para a democracia das classes oprimidas, do Estado como “força especial” de repressão de uma determinada classe para a repressão dos opressores pela força conjunta da maioria do povo, dos operários e dos camponeses. E é precisamente neste ponto tão evidente — talvez o mais importante, no que se refere à questão do Estado — em que os ensinamentos de Marx têm sido mais relegados ao esquecimento! Nos comentários de popularização — cuja quantidade é inumerável — não se fala disto. […] A completa elegibilidade e a revogabilidade em qualquer momento de todos os funcionários, a redução do seu salário até os limites do “salário corrente de um operário”, estas medidas democráticas, simples e “compreensíveis por si mesmas”, ao mesmo tempo que unificam absolutamente os interesses dos operários e da maioria dos camponeses, servem de ponte que conduz do capitalismo ao socialismo.
Esse caráter de “ponte” estava dado por uma relação de convergência entre esta forma de democracia e as medidas socialistas no plano econômico:
Estas medidas dizem respeito à reorganização estatal, puramente política da sociedade, mas é evidente que só adquirem o seu pleno sentido e importância em conexão com a “expropriação dos expropriadores” já em realização ou em preparação, ou seja, com a transformação da propriedade privada capitalista sobre os meios de produção em propriedade social.
A meu modo de ver, a afirmação do caráter evidente da relação entre estas medidas políticas e a “expropriação dos expropriadores” não é tão clara. No entanto, assim como em relação à proposta de Trótski sobre a “democracia mais generosa”, a explicação parece estar no igualitarismo. Uma forma política verdadeiramente igualitária é incompatível com a divisão de classes. Além disso, ao estabelecer a revogabilidade dos representantes e o seu controle permanente pelas bases, esta democracia jacobina e da Comuna implica uma mudança na concepção da intervenção da classe trabalhadora e do povo na tomada de decisões, mais próxima da unidade de cidadão e produtor própria da democracia dos conselhos do que da concepção delegativa do parlamentarismo burguês. Por fim, a redução de qualquer tipo de poder especial para o regime político aumenta a força da mobilização das massas por suas próprias demandas.
Para terminar, tentaremos unir ambas as questões, a das Frentes Populares e a do nexo democracia igualitária/socialismo.
Comentários finais
Voltamos às origens, às experiências históricas e aos debates estratégicos sobre as Frentes Populares, para sugerir que é preciso tomar com cautela o entusiasmo atual com a NFP francês e oferecer algumas ferramentas para analisar as possíveis derivas dessa coalizão diante das articulações parlamentares em curso. Ao mesmo tempo, esse debate nos coloca o desafio de repensar o classismo e sua relação com a questão das alianças e da hegemonia, assim como o problema do vínculo entre democracia e socialismo, não à maneira da intelectualidade social-democrata da década de 1980 nem da “populista de esquerda” do século XXI, mas a partir da recuperação da questão pelo pensamento clássico revolucionário. Minha impressão, talvez equivocada mas em princípio não totalmente descabida, é que experiências como a que está ocorrendo agora na França nos colocam a necessidade de revalorizar este nexo entre igualitarismo democrático-radical (no qual os frentepopulistas são totalmente inconsequentes) e socialismo (idem) como uma forma de avançar em um questionamento inicial do capitalismo que, combinado com a interpelação em termos de classe, uma política hegemônica e um programa que busque afetar os grandes proprietários, permita reconstruir um imaginário socialista e comunista no movimento de massas.
NOTAS
1. Já discutimos esses tópicos em vários trabalhos anteriores, por isso pedimos desculpas por possíveis repetições.
2. Ver Guérin, Daniel, Front Populaire, révolution manquée, Marseille, Agone, 2013, pp. 128/129.
3. Laclau, Ernesto y Mouffe, Chantal, Hegemonía y estrategia socialista. Hacia una radicalización de la democracia, Madrid, Siglo XXI, 1987, p. 71/72.
4. https://ceip.org.ar/El-congreso-de-liquidacion-de-la-Comintern
5. Guèrin, Daniel. Front Populaire, révolution manquée, ob. cit, pp. 189/191, pp. 217/219 y p. 245.