Revista Casa Marx

Michel Foucault: o nascimento da política e a análise do neoliberalismo (parte 3)

Iuri Tonelo

Nesse artigo, buscaremos abordar a análise de Michel Foucault sobre o fenômeno do neoliberalismo, tomando seu curso “O nascimento da biopolítica” de 1978-79 como objeto de análise. Como se sabe, o autor mudou o tema no interior do curso, focalizando o fenômeno do neoliberalismo e, em certo sentido, da política, e será sobre estes que iremos nos deter.

Nosso objetivo é oferecer uma leitura que não apenas parta das efetivas análise de Foucault sobre os fenômenos, mas também relacioná-las com sua obra precedente, sua metodologia e análise do poder. Em suma, encontrar o sentido comum que permanece e se expressará até sua leitura da “ética do cuidado de si” dos anos 1980, mas também perceber os elementos de descontinuidade na continuidade na maneira particular que um pensador crítico como Foucault disserta sobre o neoliberalismo – uma leitura nossa, portanto, alternativa às que buscaram esquerdizar sua visão a partir da crise de 2008, dando a ela novos contornos. Vamos nos ater, portanto, à obra de Foucault e às consequências políticas de sua reflexão sobre o neoliberalismo.

O nascimento da política

Desde seus cursos de meados dos anos 1970, Foucault procura pensar a política a partir do que vai além da proposta de um Estado “soberano” e da compreensão do Estado forte e centralizado. Vai além, portanto, de tratar essa abordagem “soberanista” como se fosse a própria natureza da reflexão política.

Até sua fase genealógica, Foucault aborda a política sobre um ângulo filosófico cético-crítico, ou seja, apresentando-se como quem decifra as formas do poder, baseados em regimes de verdade, construídos com um discurso histórico linear em função de interesses e propósitos próprios – mas sem se preocupar em oferecer alguma alternativa, aparecendo mais como uma crítica dos poderes instituídos. Nessa acepção, encontra sua arma na genealogia, na medida em que, com ela, poderia desfazer constituições discursivas que levam à legitimação das formas de poder.

No entanto, em O Nascimento da biopolítica aparece uma guinada, que não marca uma ruptura em seu pensamento, mas um sentido novo para suas reflexões. Trata-se de um estudo sobre a “arte de governar”, em que Foucault desse ponto de vista focaliza não apenas o poder, mas a política e a governamentalidade que, enquanto conceitos, perdem uma conotação necessariamente negativa. Em certo sentido, ele localiza seu curso de 1978-79 como uma reflexão sobre o nascimento da política, e argumenta da seguinte forma:

Nisso que vocês veem no mundo moderno, o mundo que nós conhecemos desde o século XIX, toda uma série de racionalidades governamentais que se acavalam, se apoiam, se contestam, se combatem reciprocamente. Arte de governar pautada pela verdade, arte de governar pautada pela racionalidade do Estado soberano, arte de governar pautada pela racionalidade dos agentes econômicos, arte de governar pautada pela racionalidade dos próprios governados. (…) o que é a política, finalmente, senão ao mesmo tempo o jogo dessas diferentes artes de governar com seus diferentes indexadores e o debate que essas diferentes artes de governar suscitam? É aí, parece-me, que nasce a política 1

Então na natureza do que é a política, desde o século XIX, Foucault procura delimitar duas grandes acepções: uma racionalidade estatizante, nacionalista, que será baseada na racionalidade e estratégia dos interesses do “indivíduo soberano” ou de um “regime de verdade”; ou uma arte de governar que se baseia “no comportamento racional dos que são governados” 2.

Isso retoma um problema central da ciência política que vai ser abordado por essa análise de Foucault: a relação entre o Estado e a sociedade civil. A pergunta fundamental que se coloca o filósofo nesse sentido é se era possível pensar a arte de governar a partir da sociedade civil e como compreendê-la. E, precisamente, estudando esse aspecto, ele encontrará na trajetória da emergência do liberalismo, em oposição às formas soberanistas do poder, uma base filosófica para a pesquisa, particularmente na emergência do chamado homo oeconomicus. Isso porque a inovação liberal do ponto de vista da reflexão política estaria em focalizar o indivíduo e seu interesse como condição de reflexão do interesse geral, de forma que a reflexão sobre a política não residiria mais em pensar a astúcia do príncipe ou do leviatã, mas a razão governamental que surge a partir da racionalidade econômica dos próprios indivíduos.

Dessa forma, refletindo sobre a síntese que faz o economista Gary Becker 3 sobre o homo oeconomicus, Foucault argumenta que na formação da teoria liberal ele funcionava como “elemento intangível em relação ao exercício de poder” 4, aquele que do ponto de vista do governo não se mexer, um sujeito e objeto do laissez-faire – uma suposta intangibilidade em relação ao poder, que, por motivos óbvios, torna-se atrativa para o pensamento do filósofo francês.

Assim, compreende que, mantendo a liberdade e iniciativa do indivíduo como condição para pensar a política, seria possível pensar também a ação governamental, que tornasse o indivíduo manejável, “como um correlato de uma governamentalidade que vai agir sobre o meio e modificar sistematicamente as variáveis do meio” 5. Tendo isso em vista, Foucault coloca a questão:

será que, ao definir o homo oeconomicus, se tratava de indicar qual zona será definitivamente inacessível a toda ação do governo? Será que o homo oeconomicus é um átomo de liberdade diante de todas as condições, de todas as empresas, de todas as legislações, de todas as proibições de um governo possível, ou será que o homo oeconomicus já não era um certo tipo de sujeito que permitia justamente que uma arte de governar se regulasse de acordo com o princípio da economia (…) Não é preciso lhes dizer que meu modo de colocar essa questão já lhes dá a resposta, e é disso portanto que gostaria de lhes falar, do homo oeconomicus como parceiro, como vis-à-vis, como elemento de base da nova razão governamental tal como se formula no século XVIII 7

No interior do “nascimento da política”, a nova razão governamental é uma forma de compreendê-la, a partir da regulação da atividade do indivíduo de acordo com a economia de mercado, e aqui estaria um dos aspectos fundamentais do “nascimento da política”. Mas como um autor conhecido como o que desenvolveu sobre a microfísica do poder e retirou a centralidade do Estado pôde colocar a centralidade da reflexão política na “arte de governar” e na “nova razão governamental”?

Estado, microfísica do poder e governamentalidade

Com a guinada de análise proposta na reflexão sobre o “nascimento da política”, Foucault vê necessário responder à crítica sobre se com sua microfísica do poder estaria retirando o foco do Estado. E a resposta dele é bastante reveladora, quando diz:

Se alguém me disser: na realidade, você elimina, nas análises que faz, a presença e o efeito dos mecanismos estatais; então, responderei: nada disso, você está enganado ou quer se enganar, porque na verdade não fiz outra coisa senão o contrário dessa eliminação. Quer se trate da loucura (…) quer se trate de medicina clínica, quer se trate da integração dos mecanismos e das tecnologias disciplinares no interior do sistema penal, seja como for, tudo isso sempre foi a identificação da estatização progressiva, certamente fragmentada, mas contínua, de certo número de práticas, de maneiras de fazer e, se quiserem, de governamentalidades. O problema da estatização está no próprio cerne das questões que procurei colocar 7

Que Foucault desenvolva, analisando o neoliberalismo, que o cerne de seu pensamento era analisar o problema da estatização é algo chamativo. Não está desconectado disso o fato de que em sua oitava aula do curso busque rearranjar a questão da microfísica do poder, argumentando que não se trata de pensar os pequenos poderes, as pequenas escalas, mas “admitir que a análise dos micropoderes ou dos procedimentos de governamentalidade não está, por definição, limitada a uma área precisa”, ou seja, em uma dada escala, mas um “método de decifração que pode ser válido para uma escala inteira”. Assim, conclui que “a análise dos micropoderes não é uma questão de escala (…), mas uma questão de ponto de vista” 8.

Dessa forma, o caminho está aberto para conectar a crítica genealógica do poder e seu “ponto de vista” dos micropoderes com a própria crítica do Estado “centralizador”. Evidentemente, o recurso utilizado por Foucault, que não é estranho a determinadas perspectivas da política, não confere (e não chega nem próximo disso) um conteúdo de classe para essa crítica do Estado. Ele coloca mais ênfase na centralização do poder. Para isso reconstrói o argumento historicamente, definindo o Estado na emergência do capitalismo mercantilista, em três bases de suas feições. Em primeiro lugar, o objetivo de econômico (mercantilista), em segundo lugar sua função de gestão interna das pessoas, a função de polícia, que Foucault considera ilimitada. Em terceiro lugar, um exército e uma diplomacia permanentes, como parte da “regulação da balança europeia”, para definir sob seus termos. Assim, o Estado emerge nesse contexto com esses três nexos: mercantilismo, política interna e exército-diplomacia externa.

O ponto central que conecta sua reflexão sobre o poder anterior e sua reflexão sobre a política nesse curso de 1978-79 está em, ao não ver o Estado a partir das classes sociais, enfatizar o aspecto do que chama de “Estado-polícia”, no sentido de gestão interna de pessoas. É bem remarcado esse aspecto de força e controle do Estado, que está correto, mas por fora das classes todo o intuito seria pensar os indivíduos se voltando contra o aspecto de controle do Estado. Portanto, Foucault vê na fundação de uma nova razão governamental a ruptura com esse aspecto a partir do homo oeconomicus, ou seja, de como a partir do indivíduo e da norma econômica, de seus interesses e seu manejo ambiental, é possível criar uma nova arte de governar.

Esse argumento, desenvolvido longa e historicamente no seu curso, é transladado para o contexto do século XX. Assim, Foucault chega a contrapor essa nova arte de governar (neoliberal) com todas as “invariâncias anti-liberais”, que vão do fascismo e nazismo, passando pelo keynesianismo norteamericano e, nesse mesmo bojo, o socialismo (todas de Estado-polícia). Estudando essas variantes do século XX e suas novas formas de recentralização, são notáveis os aspectos que Foucault destaca. Por um lado, argumenta que a “forma partido” é o que está na base da conformação de Estados totalitários. Para o filósofo, novamente sem distinção entre Itália, Alemanha e URSS, “essa governamentalidade de partido está na origem histórica de algo como os regimes totalitários” 9. E, como segundo elemento no século XX, mesmo o que ele chama de “planificação” (capitalista, acrescentaríamos), que foram os planos econômicos do pós-guerra, são considerados sob a acepção da “planificação”, que não é outra coisa senão a centralização e, portanto, a volta da inflação do Estado.

Aqui, é ilustrativo o recurso de Foucault, sempre mirando de fundo o seu ataque contra o socialismo, condena a forma de organização contemporânea, o partido, e também a planificação; o único elemento que não consegue criticar, nem tenta, é a forma soviética, os conselhos de democracia dos trabalhadores, pois vão essencialmente na contramão de sua tese de que o socialismo é centralização do poder em indivíduos soberanos ou partidos desvinculados das massas – voltaremos a essa ponto no tópico final.

Até aqui, Foucault apresenta-se contra as formas de concentração do poder totalitárias, que ele descreve como fascismo, nazismo e stalinismo, e endossa as críticas à “planificação” keyesiana, partindo da “nova razão” liberal. Mas adentremos agora a sua “explicação” sobre a emergência de uma nova forma de governamentalidade, o neoliberalismo.

O neoliberalismo, à moda Foucault

A análise de Foucault sobre o neoliberalismo, tomando as questões metodológicas e genealógicas colocadas, parece ilustrativa da mudança que opera em seu pensamento a partir de O Nascimento da biopolítica. Não se pode dizer que o autor tome partido explicitamente nesse curso, pelo contrário, ao dissertar sobre a sociedade liberal ele diz: “Acrescento logo que, ao dizer isso, tento não fazer nenhum juízo de valor. Falando de governamentalidade liberal, não quero, com a utilização da palavra ‘liberal’, sacralizar ou valorizar de saída esse tipo de governamentalidade” 10.

Há que se convir que “não fazer juízo de valor” ao tratar do liberalismo ou neoliberalismo é um procedimento de inspiração política questionável sob qualquer ponto de vista para um pensamento de esquerda, mesmo em sentido amplo. Mas esse é o lugar foucaultiano, afinal, o próprio Foucault se compara a um lagostim, por “caminhar de lado” 11 nessas questões de afirmação ou implementação da governamentalidade política. É certo que ele não caminha de lado, mas bate de frente, quando o assunto é qualquer alternativa da “invariância antiliberal”, para usar seus termos, seja ela da extrema-direita à extrema-esquerda, do nazismo, passando pelo keynesianismo, chegando ao socialismo. Andar de lado ao falar do neoliberalismo, mais que uma falta de juízo de valor, revela um humor político-ideológico. Mas para além da especulação política, partamos que o sentido ideológico de sua abordagem Foucault expressa assim:

O liberalismo nos Estados Unidos é toda uma maneira de ser e pensar (…) É por isso que eu creio que o liberalismo americano, atualmente, não se apresenta apenas, não se apresenta tanto como uma alternativa política, multiforme, ambígua, com ancoragem à direita e à esquerda (…) É Hayek, que dizia, há alguns anos: precisamos de um liberalismo que seja um pensamento vivo. O liberalismo sempre deixou por conta dos socialistas o cuidado de fabricar utopias, e foi a essa atividade utópica e utopizante que o socialismo deveu muito do seu vigor e do seu dinamismo histórico. Pois bem, o liberalismo também necessita de utopia. Cabe-nos fazer utopias liberais, cabe-nos pensar no modo do liberalismo, em vez de apresentar o liberalismo como uma alternativa técnica de governo. O liberalismo como estilo geral de pensamento, de análise e de imaginação 12

Sem perder de vista que a citação se inscreve numa fala que busca “explicar” o neoliberalismo norteamericano, no mínimo podemos constatar que as explicações são demasiado generosas e neutras com um fenômeno que, no Chile, no mesmo ano, estava sendo implementado por Pinochet à base da tortura.

Passemos então a compreender os principais aspectos que destaca Foucault do liberalismo e do neoliberalismo. O fundamental de sua análise é destacar a nova racionalidade governamental que surge com o laissez-faire, o liberalismo, e quais são as inovações do novo fenômeno.

Em termos de liberalismo, o autor destaca o aspecto da liberdade no liberalismo

Se utilizo a palavra “liberal”, é, primeiramente, porque essa prática governamental que está se estabelecendo não se contenta em respeitar esta ou aquela liberdade, garantir esta ou aquela liberdade. Mais profundamente, ela é consumidora de liberdade; é consumidora de liberdade na medida em que só pode funcionar se existe efetivamente certo número de liberdades: liberdade de mercado, liberdade de vendedor e comprador, livre exercício do direito de propriedade, liberdade de discussão, eventualmente liberdade de expressão etc. A nova razão governamental necessita portanto de liberdade, a nova razão governamental consome liberdade 13

Esse aspecto da “liberdade” e o peso que tem no interior da análise de Foucault sobre sua apreciação do liberalismo e o neoliberalismo é importante 14. O filósofo não deixava de apontar os efeitos colaterais dentro de sua própria esquemática. Nesse sentido fala da incitação ao perigo e a vigilância (panoptismo) como resultados da própria sociedade liberal 15. Mas os aspectos sociais vão ser colocados em perspectiva para a análise da economia e o peso que essa categoria tem, ligada a ideia de liberdade, no pensamento neoliberal.

Nesse sentido, Foucault se voltará para duas grandes escolas do neoliberalismo: o alemão, chamados ordoneoliberais, e os norteamericanos. E nesse percurso um dos autores que fornecesse um ponto de partida que mescla a reflexão da economia com a sociologia e será tomado pelos neoliberais é Max Weber. Para Foucault, o sociólogo alemão deu um passo e “deslocou o problema” que teria colocado Marx, da lógica contraditória do capital, para “o problema da racionalidade irracional do sistema capitalista” 16.

Seguindo esse raciocínio, o filósofo francês aponta que a Escola de Freiburg, que tem em Walter Eucken um nome representativo, sendo o fundador em 1936 de revista Ordo (periódico central para a formação do pensamento ordoliberal, ou neoliberal alemão), foi parte de oferecer uma alternativa econômica e sociológica para o problema que apresentava Weber. O ponto central é que

não procurarão encontrar, inventar, definir a nova forma de racionalidade social, mas definir, ou redefinir, ou reencontrar, a racionalidade econômica que vai permitir anular a irracionalidade social do capitalismo 17

Os debates no mundo da fantasia neoliberal, dissociados do fenômeno da exploração de uma classe pela outra e do conjunto das opressões a que são submetidos os grupos sociais a partir da espoliação capitalismo, apresentam-se como se “o problema do neoliberalismo seria como regular o problema global do poder político com base em princípios a economia de mercado” 18.

As técnicas econômicas estariam em função de aprimorar o “ambiente” em que o indivíduo pensa e age, seu jogo de “perdas e ganhos”, e todas as análises se colocam em função disso, sendo o indivíduo o centro filosófico. Exemplo da análise da delinquência é expressivo, porque indicaria que a abordagem neoliberal é a primeira que não toma o ato de delinquência em conotação moral (a pessoa é má ou boa), mas apenas como alguém que calculou erroneamente que o delito lhe traria vantagens.

O que tem de fundo nessa concepção é a ideia de que, opondo-se a uma centralização estatal e pensando os mecanismos de regulação da racionalidade econômica, poder-se-ia construir uma nova razão governamental em que a inovação do neoliberalismo seria de passar de uma perspectiva que garanta a liberdade de “troca”, para uma sociedade que garanta a liberdade da empresa, em que cada indivíduo é pensado como capital humano.

É até irônico que na análise neoliberal, apresentada por Foucault, argumentar-se que tal doutrina revela e enfatiza o papel do “trabalho”, que na economia política antiga era desvalorizada e tomada só como “tempo” – na tríade capital, renda, trabalho – e que não se dava ênfase para demais aspectos necessário de investimento na pessoa humana para que ela possa trabalhar. A resolução para essa “valorização” do trabalho é compreendê-lo como “capital humano” (!), compreendendo o indivíduo como investidor de si mesmo, de forma que agora na tríade temos capital, renda e capital humano, o que não sem intenções esconde justamente o ….trabalho.

O fundamental, portanto, seria a intervenção estatal se restringisse a garantir a liberdade das empresas, levando em conta que a compreensão do próprio indivíduo é feita como uma empresa. Nesse sentido:

No neoliberalismo – e ele não esconde, ele proclama isso – também vai-se encontrar uma teoria do homo oeconomicus, mas o homo oeconomicus, aqui, não é em absoluto um parceiro da troca. O homo oeconomicus é um empresário de si mesmo. Essa coisa é tão verdadeira que, praticamente, o objeto de todas as análises que fazem os neoliberais será substituir, a cada instante, o homo oeconomicus parceiro da troca por um homo oeconomicus empresário de si mesmo, sendo ele próprio seu capital, sendo para si mesmo seu produtor, sendo para si mesmo a fonte de [sua] renda 19

“Essa coisa é tão verdadeira” que se tornou uma grande marca do neoliberalismo dos anos 1990 e segue ainda com grande força em seu aspecto ideológico atualmente. Desse ponto de vista a “descrição” de Foucault conseguiu abordar aspectos relevantes que podem resultar em denúncias sobre como o neoliberalismo veio se manifestando, mas devem ser colocadas em perspectiva e inseridas no conjunto da sua obra, para que se compreenda as intenções do autor na sua escrita e, particularmente, para o que queremos trabalhar nessa série, as conexão dessas análises com sua trajetória teórica, de seu método arqueológico, passando por sua genealogia do poder, o encontro com a análise do neoliberalismo e, por fim, o porque seu pensamento nos anos 1980 se voltará a uma “ética do cuidado do si” – uma posição que com a compreensão de sua visão do neoliberalismo se torna menos enigmática.

Crítica ao neoliberalismo: foucaultinismo ou marxismo?

Fizemos um exercício, recorrendo a citações do autor, para mostrar o sentido das explicações de Foucault sobre o neoliberalismo. Não queremos com isso esgotar as possibilidades de interpretação de sua obra, nem obstaculizar acepções críticas que se pode ter, ao voltar o autor contra o neoliberalismo. O que queremos é demonstrar que, ao não perceber a real construção do argumento e seu sentido, as críticas ao neoliberalismo inspiradas em Foucault acabam trazendo uma bagagem política e filosófica avessa ao marxismo para o pensamento progressista e da esquerda, e esvaziam a compreensão histórica e de classe do neoliberalismo. O livro “A nova razão do mundo”, de Pierre Dardot e Laval, é talvez um dos mais expressivos exemplos de retomar a análise foucaultiana, apresentá-la como crítica do neoliberalismo e, a partir daí, mostrar que as análises marxistas são “insuficientes”, o que consideramos a tônica da armadilha teórica atual.

Isso porque a denúncia do foucaultinismo crítico ao neoliberalismo busca encontrar nas noções de modificação ambiental, da racionalidade econômica neoliberal, do capital humano, na governamentalidade biopolítica, da constituição de uma lógica de empresas na sociedade civil e do indivíduo como empresário de si mesmo, como aspectos relevantes para pensar o modus operandi do neoliberalismo e pensar sua crítica.

Muitos pontos interessantes para o debate, mas o problema central desse procedimento é que partindo de uma análise do neoliberalismo que é feita integralmente a partir do indivíduo, da “normatividade” e uma “racionalidade”, por fora das classes sociais e dos fenômenos históricos, frequentemente o que se acredita como crítica do neoliberalismo termina em resoluções igualmente individuais, incorporando de forma oculta o instrumental de Foucault. Esse procedimento, por exemplo, pode dissertar longamente sobre o neoliberalismo em seu sentido de “racionalidade” nos anos 1990 por fora de falar da queda do muro de Berlim, da restauração do capitalismo na Rússia e abertura ao capital da economia chinesa, de processos históricos vitais para a prevalência do neoliberalismo no mundo, o que nos parece no mínimo muito incongruente.

Ao contrário, é preciso compreender o neoliberalismo como um fenômeno histórico, que se constituiu a partir de duras derrotas do mundo do trabalho (daí os já citados Ronald Reagan e Margareth Thatcher, ou Pinochet no caso chileno), com a implementação de uma cartilha de políticas fiscais e monetárias que descarregavam a crise dos anos 1970 e 1980 em cima da classe trabalhadora, implementando uma dura reestruturação produtiva, com terceirização, intensificação, rotatividade, ataque aos sindicatos. Condições que só foram possíveis graças à bancarrota da URSS e a abertura ao capital da economia chinesa, solos férteis para novos processos de acumulação e que geraram certa revitalização dos Estados Unidos em sua hegemonia, e condições favoráveis para a mundialização do capital e da acumulação flexível 20, a era da globalização neoliberal. Isso não exclui de forma alguma a compreensão da dimensão ideológica desse processo, começando pelas poderosas indústrias culturais do capital, a mercantilização das relações humanas, o pragmatismo coach neoliberal, a perpetuação de valores do patriarcado e do racismo. A aqui, como em outros momentos, as ideias dominantes são as ideias das classes dominantes. Separar a racionalidade do padrão de acumulação é parte da análise equivocada de Foucault, e incorporada parcialmente em seus seguidores contemporâneos (superdimensionando os aspectos da “nova razão do mundo”).

Ademais, ao contrário do que argumenta exaustivamente Foucault, as alternativas não são liberalismo de um lado e variantes pró-autoritárias, de gerência estatal e indivíduos soberanos, do outro. O elemento que Foucault sempre escondeu em suas análises foi a perspectiva da “comuna” no marxismo, da democracia de conselhos russa, da auto-organização. É conhecida a ideia de Marx, na Primeira Internacional, de que “a emancipação dos trabalhadores só pode ser obra dos próprios trabalhadores”. Ao contrário de ser a busca de um Estado autoritário, o comunismo para Karl Marx e Friedrich Engels, e igualmente para Vladimir Lenin, Leon Trótski, Rosa Luxemburgo, Antonio Gramsci, com diferentes personalidades teóricas, sempre foi pautado na auto-organização dos trabalhadores ligada a forma partido, com vias de pensar uma revolução social, que enriquecesse a atividade política da sociedade civil (democracia dos trabalhadores) e caminhasse para um movimento de extinção do Estado.

Que empreendimentos stalinistas ou maoístas caminharam em outro sentido é algo que deve ser parte de um balanço estratégico, e existem explicações consistentes sobre isso 21. Mas o recurso de transformar o stalinismo em “socialismo” e criticar o seu autoritarismo é um antigo recurso neoliberal por excelência, e desse ponto de vista a teoria de Michel Foucault não se distingue com um ponto de vista inovador, mas apenas repete com outras categorias essa mesma tônica.

Vale destacar ainda sua desastrosa conclusão de que a base do totalitarismo estaria na forma partido. Eliminar a determinação do capital financeiro na emergência do nazismo e fascismo 22, por um lado, e afastar os trabalhadores e intelectuais da busca da transformação radical a partir de sindicatos e partidos, tem sido outra tônica do neoliberalismo e uma das melhores formas de manter o pensamento crítico isolado, ensimesmado, acadêmico.

Os impactos dessa análise incorreta do neoliberalismo se refletem também no debate sobre as opressões. Uma vez que a força da luta negra, das mulheres e LGBTQIAPN+ tem se expressado em ondas de luta de classes, sobretudo nas décadas de 1960 e 1970, que anteciparam o neoliberalismo, o jogo hegemônico da burguesia foi desviar essas lutas do seu choque com o Estado, direcionando-as ora aos micropoderes (de forma que o colega de trabalho e o patrão são colocados no mesmo plano de potenciais opressores, ainda que o último tenha atrás de si o Estado, a polícia, instituições financeiras e jurídicas); ora focalizando a transformação individual, momento no qual os poderosos fenômenos de identidade negra, da mulher e LGBTs se dissociam da luta de classes e se transformam em modificações internas e psicológicas, perdendo seu caráter histórico, o norte de enfrentamento ao racismo e patriarcado, e se essencializando (mulheres contra homens, negros contra brancos, LGBTs contra héteros). Aqui o recurso foi transformar essas lutas em disputas discursivas, em jogos de narrativas, contra “regimes de verdade”, epistemologias, separando artificialmente a tão importante dimensão cultural, psicológica e linguística das formas de produção e reprodução material da vida, o que também é parte da estratégia de esvaziar o conteúdo dessas lutas. Por isso a arte revolucionária e a cultura subversiva, que é questionadora de pilares do sistema e contra os valores burgueses, também é tão condenada, por ser perigosa (daí tantos ataques a chamada “ideologia de gênero”, à movimentos culturais negros subversivos, à mulher feminista, com conformação de esteriótipos etc).

Ademais, a luta de classes não pode de forma alguma ser negligenciada nos processos de emancipação. Do mesmo modo que o terror dos neoliberais é a organização dos trabalhadores em seus sindicatos e partidos, em perspectiva não só anti-neoliberal, mas anticapitalista, também assombra as classes dominantes a ideia de que processos de identidade negra, da mulher, LGBTs, indígenas, entre outras, sejam tomadas em perspectiva de lutas de classe. Daí que movimentos como o Black Lives Matter (enfrentando a polícia, o aparato estatal), a primavera feminista (que fez de 8 de março uma data de greve geral) e LGBTs na linha de frente do combate, como foi em StoneWall em 1969 e revimos em processos como a luta contra o golpe em Mianmar em 2021 com LGBTs na vanguarda, causem tanto medo.

Desviar a luta dos trabalhadores e setores oprimidos da perspectiva anticapitalista e reconduzi-las a processos de introspecção individual, reformista, inofensivas, em que a chave seria contrapor-se a “racionalidade neoliberal”, tem sido a tônica neoliberal e desgraçadamente, com tinturas críticas, também de uma dada esquerda foucaultiana.

Tendo isso em vista, se coloca a necessidade de superar o ecletismo e recolocar a dialética e o marxismo na ofensiva na luta contra o neoliberalismo internacional (e outras formas de expressão econômica do capital), nesse momento sob efeito de crises econômicas, rebeliões sociais e guerras internacionais. Uma luta que deve, e só pode ser, anticapitalista e socialista.

Notas de Rodapé

1 Michel Foucault. O nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2022. P. 415.
2. Idem, p. 414.
3. Becker, Gary S. “Irrational Behavior and Economic Theory.” Journal of Political Economy, vol. 70, no. 1, 1962, pp. 1–13. JSTOR, http://www.jstor.org/stable/1827018. Accessed 8 Aug. 2024.
4. Michel Foucault. O nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2022. p. 359.
5. Idem.
6. Idem, p. 360.
7. Idem, p. 99. Os grifos são nossos.
8. Idem, p. 250.
9. Idem, 256.
10. Idem, p. 257. Grifo nosso.
11. Idem. p. 101.
12. Idem. p. 293-294.
13. Idem. p. 82 e 83.
14. Ainda que é chocante essa ênfase, afinal, como apontamos, se olhasse para o Sul global poderia ver a implementação do neoliberalismo baseada em ditaduras, e poucos anos depois desse texto veremos Reagan autoritário, em 1981, contra a greve dos controladores de voo e Margareth Thatcher, em 1984, massacrando a greve dos mineiros.
15. Nessas incursões críticas ou exposições do que é o neoliberalismo foi que se fragmentou seu pensamento para criar o foucaultianismo de esquerda. Não estamos entrando no mérito de quão valiosos podem ser os insights revertidos em críticas do neoliberalismo, mas nosso objetivo é mostrar o pensamento integral do filósofo.
16. Idem, p. 140.
17. Idem, p. 141.
18. Idem. p. 177.
19. Idem. p. 303.
20. David Harvey. O neoliberalismo.
21. Uma das principais e mais fundamentadas, tratando-se da URSS, sem dúvida se encontra no livro de León Trótski “A revolução Traída”.
22. Seria como tentar analisar o bolsonarismo por fora do agronegócio no Brasil.

 

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