Revista Casa Marx

Em que sentido podemos dizer que Tarcísio representa um novo malufismo em São Paulo?

Thiago Flamé

A analogia histórica, traçando as identidades e diferenças do momento atual com momentos históricos anteriores, pode nos ajudar a entender o que está em curso hoje e nos preparar para os grandes embates que temos pela frente.

Não é uma surpresa que o governo de extrema-direita de Tarcísio tenha conseguido conquistar uma forte base de apoio no estado. A força da direita em São Paulo se explica pela dinâmica política nacional a partir do golpe de 2016, mas não só. Ela vem de longe. Há quatro décadas, ao mesmo tempo que São Paulo era o pólo mais dinâmico do ascenso operário que ameaçou a ditadura, era também a partir de onde o ex-governador Paulo Maluf articulava a resistência da chamada linha dura militar, se apoiando em torturadores como o paulista Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o herói de Bolsonaro, que comandava o Doi-Codi em São Paulo.

Ao longo dos anos oitenta e noventa o malufismo polarizou a política paulista. Era a representação de um passado sinistro, que insistia em assombrar as novas gerações. Que sua força tenha sido preservada se deve ao caráter pactuado da transição, que desviou a força do ascenso operário e das massas para um pacto político que preservou a ordem capitalista, os interesses imperialistas e a dívida externa, os latifundiários responsáveis por massacres no campo e os assassinos e torturadores da Ditadura Militar.

A semelhança entre o malufismo e o bolsonarismo e com o projeto Tarcísio é profunda e não tem nada de circunstancial. Bolsonaro e Paulo Maluf foram gerados no mesmo ninho de ratos. Também não é uma novidade os pactos de Lula e o PT com esses setores, em prol da manutenção de uma estabilidade política muito ao gosto dos grandes capitalistas, do campo e da cidade. A analogia histórica, traçando as identidades e diferenças do momento atual com momentos históricos anteriores, pode nos ajudar a entender o que está em curso hoje e nos preparar para os grandes embates que temos pela frente.

Paulo Maluf revive no projeto de Tarcísio

O movimento político encabeçado por Paulo Maluf, o dono do grupo Eucatex, líder na fabricação de chapas e fibras de madeira, pode ser resumido em três bordões do ex-governador, que ele não deixava de repetir em alto e bom som. “Rota na rua” ou “bandido bom é bandido morto”, “estupra, mas não mata” e “rouba, mas faz”.

Mais do que frases de efeito, esses três pontos expressam o que Maluf representava para a política paulista e brasileira, como continuidade política da ditadura militar. Paulo Maluf era o prefeito de São Paulo quando foi iniciada a Operação Bandeirantes em 1969 e quando a Rota foi fundada em 1970, como um batalhão especial de combate contra-insurgente, concebendo desde a sua origem o policiamento ostensivo como uma situação de guerra urbana. Ao longo de toda a sua carreira, foi um fiel defensor da polícia militar e da Rota. Nesse quesito a comparação entre Tarcísio e Maluf é direta. Todas as vitórias eleitorais de Maluf e dos seus aliados foram seguidas por operações sanguinárias da Rota e da PM nas periferias, a exemplo da operação de Tarcísio na Baixada Santista. A política de militarização de escolas, de limitação do uso de câmeras nas operações policiais e de fortalecimento da polícia militar repetem e aprofundam o que Maluf defendia.

Paulo Maluf durante a campanha presidencial de 1989, questionado sobre um caso de estupro seguido de assassinato, pronunciou a famosa frase, que reproduzimos literalmente “Tá bom, tá com vontade sexual, estupra, mas não mata”. Frente à enorme repercussão negativa, se arrependeu do que disse e se defendeu, vejam só, dizendo que tiraram sua frase do contexto. Segundo ele, apenas quis dizer que o crime de homicídio é mais grave que o de estupro. A frase pegou mal, mas que décadas depois a extrema direita, da qual Tarcísio faz parte, defende um projeto de lei que pune com mais rigor a mulher que aborta do que um estuprador revela que existe uma visão estrutural sobre o lugar da mulher na sociedade, que aproxima a direita da época da ditadura com o bolsonarismo. Essa concepção ganhou força a partir do golpe institucional de 2016, ao ponto da primeira dama de Temer ter defendido a concepção de “bela, recatada e do lar”. Ou seja, o papel da mulher seria o de mera reprodutora e cuidadora do lar. Se não está dentro de casa, se ousa recusar esse papel de cuidadora, então poderia estar exposta a ser estuprada e, o que fica implícito, seria sua culpa. O próprio Bolsonaro é autor da frase de que Maria do Rosário não “merecia ser estuprada”, por achá-la feia, o que explicita os paralelos horrendos sobre como a extrema direita encara o tema do estupro.

No último tripé do que foi o malufismo, o político do “rouba, mas faz”, é onde mais o bolsonarismo paulista de Tarcísio se diferencia do velho malufismo, apesar dos pontos em comum mesmo neste tema. Essa extrema direita teve seu fortalecimento inicial articulado ao autoritarismo judiciário e à Operação Lava Jato, que se valeu da bandeira anti-corrupção para transformar o regime político contra os pilares de 88, embora agora o STF e o Judiciário se postulem como suposto “fiador da democracia”

No texto “A posição de São Paulo no Brasil da Frente Ampla e o projeto de Tarcísio
dissemos que Tarcísio é um malufismo na ofensiva, voltado para o futuro, enquanto Paulo Maluf representava um resquício do passado, de uma extrema-direita militar que lutava para conservar posições no regime político da Nova República. No regime da Nova República, o PSDB foi o grande partido da burguesia paulista no seu giro neoliberal que na polarização com Lula e o PT nos marcos do pacto de 1988, absorveu a direita malufista mais dura. Mas a Lava Jato e a ofensiva golpista de 2016, que nas suas primeiras fases foi recebida pelo tucanato tradicional como um caminho para voltar ao poder depois de um ciclo de quatro derrotas eleitorais, levaram a uma polarização e uma crise histórica do PSDB. Uma expressão de que frações importantes da burguesia paulista buscavam reabilitar alternativas mais a direita, primeiro promovendo um giro no PSDB com a figura de Dória, depois com a aliança BolsoDória, e agora apoiando Tarcisio.

Um novo malufismo em São Paulo

A ditadura aplicou uma política econômica profundamente estatista. Fortaleceu e criou dezenas de empresas estatais e levou adiante grandes obras de infraestrutura com métodos autoritários, exacerbando ao mesmo tempo a exploração do trabalho. Arrocho salarial, abertura para instalação de grandes multinacionais e investimento estatal pesado, fazendo ao mesmo tempo a dívida pública atingir níveis insustentáveis. A tese da esquerda tributária do desenvolvimentismo caiu por terra com a ditadura. A visão de que a industrialização levaria o Brasil a superar estruturalmente o seu caráter de país atrasado, criando as condições para um estado de bem estar social nos moldes europeus se mostrou totalmente equivocada.

A época do chamado “milagre econômico” – entre 1968 e 1973 – foi também a época de uma industrialização acelerada, de um aprofundamento do caráter dependente e atrasado do estado nacional brasileiro, de grande penetração imperialista e de uma crescente miséria das massas na cidade e no campo, com desvalorização dos salários. As desigualdades regionais também se aprofundaram, e a visão de São Paulo como a locomotiva econômica vem desse momento. O ano de 1970, junto com a criação da Rota, com a liderança consolidada do II exército e do Doi-Codi paulista, através da Operação Bandeirantes financiada por empresários e industriais, foi também o ano em que São Paulo atingiu o pico da sua participação no PIB nacional (40%, chegando a 31% em 2020).

Toda essa estrutura explodiu, como parte da crise política e econômica da ditadura. O novo consenso se forjou em oposição ao estatismo da ditadura e o PSDB se tornou o partido da modernização econômica e da aplicação do chamado Consenso de Washington no Brasil. Tudo isso é uma história, que não podemos desenvolver aqui. O que importa pontuar é que setores burgueses prejudicados pelo consenso neoliberal do governo FHC e do Plano Real (depois do interregno do fracassado governo Collor) também buscaram sobreviver. E Paulo Maluf expressa a sobrevivência das tendências estatistas desses setores. Sua marca registrada na política econômica foram as grandes obras de infraestrutura nas mãos do estado e, junto com elas, a corrupção via superfaturamento das obras. Desde a campanha para governador em 1986, que foi derrotado por Orestes Quércia, assumiu publicamente o bordão. Seu jingle dizia “Orestes fala, Maluf faz”. A fórmula seria repetida nas campanhas vitoriosas para prefeitura em 1992 e na campanha do seu “poste” Celso Pitta.

Nesse quesito Tarcisio se aproxima e se distancia do malufismo. Na campanha estadual de 1998 Paulo Maluf venceu o primeiro turno com um discurso frontal contra as privatizações de FHC e Mario Covas, e a Folha de São Paulo comparava seu discurso ao do PT. Acabou perdendo no segundo turno para o privatista Mário Covas, aliás, apoiado pelo PT (apoio que foi devolvido em 2000, quando o PSDB apoiou Marta Suplicy no segundo turno contra Maluf).

Tarcísio busca também se consolidar como um governador de grandes obras, mas adotando o formato neoliberal, em oposição ao velho estatismo de Paulo Maluf e em se tratando de privatizações avança mais profundamente que o próprio PSDB. Assim podemos dizer que Tarcísio é um novo malufismo, se incorporamos na analogia essa diferença fundamental. Um malufismo ofensivo, voltado ao futuro e não como representação do passado. O aspecto fundamental que dá força a essa extrema-direita institucionlizada – que podemos comparar com o velho malufismo por que toma de Paulo Maluf e dos herdeiros da ditadura a defesa incondicional da Rota e da PM, sua política reacionária contra as mulheres e todos os direitos democráticos, é a ofensiva contra os salários e as conquistas sociais da classe trabalhadora paulista.

A que servem os pactos com a extrema direita institucional?

Recentemente Boulos afirmou que, caso eleito, terá com Tarcísio as mesmas relações institucionais que tem com Lula. As relações “republicanas” que o governo Lula mantém com Tarcisio, assim como Boulos promete que manterá, são parte do processo de estabilização de um regime político pós golpe institucional, onde a extrema direita tem garantido seu lugar no jogo político institucional e sua presença é legitimada pela própria frente ampla sob o pretexto de combater Bolsonaro.

A comparação com o malufismo traz imediatamente à recordação o histórico aperto de mãos entre Lula e Maluf, para selar a aliança eleitoral em torno da candidatura de Haddad para a prefeitura de São Paulo, ainda que sejam situações muito diferentes. Naquele momento se tratava de uma aliança eleitoral direta, de um Maluf em decadência, um sapo a ser engolido – junto com outros como Collor e Sarney – para garantir o apoio do centrão e a governabilidade. Agora, se trata de uma relação mais comparável ao pacto da transição, que resultou em um regime político polarizado entre duas forças que tendiam ao centro, PT e PSDB. Também se trata de uma transição, a direita, de aceitação por parte do PT de toda a obra do golpe institucional, de aplicação de um novo teto de gastos através do arcabouço fiscal e do apoio “republicano” ao Tarcísio e à extrema direita institucional que se fortalece na sua ofensiva contra a classe trabalhadora.

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