Iuri Tonelo
Escrevendo a partir do contexto latinoamericano, só pode ser visto com bons olhos o interesse da juventude em temas como a questão indígena e negra. Reivindica-se outra historiografia, outra forma de pensar o “saber”, referências teóricas do “Sul global”. O que está na raiz disso não é novo e nem é parte apenas de iniciativas individuais: a situação de crise e instabilidade no capitalismo internacional abre espaço para um sentimento anti-imperialista, questionador das potências hegemônicas, e entre outras coisas sua produção cultural, ideológica e mesmo da produção da memória. Diante desse fenômeno progressista de busca de alternativas às formas materiais e culturais do imperialismo, um movimento tem sido feito pela tendência intelectual decolonial: propor um projeto de questionamento à ciência e a epistemologia ocidentais. Aponta-se para alternativas à ciência produzida, às fontes tradicionais de conhecimento, por fora da “colonialidade/modernidade”. Em suma, da lógica de produção de conhecimento eurocêntrica, buscando abrir espaço para a produção dos países periféricos, ou de um pensamento da subalternidade. Indo além, Walter Mignolo, no livro Histórias locais/projetos globais, argumenta a favor dos “saberes subalternos” e de um “pensamento de fronteira” 1. A ideia é atrativa ao primeiro olhar, mas cabe perguntar: o que significam filosoficamente os conceitos de saberes subalternos e pensamento de fronteira e qual o seu significado político? Em outras palavras, mais do que um debate intelectual dos salões acadêmicos, qual a consequência dessas categorias para não só a produção de saberes dos subalternos, mas sua emancipação? Para responder essas questões, adentraremos nos conceitos propostos por Mignolo, desdobraremos suas consequências filosóficas e políticas, e finalmente sua expressão diante dos acontecimentos contemporâneos, particularmente o problema estratégico das frentes amplas. A solução gnosiológica: saberes subalternos e o pensamento de fronteira Partamos de tentar sintetizar o argumento do que aponta de particular essa reflexão de Walter Mignolo. O debate que vai desembocar na ideia de “pensamento de fronteira” e na revalorização dos saberes subalternos certamente tem uma base teórica nas críticas à modernidade realizadas pela primeira fase do pensamento de Foucault, e as reflexões latino-americanas decolonias, que partiram de dialogar com os teóricos do sistema-mundo. Daí que uma categoria fundamental a partir da qual se desdobra a reflexão é a ideia de “colonialidade do poder” de Anibal Quijano (também se poderia pensar a partir da “transmodernidade”, de Enrique Dussel). Já tivemos oportunidade de iniciar esse debate com Quijano, e remarcarmos que essencialmente sua crítica à colonialidade se refere a um sistema de classificação da população do planeta, baseada em linhas demarcatórias geradas pela matriz de poder europeia, que utilizava as definições de cultura, civilização, e todo um arcabouço conceitual, além de instituições (aparato de Estado, igrejas etc) que garantem a supremacia da “universalidade” epistêmica, para reproduzir a invisibilização de outras epistemes, saberes, conhecimentos e culturas. O que Mignolo aponta, a partir disso, é para o que chama de “pensamento de fronteira”, sendo uma das tarefas colocadas a descolonização do pensamento. Dessa forma, “o pensamento liminar [de fronteira], na perspectiva da subalternidade, é uma máquina para a descolonização intelectual, e, portanto, para a descolonização política e econômica” 2. A inovação de Mignolo é que não restaria à proposta apenas uma contraposição formal entre o que é produzido pela epistemologia ocidental e os saberes locais, o ponto de vista dos subalternos. A particularidade da proposta tem um primeiro elemento destacável no sentido de que não assume como sua uma acepção maniqueísta da colonialidade do poder em que tudo da episteme moderna europeia, incluindo toda a produção científica europeia, é dominação e o que está fora é resistência. Uma acepção formalista do pensamento decolonial que nos conduz a um beco sem saída quando pensamos que um dos problemas cruciais da Europa hoje é a situação dos imigrantes, ou que na América Latina vivenciamos fenômenos de extrema-direita como o bolsonarismo e o mileísmo, que estão muito distantes de uma negação da “episteme europeia”, mas são formas radicalizadas de seus maiores problemas. Ou seja, o olhar romântico para o “Sul global” ou unilateral crítico para toda a “ciência e cultura europeia”, por fora das classes sociais e setores oprimidos e opressores, nos dois polos, não deixa de ser uma nova forma de positivismo (que, em geral, termina poupando bastante os Estados Unidos, uma vez que a ênfase da discussão é com a produção intelectual europeia, deixando a maior potência internacional há décadas de fora do centro na reflexão). Dessa forma, Mignolo busca reivindicar os saberes subalternos, mas na seguinte proposta: “Considero o pensamento liminar [de fronteira] na interseção do “bárbaro” e do “civilizado”, à medida que a perspectiva subalterna incorpora e repensa a dupla articulação do saber “bárbaro” e “civilizado”” 3. O ponto central então não seria apreciar as qualidades do pensamento da modernidade ocidental e de povos e etnias do Sul global, que os tornaria objeto de estudo 4. Mas transcender ambos, a partir da perspectiva subalterna, e propor um “outro pensamento”, uma nova gnoseologia, que ele chama de pensamento de fronteira. Como partimos na introdução, a proposta, tomada em termos gerais e abstratos, tem grande poder de atratividade, na medida em que os aspectos da colonização europeia e o americanismo permeiam o debate acadêmico e cultural no país, inviabilizando muitas vezes a reflexão sobre a cultura popular, expressões culturais de diversidade étnica, ou pensamentos que fujam do esquematismo acadêmico das potências. No caso brasileiro, o racismo contra a população negra, a pouca reflexão sobre a história da África, pouca evidência de intelectuais negros na academia e também das tradições indígenas, alimentam a necessidade de pensar o problema das heranças da colonização. A questão é que as consequências dessa forma gnosiológica não está sempre dita, e é preciso ter claro que existe uma proposta filosófica e teórica por trás desse pensamento, e uma consequência política. Como em outros casos, é na práxis que reconhecemos a realidade de um dado pensamento, e do pensamento de fronteira não poderia ser diferente. Da arqueologia dos saberes a “nova lógica” É um gesto honesto admitir que a noção de “saber” tal como é largamente utilizada por críticos do eurocentrismo não tem uma…
Escrevendo a partir do contexto latinoamericano, só pode ser visto com bons olhos o interesse da juventude em temas como a questão indígena e negra. Reivindica-se outra historiografia, outra forma de pensar o “saber”, referências teóricas do “Sul global”. O que está na raiz disso não é novo e nem é parte apenas de iniciativas individuais: a situação de crise e instabilidade no capitalismo internacional abre espaço para um sentimento anti-imperialista, questionador das potências hegemônicas, e entre outras coisas sua produção cultural, ideológica e mesmo da produção da memória.
Diante desse fenômeno progressista de busca de alternativas às formas materiais e culturais do imperialismo, um movimento tem sido feito pela tendência intelectual decolonial: propor um projeto de questionamento à ciência e a epistemologia ocidentais. Aponta-se para alternativas à ciência produzida, às fontes tradicionais de conhecimento, por fora da “colonialidade/modernidade”. Em suma, da lógica de produção de conhecimento eurocêntrica, buscando abrir espaço para a produção dos países periféricos, ou de um pensamento da subalternidade. Indo além, Walter Mignolo, no livro Histórias locais/projetos globais, argumenta a favor dos “saberes subalternos” e de um “pensamento de fronteira” 1.
A ideia é atrativa ao primeiro olhar, mas cabe perguntar: o que significam filosoficamente os conceitos de saberes subalternos e pensamento de fronteira e qual o seu significado político? Em outras palavras, mais do que um debate intelectual dos salões acadêmicos, qual a consequência dessas categorias para não só a produção de saberes dos subalternos, mas sua emancipação?
Para responder essas questões, adentraremos nos conceitos propostos por Mignolo, desdobraremos suas consequências filosóficas e políticas, e finalmente sua expressão diante dos acontecimentos contemporâneos, particularmente o problema estratégico das frentes amplas.
A solução gnosiológica: saberes subalternos e o pensamento de fronteira
Partamos de tentar sintetizar o argumento do que aponta de particular essa reflexão de Walter Mignolo. O debate que vai desembocar na ideia de “pensamento de fronteira” e na revalorização dos saberes subalternos certamente tem uma base teórica nas críticas à modernidade realizadas pela primeira fase do pensamento de Foucault, e as reflexões latino-americanas decolonias, que partiram de dialogar com os teóricos do sistema-mundo. Daí que uma categoria fundamental a partir da qual se desdobra a reflexão é a ideia de “colonialidade do poder” de Anibal Quijano (também se poderia pensar a partir da “transmodernidade”, de Enrique Dussel).
Já tivemos oportunidade de iniciar esse debate com Quijano, e remarcarmos que essencialmente sua crítica à colonialidade se refere a um sistema de classificação da população do planeta, baseada em linhas demarcatórias geradas pela matriz de poder europeia, que utilizava as definições de cultura, civilização, e todo um arcabouço conceitual, além de instituições (aparato de Estado, igrejas etc) que garantem a supremacia da “universalidade” epistêmica, para reproduzir a invisibilização de outras epistemes, saberes, conhecimentos e culturas.
O que Mignolo aponta, a partir disso, é para o que chama de “pensamento de fronteira”, sendo uma das tarefas colocadas a descolonização do pensamento. Dessa forma, “o pensamento liminar [de fronteira], na perspectiva da subalternidade, é uma máquina para a descolonização intelectual, e, portanto, para a descolonização política e econômica” 2. A inovação de Mignolo é que não restaria à proposta apenas uma contraposição formal entre o que é produzido pela epistemologia ocidental e os saberes locais, o ponto de vista dos subalternos.
A particularidade da proposta tem um primeiro elemento destacável no sentido de que não assume como sua uma acepção maniqueísta da colonialidade do poder em que tudo da episteme moderna europeia, incluindo toda a produção científica europeia, é dominação e o que está fora é resistência. Uma acepção formalista do pensamento decolonial que nos conduz a um beco sem saída quando pensamos que um dos problemas cruciais da Europa hoje é a situação dos imigrantes, ou que na América Latina vivenciamos fenômenos de extrema-direita como o bolsonarismo e o mileísmo, que estão muito distantes de uma negação da “episteme europeia”, mas são formas radicalizadas de seus maiores problemas. Ou seja, o olhar romântico para o “Sul global” ou unilateral crítico para toda a “ciência e cultura europeia”, por fora das classes sociais e setores oprimidos e opressores, nos dois polos, não deixa de ser uma nova forma de positivismo (que, em geral, termina poupando bastante os Estados Unidos, uma vez que a ênfase da discussão é com a produção intelectual europeia, deixando a maior potência internacional há décadas de fora do centro na reflexão).
Dessa forma, Mignolo busca reivindicar os saberes subalternos, mas na seguinte proposta: “Considero o pensamento liminar [de fronteira] na interseção do “bárbaro” e do “civilizado”, à medida que a perspectiva subalterna incorpora e repensa a dupla articulação do saber “bárbaro” e “civilizado”” 3. O ponto central então não seria apreciar as qualidades do pensamento da modernidade ocidental e de povos e etnias do Sul global, que os tornaria objeto de estudo 4. Mas transcender ambos, a partir da perspectiva subalterna, e propor um “outro pensamento”, uma nova gnoseologia, que ele chama de pensamento de fronteira.
Como partimos na introdução, a proposta, tomada em termos gerais e abstratos, tem grande poder de atratividade, na medida em que os aspectos da colonização europeia e o americanismo permeiam o debate acadêmico e cultural no país, inviabilizando muitas vezes a reflexão sobre a cultura popular, expressões culturais de diversidade étnica, ou pensamentos que fujam do esquematismo acadêmico das potências. No caso brasileiro, o racismo contra a população negra, a pouca reflexão sobre a história da África, pouca evidência de intelectuais negros na academia e também das tradições indígenas, alimentam a necessidade de pensar o problema das heranças da colonização.
A questão é que as consequências dessa forma gnosiológica não está sempre dita, e é preciso ter claro que existe uma proposta filosófica e teórica por trás desse pensamento, e uma consequência política. Como em outros casos, é na práxis que reconhecemos a realidade de um dado pensamento, e do pensamento de fronteira não poderia ser diferente.
Da arqueologia dos saberes a “nova lógica”
É um gesto honesto admitir que a noção de “saber” tal como é largamente utilizada por críticos do eurocentrismo não tem uma origem exterior à própria Europa, ao menos como aparece no pensamento decolonial. A crítica da primeira fase do filósofo francês Michel Foucault à modernidade está na origem desse conceito. Em “As palavras e as coisas” 5 o filósofo aponta as bases para o que seria a sua crítica à modernidade e desenvolve nas obras posteriores o problema do “verdadeiro” e “falso” como uma das bases da ciência e que é utilizada para a criação do que chama de “regimes de verdade” e, portanto, de discursos de poder 6. Contrapondo-se aos “universalismos” da ciência, Foucault propõe uma genealogia, em que a noção de “saber” ganha proeminência. Daí o exercício genealógico de uma arqueologia dos saberes 7. Dialogando diretamente com essas elaborações, Walter Mignolo cita a aula inaugural de Foucault no Collège de France, em que Foucault fala da “insurreição dos saberes subjugados” 8 – efetivamente uma noção muito próxima do conceito de saber subalterno.
O próprio autor argentino esclarece que, com uma noção distinta a que ele mesmo usa, um dos referenciais da introdução do conceito de “subalternidade” foi Antonio Gramsci 9 – ainda que o marxista sardo o utilize pensando nas relações de classe. Tendo em vista esses referenciais (e naturalmente outras fontes, do Sul global), Mignolo esclarece que não pode aderir aos desdobramentos tipicamente pós-modernos que na sua rejeição à modernidade terminam na unilateral “desconstrução”, na criação de uma “nova narrativa” (ou a crítica da metanarrativa europeia), uma vez que parte da emergência do capitalismo e seus efeitos na América Latina, o problema do racismo, incluindo a formação das suas bases epistêmicas, e também de conceitos e categorias que têm expressão na crítica europeia. Isso para inicialmente compreendermos o conceito de “saber subalterno” em sua historicidade, não como uma forma romântica, uma “pureza” anti-europeia, como lhe vem sendo atribuído.
O ponto é que, mesmo não apontando inicialmente para o caminho da pós-modernidade, na sua proposta de pensamento de fronteira Mignolo dá certa sequência a base filosófica focaultiana, quando afirma o seguinte:
Estou agora introduzindo a noção de ’pensamento liminar’ com a intenção de transcender a hermenêutica e a epistemologia, bem como a distinção correspondente entre aquele que conhece e aquele que é conhecido, na epistemologia da segunda modernidade. O problema não é descrever na ’realidade’ os dois lados da fronteira. O problema é fazê-lo a partir de sua exterioridade (no sentido de Levinas). O objetivo é apagar a distinção entre o sujeito que conhece e o objeto que é conhecido, entre um objeto ’híbrido’ (o limite como aquilo que é conhecido) e um ’puro’ sujeito disciplinar ou interdisciplinar (o conhecedor) não contaminado pelas questões liminares que descreve. Para mudar os termos do diálogo, é necessário ultrapassar, por um lado, a distinção entre sujeito e objeto, e, por outro, entre epistemologia e hermenêutica. O pensamento liminar visa ser o espaço no qual se elabore essa nova lógica 10
Se “eu sou o que penso”, como diz um dos capítulos do livro, a grande questão para “outro pensamento”, um pensamento de fronteira, é uma nova lógica.
E aqui chegamos em um ponto fundamental do debate. Superar a distinção sujeito e objeto, a despeito de toda a pompa de vanguarda da reflexão, não é uma proposta nova, mas data de ao menos centenas de anos e tem o idealismo europeu como sua base filosófica, em que a “superação” se dá pela via de “outro pensamento”, portanto, com predominância deste em relação à matéria e à práxis.
O resultado é uma busca por “soluções gnosiológicas” que terminam, ao contrário do que anunciavam, sendo estritamente acadêmicas e, por outro lado, adaptadas ao atual estado de coisas. Isso se evidencia no quanto a crítica decolonial se dissocia, na prática, de problemas gritantes da colonização contemporânea. Basta ver o quanto a noção de “genealogia de saberes” ou “mudanças de narrativas” dos europeus Foucault e Lyotard são conceitos cotidianos e preocupações fundamentais contra a epistemologia europeia, mas um genocídio a céu aberto na Palestina, uma das políticas imperialistas mais colonizadoras e brutais do último período, mobiliza muito pouco ou quase nada, seja nas discussões acadêmicas, e menos ainda em ações políticas 11.
O problema é que a “nova lógica” se advoga não no contexto da “razão europeia”, mas da cada vez mais evidente irracionalidade do capitalismo, e daí finalmente a pergunta, mas qual a proposta política?
O contexto de guerras e genocídios: frentes amplas e multipolaridade do capital?
A questão Palestina é uma pedra de toque hoje, mas não é a única e evidencia o problema da solução gnosiológica. Estamos caminhando para um mundo com tendências militares cada vez mais intensas, que amplificam a desigualdade econômica e social, com dados de fome e miséria aterrorizantes, e para os que estão trabalhando, vemos práticas de exploração que retomam os primórdios do capitalismo. E não apenas com a dimensão humana e ameaça de novas guerras, a postura predatória do capitalismo se evidencia como nunca diante das catástrofes ambientais e do aquecimento global. Todos os conhecimentos alternativos, “saberes subalternos”, cosmovisões que questionem essa lógica do “povo branco da mercadoria”, como argumenta o yanomami Davi Kopenawa, devem ser colocados em evidência e enriquecer o debate. O mesmo os aspectos da cultura popular, sobretudo a cultura negra no caso brasileiro, tão rica e fonte de história de resistência e luta. O que não corresponde é imaginar uma solução alternativa, de “bolha” utópica epistemológica, enquanto comunidades indígenas, como as brasileiras, estão sendo exterminadas pelo agronegócio, que não têm a seu favor apenas uma epistemologia europeia, mas metralhadoras “alemãs ou de Israel” para praticar genocídios nas terras indígenas, o mesmo que ocorre em outras partes do Sul global.
E esse limite da “solução gnosiológica” se liga com a ideia dos novos movimentos sociais durante o período do auge do neoliberalismo. Claro, é necessário contextualizar a obra que elegemos tratar nessa elaboração, escrita em 1999 (mas com persistente influência conceitual, não por acaso relançada em português nos últimos anos). Naquele contexto, o que apareceu como “pensamento de fronteira” para o autor em sua expressão política foi o zapatismo. Segundo Mignolo,
“o ’zapatismo’, no México, definiu um espaço que transcende tanto o indigenismo quanto o indianismo. Esse espaço novo, que alhures chamei de ’revolução teórica zapatista’ (…) assinala uma realização e também o nascimento do pensamento liminar: um espaço novo saído de uma dupla tradução, a tradução do marxismo para a cosmologia ameríndia e da ameríndia para a cosmologia marxista, envolvendo no processo intelectuais tanto ameríndios quanto crioulos urbanos.”
Apesar de sua menor relevância nos dias atuais, é chamativo que Mignolo depois de toda sua análise e crítica das epistemologias trate como o exemplo prático do nascimento do pensamento de fronteira o que ele chamou de “revolução zapatista”. O que permanece metodologicamente nessa afirmação é o que John Hollaway expressou muito bem com o título do seu livro, a ideia de “mudar o mundo sem tomar o poder”. Trata-se de pensar a ideia de criação de zonas autônomas, em que tal como as experiências do socialismo utópico do século XIX, se desenvolveriam as experiências em sentido alternativo ao capitalismo, abrindo mão de enfrentar o Estado por compreender que ele não concentra o poder, restando uma “guerra de baixa intensidade” para contar a ação repressiva estatal nas fronteiras dos territórios autônomos – daí a ideia de mudar o mundo sem tomar o poder.
Em formas mais institucionais vemos experiências internacionais que apontam também nesse sentido estratégico, embora de formas diferentes. Fala-se em novos movimentos sociais, ONGs, vivências, comunidades etc, e tem em comum o abandono ao enfrentamento do poder de Estado. Ou alternativas populistas, como vemos no caso brasileiro, que combinam o engajamento acadêmico com um “apelo à periferia”, mas que por fora de um projeto de transformação anticapitalista, terminam muitas vezes em soluções individuais ou acadêmicas de crítica epistemológica combinadas com propostas de “empreendedorismos” alternativos e políticas públicas por dentro dos limites da institucionalidade.
O problema crucial é que pensar em comunas agrárias e indígenas, os espaços periféricos, com conhecimentos subalternos, por fora de ter como norte estratégico enfrentar o Estado e o imperialismo – o que se pode se dar a partir das grandes concentrações do proletariado internacional junto a demais setores oprimidos – termina ou adaptando-se à alternativas reformistas, ou fechando os olhos para os perigos da guerra mundial, novos genocídios, colonizações e outros processos. A ilusão de uma “zona autônoma” ou um espaço de vivência em paralelo às atrocidades internacionais que ameaçam distintos povos e etnias, não passam de ilusões, e não resistem ao teste dos grandes processos, como o genocídio da Palestina.
O problema se complexifica na medida em que essas formulações de Mignolo, escritas em um contexto do movimento anticapitalista “No global”, parecem ultracríticas se comparadas às manifestações atuais do autor. Também para ele, depois do advento da extrema-direita, tudo está permitido na filosofia e na política. Permitam-nos exemplificar com duas citações do autor sobre o segundo turno na Argentina, que considero emblemáticas de para onde pode ir o “pensamento de fronteira”. Primeiro, em suas bases filosóficas, descarrila completamente para a pós-modernidade, ao argumentar que “A situação local na Argentina não é nem pode ser isolada, quer se insista nisso ou não, das duas macro-narrativas concorrentes no mundo” 12. Divide a situação mundial e seus problemas entre duas grandes “narrativas”. E quais seriam elas? Eis que Mignolo argumenta a partir da situação argentina:
O grito de mudança é um lugar-comum nos discursos de Juntos por el Cambio e La Libertad Avanza. A mudança interna que clamam é contrária à mudança irreversível e imparável da ordem mundial: o conservadorismo unipolar defende os privilégios conquistados durante 500 anos de expansão ocidental, esforçando-se por conter a criatividade e a inventividade multipolar. Em contrapartida, o projeto da Unión por la Patria marcha ao ritmo de um reformismo multipolar em mutação: um governo de coparticipação já não é um governo de uma ideologia, mas de um pragmatismo que altera a ideologização da fratura [polarização] que resultou dos governos anteriores e da promoção do ódio difundido pela direita.
Parece difícil acreditar que depois de uma “crítica incisiva” à epistemologia ocidental Mignolo termine reivindicando o projeto de Sérgio Massa por não ser um governo de uma ideologia, mas de uma pragmática que altera a ideologização de polarização – quando se está enfrentando ninguém menos que Javier Milei (!). Mas o próprio projeto reivindicado, a proposta não poderia ser mais institucional e inofensiva, quando compreendemos que o pensamento de fronteira se tornou a defesa de uma “macro-narrativa” como parte de um governo de “unidade nacional” (!), pragmática da anti-polatização e multipolaridade capitalista internacional
Sergio Massa propõe um governo de unidade nacional e de assiciação com a multipolaridade. Beneficia do fato de a Argentina pertencer aos BRICS+ e de partilhar destinos com Lula da Silva, Presidente do Brasil e cofundador dos BRICS. De fato, um governo Massa (também devido às suas recentes viagens e relações com Pequim) prosseguiria um projeto nacional de futuro partilhado paralelo à proposta da China de construir a comunidade global de futuro partilhado.
Assim, em países com frente ampla como o Brasil ou Argentina, têm se evidenciado onde termina a discussão. Extraem toda a crítica à episteme europeia para afastar-se das possibilidades da revolução social anticapitalista e do proletariado como sujeito (buscando sempre um novo sujeito ou movimento) como seu foco de combate acadêmico, e combinam isso, no contexto de enfrentamento à extrema-direita, com certo entusiasmo com as frentes amplas e formas de fazer política que primordiais do “padrão europeu” que supostamente criticam, com um verniz de “multipolaridade” – aliás, de subordinação a China, que pesquisas recentes tem apontado uma penetração de capital no continente africano, reproduzindo métodos ocidentais capitalistas de brutal opressão e exploração da população em exemplos como caso da prospecção de petróleo na Nigéria, de cobre no Congo e ou ainda a extração de lítio no Zimbábue 13. Ao assumir esse caminho, a crítica decolonial se mantém incontestavelmente nos limites da institucionalidade burguesa, faz o jogo do que parecia combater.
O ponto fundamental, portanto, é que ao não tratar as práticas imperialistas e coloniais como fenômeno histórico, mas epistêmico, necessariamente diante das questões práticas terminaram em formas de incongruência teórica e política. Assim, em diferentes contextos, pode se reatualizar a busca de novos movimentos sociais, com resoluções “utópicas” no sentido crítico que Marx e Engels deram, por pensarem espaços, lugares, vivências, cooperativas, em que se exercita o “novo pensamento de fronteira” e “saberes subalternos”, combinando com a busca de uma “nova episteme acadêmica” (mantendo as bases das estruturas de poder na universidade, em um momento em que o movimento estudantil se levanta no mundo para questionar por que o conhecimento efetivamente serve ao genocídio de Israel contra a Palestina).
Esse caso, das mobilizações internacionais dos estudantes, mostra como a luta de classes e o marxismo apontam um caminho concreto de enfrentamento anticolonial, na medida em que uma das demandas internacionais do movimento era a ruptura em todas as universidades que estavam dos acordos universitários com o Estado de Israel, uma demanda concreta contra um genocídio, com efeitos práticos na vida de pessoas que estão sendo expulsas de suas casas a base de bombas. Na classe trabalhadora, por exemplo, os portuários em distintos países do mundo se recusaram a fazer carregamentos de armas para envio para Israel, um pequeno, mas significativo exemplo que a classe trabalhadora, junto a estudantes, negros, indígenas, LGBTs+, povos indígenas e demais setores oprimidos, podem oferecer uma verdadeira alternativa as práticas coloniais e imperialistas.
Tendo isso em vista, a crítica de Marx em suas Teses sobre Feuerbach continua incontornável. Não se trata de reinterpretar o mundo, mas de transformá-lo. E, portanto, não se trata de criticar as bases epistemológicas da Europa apenas, mas estar na linha de frente, como faz o marxismo revolucionário, de todas as lutas a serviço dos setores oprimidos, apoiando ativamente e internacionalmente agora a luta contra o genocídio do povo palestino, e tendo como estratégia derrubar não apenas as bases ideológicas (ou epistêmicas), mas o conjunto do edifício desse sistema do capital, de suas potências, formas de acumulação, colonização, exploração, opressão.
Notas de Rodapé