Juliana Begiato
Ana Clara Vaz
A Unicamp sediou, no último mês, o Festival de Ideias, iniciativa da Progressive International (Internacional Progressista), da publicação Phenomenal World e do grupo de pesquisa Transforma - Unicamp, organizado pelo Instituto de Economia da Unicamp, em parceria com o IFCH e com a reitoria. O evento contou com nomes da administração do Estado capitalista e do reformismo mundial, com diversos representantes do governo de Lula-Alckmin e da frente ampla brasileira, e com quadros da intelectualidade neorreformista, muitos deles formados na Unicamp. Queremos neste texto debater o que o evento expressa para a Unicamp, ou seja, como a universidade se propõe a ser a vitrine intelectual da frente ampla, e qual é o projeto de universidade que nós, comunistas, reivindicamos em contraposição ao que o evento discutiu nos dias de junho deste ano.
As frentes amplas mundiais procurando como reformar o capitalismo
O evento foi aberto por uma mesa que contou com o reitor da Unicamp, Tom Zé, e recebeu ao decorrer da programação figuras do governo de Lula-Alckmin, como a presidenta do PT Gleisi Hoffmann, várias representações do reformismo latino-americano e internacional, como a presidente da Câmara e do Partido Comunista chileno, Karol Cariola. Segundo o professor do Instituto de Economia (IE), organizador do evento e pesquisador líder do Transforma-Unicamp, Pedro Linhares Rossi, o objetivo do Festival era “promover um grande debate em torno da necessidade de transformação do mundo contemporâneo em suas várias dimensões, com uma perspectiva progressista”.
Logo na abertura do evento, Andreia Galvão, diretora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, explicita que o debate vai no sentido de “compreender e transformar o capitalismo”. E é nesse sentido que todo o evento se desenvolveu, quais são as ações do governo federal do Brasil em primeiro lugar, mas dos governos reformistas do mundo todo, à procura de uma suposta “melhoria na ordem capitalista mundial”. Na mesa de abertura do Festival, Célio Hiratuka, diretor do Instituto de Economia, coloca que neste evento se propõem a discutir o novo contexto mundial que se abre, o qual nas palavras dele é de “conflitos, polarização e multipolaridade”.
Em um cenário internacional cada vez mais convulsivo, com a decadência da hegemonia norte-americana e a ascensão da China, com crescentes traços imperialistas, ainda que esta não consiga ainda fazer frente ao papel dos Estados Unidos na ordem mundial, a multipolaridade aparece como alternativa aos participantes do evento. Isso significa que a revitalização da tendência da época imperialista demonstra a crise na hegemonia norte-americana que é testada em terreno econômico pela China e em terreno militar pela Rússia, marcada pela reacionária guerra da Ucrânia onde a OTAN sustenta o regime de Zelensky, enquanto ideologicamente vemos a máscara de “maior democracia do mundo” começando a ruir com os levantes internacionais da juventude pró-palestina, iniciado no coração do imperialismo e questionando a representação deste no massacre em curso na Palestina. Ao mesmo tempo, o projeto chinês, ancorado em altas taxas de exploração da classe trabalhadora do Leste Asiático, vem buscando escancarar essa decadência norte-americana. Por trás da disputa entre China e EUA, o que há é o colapso do período da restauração burguesa, marcado pela restauração capitalista no bloco soviético e pela ascensão do neoliberalismo em um período com ausência de revoluções, e a reatualização desta etapa imperialista de crises, guerras e revoluções, como desenvolve Lênin, em que as consequências da crise de 2008 ainda repercutem e levam a um acirramento da competição entre o imperialismo militar, econômico e geopolítico dos EUA, as tendências imperialistas crescentes da China, e a espécie de imperialismo militar russo. Assim, a China vem se alçando cada vez mais no cenário internacional com sua capacidade de estabelecer acordos financeiros e comerciais em troca do saque imperialista de matérias-primas, e suas trocas de créditos por direito de explorar bens naturais na África e América Latina e com incipiente capacidade de interferência nas decisões internas de países da periferia do capitalismo. No Brasil, os investimentos chineses vêm aumentando suas cifras, em detrimento dos capitais europeus e estadunidenses, configurando o país em um terreno mais aberto à disputa entre potências.
Seguindo a linha do governo Lula-Alckmin de multilateralidade benigna, a tese é de que a multipolaridade é uma resolução benéfica e próspera aos conflitos na arena internacional, através da qual o Brasil e o chamado Sul global poderiam extrair a melhor negociação com ambos os adversários, EUA e China, sem romper com ninguém, mas favorecendo uma ordem mundial alternativa, com potências que desafiem a hegemonia norte-americana. Essa saída, na realidade, consiste na defesa de uma dupla dependência, uma vez que propõe a submissão à potência imperialista dos EUA e ao seu adversário estratégico, a China, para repartição do esbulho colonial entre esses países. Na prática, a localização que defendem para o Brasil na arena internacional, por meio da diplomacia entre Estados e acordos geopolíticos, demonstra sua falência no genocídio em curso na Palestina. Como dito por Galvão, há um contexto marcado por guerras e genocídios. Entretanto, no evento, o tema da Palestina soou secundário, já que a saída advogada pela Frente Ampla, pela via da diplomacia entre os Estados e a intervenção de organismos imperialistas como a ONU aparece cada dia menos factível, enquanto o Brasil sustenta suas relações com Israel.
Essa contradição se escancarou diante de uma ação do Comitê de Estudantes em Solidariedade ao Povo Palestino, que nós da Faísca Revolucionária fomos parte de impulsionar. Além de o evento ocorrer em uma universidade onde estudantes que se colocaram contra a propaganda de Israel pela via da Feira Israelense são punidos, o Comitê apresentou uma faixa que denunciava: “15 mil crianças mortas em Gaza, Lula e Unicamp mantêm relações com Israel. Rompimento das relações já!”. Gleisi Hoffman respondeu “Netanyahu tinha que ser julgado por um tribunal internacional e condenado à prisão perpétua”. A quase um ano do início da ofensiva israelense, com cenas bárbaras televisionadas contra o povo palestino, o evento comprovou mais uma vez que essa intelectualidade e seus políticos não podem dar uma saída ao genocídio em curso. Isso porque as vias de negociação entre os Estados escondem a sustentação que os Estados Unidos e o imperialismo europeu dão a Israel, e que todas as soluções “diplomáticas” dos supostos defensores do povo palestino não só falharam, como também, no caso do Brasil, discursos de Lula encobrem a sustentação às relações do país com Israel, mantidas intocadas.
Evidentemente, uma chamada “internacional progressista” deveria ter como pauta número um o debate sobre como internacionalmente não só expressaremos solidariedade, mas também lutaremos pelo rompimento de todas as relações com Israel, dos governos de todos os países, e da própria Unicamp, que mantém relações sigilosas com a Technion e com demais universidades israelenses.
Frentes Amplas combatem a extrema direita?
Durante todo o Festival, as falas apontavam o crescimento do suposto fascismo e da extrema direita como principal inimigo de nosso tempo e a tarefa de defesa da democracia como histórica. O discurso é colocado numa chave de contrapor “o avanço do fascismo” e a “defesa da democracia”, como apontado por Paula Coradi, presidente do PSOL, que começa sustentando que a grande batalha de nosso tempo é o enfrentamento à extrema direita e termina chamando voto na chapa Boulos-Marta como forma de retomar a esperança. Esta fala mostra bem qual tem sido a estratégia dos reformistas para combater o avanço da extrema-direita a nível internacional: canalizar o combate à extrema direita para as urnas, através da conformação de frentes amplas com a burguesia e com setores da própria direita. É o que estamos analisando nestas eleições municipais. Já o reitor Tom Zé defende que é preciso criar maiorias transformadoras que sejam capazes de dar um “sentido civilizatório” para as forças produtivas, de modo a conter a influência da extrema direita, e diz, ainda, que a Unicamp tem essa tradição e que em sua gestão conseguiu criar uma maioria transformadora. Ao propor a criação de maiorias transformadoras, o que Tom Zé se refere é à reprodução da Frente Ampla na Unicamp, que precisou calar os estudantes que escancararam a contradição da universidade que faz parcerias com o estado assassino de Israel (nenhuma referência “civilizatória” para o mundo) perseguindo estudantes, assim como precisou calar as trabalhadoras terceirizadas, perseguindo aquelas que fizeram greve e denunciaram os absurdos trabalhistas que estão acontecendo na universidade e que a reitoria tem conivência.
Já Gleisi Hoffmann, presidente do PT, inicia sua fala dizendo que vivemos em um momento de ameaça da extrema direita, fazendo comparações com o nazifascismo e dizendo que temos que ajudar “nossos irmãos [demais países da América Latina] a eleger um governo progressista novamente”. Alberto Gárzon, do Conselho da Internacional Progressista e ex-ministro do consumo na Espanha, diz que existe uma ameaça mundial contra a democracia. Érika Hilton, do PSOL, também abre sua fala dizendo que temos que estar atentos às movimentações da extrema direita e que a nossa agenda deve ser a defesa da democracia e das instituições.
Em primeiro lugar, concordamos que é tarefa de grande importância combater a extrema direita que vem avançando, como vimos nas eleições parlamentares na Europa, com Milei no governo argentino, com Tarcísio em São Paulo e com uma eleição nos EUA por vir, em que Trump mais uma vez se alça como um dos principais candidatos, ao passo que Kamala Harris genocida escancara que não é nenhuma alternativa, com sua política anti-imigrante e apertando as mãos de Netanyahu, representante da barbárie sionista e da extrema direita internacional. Evidentemente, é tarefa fundamental se enfrentar com esses setores que passam vários ataques à classe trabalhadora, aos negros, às mulheres, aos imigrantes, e que não titubeiam em liberar nossas florestas pro agronegócio e para mineradoras, aumentando a possibilidade de crises climáticas como a do Rio Grande do Sul. No entanto, as Frentes Amplas vêm provando que fazem justamente o contrário, abrindo espaço à extrema direita. Esses setores se valem da tese de que qualquer fenômeno de extrema direita é fascista para advogar pelo “mal menor”, enquanto isso cumpre o papel também de tirar do horizonte a possibilidade inscrita nas tendências atuais de cenários mais agudos da luta de classes que de fato impulsionem a emergência de variantes fascistas, cujo centro, ainda não visto até aqui, seria a utilização de métodos de “guerra civil” contra os setores em luta. Isto é, a definição de fascismo termina despreparando a intelectualidade e os lutadores de hoje para momentos mais agudos de enfrentamento entre revolução e contrarrevolução, em nome de uma estratégia estritamente institucional que não é capaz de enfrentar a extrema direita de hoje.
Durante todo o evento se tem um saudosismo quase que melancólico com os primeiros anos de governo Lula no Brasil e o que eram os governos progressistas do mundo naquele momento. Se por um lado se relembra bastante da extrema direita de Bolsonaro, pouco se diz sobre as transformações nacionais e internacionais que dos anos 2000 para cá estão em curso, e que impossibilitam uma política econômica à la Lula 2002. A própria Gleisi Hoffmann, presidente do PT, admite no evento, que a política econômica e os planos de ajustes abrem espaço para a extrema direita, quando diz: ”é a economia que faz diferença essencialmente para que a extrema direita esteja crescendo, é o neoliberalismo, é a retirada de direitos das pessoas, são os retrocessos que nós estamos vivendo, esses planos de contenção”. Ou seja, a conciliação de classes que tenta equilibrar uma política de ajustes neoliberais – como é o Arcabouço Fiscal – e tímidaa políticas sociais, mas que não encontra mais a mesma base para isso visto que hoje estamos falando de um lulismo senil, sem a base do ciclo econômico excepcional dos anos 2000. Recentemente, Lula anunciou novos cortes para garantir a responsabilidade fiscal, atacando áreas como a Saúde e a Educação. Além disso, mantém de pé o legado do golpe de 2016, a Reforma Trabalhista, a Reforma da Previdência e, agora, tendo terminado de aprovar a Reforma do Ensino Médio. O Arcabouço Fiscal é a continuidade do golpe de 2016 e dos ataques da extrema direita. Não à toa, o Arcabouço Fiscal passou completamente ao léu do evento. Outro exemplo disso é Lula dando o maior cheque do PAC para Tarcísio privatizar em São Paulo, isto é, Lula financiando a política econômica neoliberal de Tarcísio em São Paulo, ou seja, um verdadeiro pacto pela estabilidade entre governo federal e estadual para levar a frente políticas que estejam de acordo com o interesse do capital privado.
Mas é preciso perguntar: ao PSOL, como defender a democracia contra a extrema direita construindo uma campanha eleitoral junto de um ex-comandante da ROTA, afastado de uma gestão controversa em meio a chacina de Osasco e Barueri, num estado onde vemos a juventude negra ser assassinada pela polícia todos os dias? A própria Érika Hilton diz no evento: “não haverá democracia enquanto uma mãe for assassinada com seu filho no colo”, mas ela e seu partido negam a contradição explícita em chamar a ROTA para lidar com a segurança de sua campanha; à reitoria e aos diretores de institutos, como defender a democracia quando perseguem seus estudantes dentro da universidade que lutavam justamente contra a feira com a Universidade de Technion que produz as armas que assassinam o povo Palestino? Ou quando mantém um regime de segregação dentro da universidade que é a terceirização, a qual matou Edvânia, Lourdes e Cleide?
Há, ainda, imbricada nessa estratégia, a canalização da revolta dos setores populares para as urnas e desvio da luta de classes. Exemplo disso foram as jornadas pelo Fora Bolsonaro que, mesmo em meio a Pandemia, mostraram disposição de enfrentar Bolsonaro nas ruas, mas as burocracias sindicais da CUT e da CTB não deram vazão a este sentimento com uma política de massificação que rumasse a uma greve geral, ao contrário, centrou-se em transferir esse sentimento para o voto. Isso também ficou muito claro na fala de Carlos Gadelha, secretário do alto governo (do PT) de ciências e tecnologia que abre seu tempo de fala com: “o voto de vocês valeu a pena e fez a diferença porque hoje tem política antirracista, de gênero e pela diversidade nas ações do ministério da saúde”. No entanto, não diz que o governo cortou 25 bilhões da saúde e da educação para preservar o Arcabouço Fiscal, que afeta sobretudo as mulheres e os negros. Esquece de dizer que o governo da frente ampla celebrou o PL da Uberização que coloca milhares de jovens negros em condições de trabalho adoecedoras, já que precisam ficar mais de 12 horas na rua sem sequer poderem ir ao banheiro para ganhar um salário que dê no fim do mês, ou mesmo que assegurou um RG transfóbico. Pensar políticas antirracistas e de gênero não é possível em um governo que quer preservar os interesses do capital financeiro que são diametralmente opostos aos interesses dos trabalhadores, das mulheres, dos negros, e LGBTQIAP+ e, para isso, alia-se a setores como Arthur Lira, cuja chegada mais uma vez à Presidência da Câmara neste governo, teve papel de passar com extrema agilidade o PL 1904, que equipara o aborto a homicídio, mesmo em casos de estupro, contando com os votos do PT.
Ou seja, a própria fala de Hoffmann e os exemplos que demos de que a conciliação abre caminhos para a extrema direita nos atesta, mais uma vez, que a estratégia da frente ampla não dá uma saída real para esse combate. A eleição presidencial nos EUA, que ocorre neste ano, está mostrando mais uma vez como a estratégia da Frente Ampla é falha, tendo os setores de extrema direita se fortalecido durante o governo de Biden, abrindo espaço para a possibilidade de que Trump se reeleja. Na Argentina, vemos uma situação transitória em que, apesar de uma vitória do governo com a aprovação da Lei de Bases, é possível ver claramente como a correlação de forças se definirá nas ruas e lutas no próximo período, com o peronismo garantindo a governabilidade de um Milei bastante débil e a esquerda da FIT-U, com o PTS à frente, sendo porta-voz do combate ao regime, ao ajuste e à submissão ao FMI. Assim como vemos a juventude em Bangladesh se enfrentar com seu governo conservador e a juventude no Quênia que barrou o plano de ajustes do governo. Por isso, a estratégia que defendemos é a que tem a luta de classes no centro, retomando os sindicatos e entidades estudantis para os trabalhadores e a juventude, arrancando-as das mãos das burocracias, inclusive das burocracias do PT, e organizando nossa classe através de seus métodos tradicionais de luta, com greves, piquetes, inflando a luta de classes, como mostraram os argentinos e como mostrou a juventude que questionou o imperialismo e se levantou em solidariedade ao povo Palestino.
A luta de classes e a classe trabalhadora como sujeito histórico da mudança
Um elemento que fica de fora das análises e discursos no evento, entretanto, é a luta de classes. Não é à toa que a classe trabalhadora não apareça como sujeito nas diversas mesas, mas que se debata o fim da extrema-direita nas urnas, e não nas ruas. Por um ou outro deslize, na mesa de encerramento, alguns convidados se referiram à Internacional Progressista, como Internacional Socialista. Quando perceberam seu erro, um riso sem graça e frases como “mas somos socialistas, então não tem problema”, vieram em seguida. Mas não sem serem corrigidos por um dos organizadores da internacional em questão, que assegurou de diferenciar progressista de socialista, dizendo que neste momento somos apenas progressistas, pois precisamos aliar todos os setores contra a ameaça fascista em curso no mundo. Seria mesmo escandaloso socialistas em um evento mundial sequer citarem a classe trabalhadora e as lutas em curso. E é justamente na ausência dos trabalhadores enquanto sujeito que está a grande diferença de nós, comunistas, para os setores progressistas da burguesia e do reformismo.
Viemos falando até agora de uma renovação da etapa imperialista, a partir da Grande Recessão de 2008, em que a burguesia reunirá esforços para buscar restabelecer suas taxas de lucro, ao mesmo tempo em que se enfrenta com um aumento da classe trabalhadora como nunca se viu na história e uma classe trabalhadora marcadamente mais negra, mais feminina, mais imigrante, além de uma dinâmica de internacionalização das cadeias produtivas e da classe trabalhadora que significa uma tendência muito maior de contágio da luta de classes.
A tese de que a classe trabalhadora teria chegado ao fim é comprovadamente falsa quando em meio à defesa desta tese estoura o primeiro ciclo de luta de classes após 2008, com a Primavera Árabe, além das greves gerais na Grécia e mais recentemente com a greve geral na França contra a reforma da previdência de Macron. Todos com uma dinâmica de revolta que não é canalizada para um sentido revolucionário devido aos desvios reformistas que levam os processos de luta de classes para dentro das democracias burguesas de forma a enfraquecê-los e pôr um fim nas revoltas. Os neorreformismos expressos no evento, como o Podemos espanhol, representam o desvio desses processos para o ecossistema dos regimes burgueses em crise na última década. Inclusive, a Unicamp foi determinante para desmentir a tese do fim do trabalho, com intelectuais como Ricardo Antunes à frente. Na pandemia e em meio à Guerra da Ucrânia, irrompe mais um ciclo de luta de classes, com caráter mais operário do que os anteriores, como visto na onda de sindicalização nos EUA, como os trabalhadores da Amazon, a luta contra a Reforma da Previdência de Macron na França, as greves na Grã-Bretanha, paralisações nacionais na Argentina, greve histórica na planta da Samsung da Coreia do Sul e o expressivo movimento de solidariedade internacional e de questionamento ao imperialismo que foram os levantes da juventude pelo mundo contra o genocídio perpretado pelo estado de Israel contra o povo palestino, que se iniciou no centro do imperialismo (EUA) e se espalhou como fogo em pólvora para Inglaterra, Espanha, Alemanha, Japão, Chile, e França, com algumas expressões de trabalhadores que cruzam os braços para não entregar materiais que eram usados no genocídio.
Com todos estes exemplos de luta de classes, não vimos os administradores do capitalismo citarem um exemplo sequer, como a senadora Colombiana, Clara López do Pólo Democrático Alternativo (PDA), Gerardo Pisarello, representante do Barcelona en Común no congresso de deputados na Espanha, além de outras figuras, sindicalistas e intelectuais de países como Índia, África do Sul, Finlândia, Estados Unidos, Filipinas entre outros, também com forte participação do PT, que hoje encabeça a frente ampla no governo brasileiro. Esta ausência da luta de classes na boca desses setores não é mera coincidência. Trata-se de qual a estratégia que defendem, estes setores não depositam sua confiança na luta de classes e na construção de uma frente única operária, mas sim na construção da frente amplíssima com setores “progressistas”, que na prática são muitas vezes representantes da direita, com o imperialismo como já vimos e com a burguesia.
A estratégia institucional, em detrimento da luta de classes, levada a frente pelos setores do evento não apenas se nega a engendrar processos de luta de classes, como também é parte de conter a luta. A primeira greve nacional dos técnico-administrativos e dos professores pelo reajuste salarial se esbarrou com a política do governo de equilíbrio fiscal que manteve de maneira intransigente reajuste zero, para não se comprometer com o capital financeiro, além de Lula ter proferido discursos anti-greve e ter acionado o judiciário para atacar o direito de greve dos trabalhadores do Ibama e da ICMbio, greves essas que não vimos serem mencionadas no evento.
Essa conclusão estratégica de aliança com diversos setores que discursivamente defendem um progressismo, sem um recorte de classe, é a levantada pelos intelectuais e políticos presentes no Festival de Ideias. Uma conclusão sintetizada na própria criação de uma internacional que não é comunista, mas progressista. Os setores que, no Brasil estão representados sobretudo pelo PT e pelo PSOL em processo de degeneração reformista, agora se articulam a nível internacional numa espécie de frente ampla global contra a extrema direita. O problema é que não há nenhuma delimitação de classe, portanto, não há independência política da classe trabalhadora.
Andrea Galvão cita a Primeira Internacional Comunista, fundada por Marx e Engels como fonte de inspiração para pensar a Internacional Progressista, mas esquece de um balanço fundamental que esses intelectuais e revolucionários fizeram em 1850, após a Revolução de 1848, que é a de independência da classe operária. Isso porque o ímpeto revolucionário da burguesia havia ficado no passado e esta classe não era mais capaz de cumprir um papel progressista, mas pelo contrário, passava a cumprir um papel reacionário. Mesmo o próprio Marx tendo tirado esta lição já em 1850 e o dirigente da Revolução Russa, Lênin, e Trótski, que tece os fios de continuidade de Lênin, terem confirmado esta conclusão com os processos da Revolução Russa e da Revolução Chinesa (aqui pela negativa, apontando o fracasso da estratégia stalinista-maoísta). Essas conclusões do marxismo revolucionário são ignoradas pela intelectualidade. .
Projeto de Universidade
Agora perguntamos: a Unicamp sediar este evento mostra que ela está a serviço de que?
Acreditamos que este evento ter acontecido na Unicamp não é apenas coincidência, mas mostra com que projeto ela compactua, o projeto da Frente Ampla. A reitoria de Tom Zé diversas vezes tentou pintar a Unicamp de democrática, colocando-a a serviço da defesa da democracia em oposição à extrema direita (mas isso enquanto recebe visita de Tarcísio com braços abertos). Exemplo disto foi quando a reitoria organizou o evento da leitura da Carta pela Democracia, enquanto as terceirizadas estavam sendo demitidas em massa e tendo seus direitos trabalhistas e benefícios cortados. Carta esta que nacionalmente estava sendo chamada junto a setores golpistas e à própria burguesia, como a FIESP.
Mas para quem vai os conhecimentos que produzimos na Unicamp? Em 2003, com apoio do governo Lula, é criada a Inova. Samsung, Pirelli, LG, Motorola, BASF, CPFL, Shell, Cargill e Monsanto são algumas das empresas hoje conveniadas com o Inova. Numa verdadeira venda de recursos públicos para as empresas nacionais e imperialistas, como a Shell e a Monsanto, a Unicamp vai produzindo desde as salas de aula da graduação até a pesquisa feita por pesquisadores e docentes, transferindo e guiando a ciência produzida aqui para os lucros bilionários dos capitalistas, à base da superexploração do trabalho e da devastação ambiental.
De lá pra cá essa conta só cresceu. A Unicamp se orgulha de ter o iFood como empresa-filha, essa plataforma responsável pela escravização moderna da juventude brasileira. Parcerias com a Vale assassina, responsável por catástrofes ambientais. E o papel da reitoria de Tom Zé vem sendo determinante para assegurar que cada vez mais a Unicamp sirva ao capital privado. No último período, o reitor assegurou a criação do IOU, um instituto médico privado, com objetivo de desenvolvimento tecnológico na área da saúde. Também levou a frente o HIDs, polo tecnológico privado para iniciativas sustentáveis. Recentemente, ao lado de Lula, inaugurou o Orion, um laboratório privado de 1 bilhão de reais, além de fechar uma parceria, também com respaldo do governo Lula, com a Enel, empresa italiana responsável por apagões recorrentes em São Paulo.
Esses são alguns exemplos de casos que temos acesso sobre qual é o destino das pesquisas que fazemos, das aulas que temos, do trabalho que executamos dentro da Unicamp. Há outros casos ainda mais escandalosos, como é o exemplo da Technion, universidade Israelense abertamente sionista com a qual a Unicamp mantém relações secretas. A Technion é responsável por toda a inteligência e também pelo desenvolvimento do armamento utilizado para matar milhares em Gaza. Ou seja, nós estamos produzindo um conhecimento que está servindo ao Estado de Israel e nem podemos saber qual é o seu caráter. É contra essa relação da Unicamp, inclusive, que docentes levantam uma campanha pelo rompimento da Unicamp com a Technion. Essa campanha de docentes não se expressou no evento.
Em suma, a Unicamp hoje é uma universidade de classes, em que o nosso conhecimento é entregue às mãos da iniciativa privada sem que possamos decidir sobre isso. Isso porque a estrutura da universidade é uma estrutura antidemocrática, em que o CONSU, maior órgão de deliberação da Unicamp, é composto em 70% por professores, 15% por técnicos administrativos e 15% por estudantes, contando até com representantes da FIESP. Ou seja, o CONSU não é representado pelo peso real do corpo universitário, em que técnicos e estudantes são a maioria real. Não à toa, na mesa de abertura Tom Zé inicia o evento se vangloriando das medidas de inclusão e permanência da Unicamp. Vestibular indígena, cotas raciais, todas conquistas arrancadas por estudantes na greve de 2016, estudantes estes que foram perseguidos pelas reitorias anteriores e pela estrutura de poder que Tom Zé assegura. Mas o reitor não pôde se vangloriar das cotas trans, das cotas PCDs, e sequer as cita como possibilidade, também porque a reitoria e o CONSU vêm sendo um obstáculo para a conquista dessas medidas. São demandas arrancadas da reitoria na greve de 2023 e que Tom Zé assegura dia a dia que não se concretizem. Por fim, o reitor ainda afirma que não basta que esses estudantes venham para Unicamp, mas que permanecer lhes é assegurado. Não parece a mesma reitoria que virou as costas para as casas alagadas da moradia no início do ano.
Nós queremos discutir com cada estudante, a serviço de que deveria estar o conhecimento produzido na Unicamp. Portadora de laboratórios que só existem aqui, com docentes e pesquisadores referências no mundo todo, como um polo de desenvolvimento tecnológico no Brasil e na América Latina, esse aparato todo poderia e deveria estar a serviço da classe trabalhadora. De debater e encontrar soluções para a catástrofe climática, para o fim da exploração do trabalho, para os grandes problemas do mundo, e não a serviço de enriquecer os mesmos que nos exploram e destroem o planeta.
Portanto, o evento se trata da reunião dos setores que estão pensando e reproduzindo a Frente Ampla, produzindo a vanguarda que conduzirá a fracassada “reforma progressista do capitalismo”, enquanto o capitalismo destrói vidas e o planeta todos os dias. Por isso, na Unicamp, para nós é urgente contrapor este projeto com uma perspectiva revolucionária, nos apoiando no que tem de mais avançado do movimento estudantil internacional. Em maio de 68, em que os estudantes ousavam exigir o impossível e abriam as portas da universidade para os trabalhadores; nos Estados Unidos, que a juventude se levantou pelo Black Lives Matter; no Brasil, em que foi dentro da universidade que surgiu o grito “abaixo a ditadura militar”; no coração do imperialismo, que são os estudantes que são reprimidos pela polícia enquanto se levantam pelo povo Palestino. São exemplos da força do movimento estudantil, aliado à classe trabalhadora.
Dentro da universidade, o nosso papel é lutar por cada demanda dos estudantes e trabalhadores, mas também questionar qual é o papel da universidade no projeto de país da frente ampla. Não temos nenhuma confiança nessa reitoria antidemocrática; os estudantes, professores e trabalhadores deveriam gerir a universidade de acordo com nosso peso na realidade, com todos os trabalhadores efetivos e terceirizados, e os últimos devem ser efetivados sem necessidade de concurso público.
De dentro da universidade, devemos lutar bravamente pelo fim do vestibular, um filtro social e racial que deixa dezenas de milhares fora do ensino superior todos os anos. E, para além disso, devemos lutar também para que a Unicamp não mais sirva aos interesses dos governos e das empresas, mas que todo seu potencial tecnológico esteja a serviço da classe trabalhadora e do povo pobre. Que tenhamos liberdade nas nossas pesquisas, que possamos pesquisar de acordo com nossas necessidades, materiais e culturais. Que a universidade seja um espaço de vivência, com festas no campus sem risco de repressão, que seja espaço da juventude expressar e pesquisar sobre sexualidade, gênero e raça. Para isso, precisamos de um movimento estudantil independente da reitoria e dos governos, que de fato mobilize os estudantes, através de entidades como DCE, que segue paralisado desde o início do ano.
Por isso, chamamos a cada estudante que queira debater essas ideias e que queira construir um outro projeto de universidade, levando as ideias revolucionárias em frente, a se organizar ao lado da Faísca Revolucionária. O nosso papel é determinante, como mostram os exemplos históricos. Nós, aliados aos trabalhadores de dentro e de fora da universidade, e forjados na teoria marxista, nos apoiando em tudo que tem de mais avançado na história revolucionária, podemos não só decidir os rumos da universidade, mas lutar por um futuro livre de toda opressão e exploração, na formação de uma juventude internacionalista que coloque como tarefa número um o fim do genocídio em Gaza, por uma Palestina livre, operária e socialista.