Revista Casa Marx

Vale uma guerra? O plano da Liga para roubar a independência da Abissínia

C.L.R. James

Essa análise do Relatório da Liga das Nações sobre a Abissínia[^1] foi provavelmente o primeiro artigo escrito por James para o New Leader[^2] , jornal semanal do Independent Labour Party (Partido Trabalhista Independente), editado por Fenner Brockway[^3] . Foi publicado na edição de 4 de outubro de 1935, com uma fotografia do autor e uma breve introdução deste como: “um Negro e Socialista. Ele é presidente do ILP de Finchley[^4] . Ele escreve com veemência. Ele diz que é uma “mentira descarada” que o governo britânico está defendendo a independência da Abissínia, e apaixonadamente adverte os trabalhadores britânicos contra serem levados a apoiar as sanções da Liga das Nações para “estrangular” o povo etíope. Apenas a ação unificada e independente de trabalhadores britânicos e africanos pode derrubar o imperialismo”.

“A valente pequena Bélgica” foi suficientemente ruim, mas “a independência da Etiópia” é pior. Trata-se da maior fraude em toda a história vivida do imperialismo. O governo britânico, tendo mobilizado a opinião mundial e muitos de seus próprios trabalhadores em torno disso, colocou um estrangulador na Etiópia, tão apertado como qualquer coisa que o imperialismo italiano já pretendeu.

As propostas do Comitê dos Cinco5 expõem a mentira descarada de que qualquer independência esteja sendo defendida. O documento é curto e conciso.

Os serviços públicos da Etiópia vão ser divididos em quatro departamentos: Polícia e Gendarmeria, Desenvolvimento Econômico, Finanças, e Outros Serviços Públicos. Como de costume com a roubalheira imperialista mascarada em nome da lei, os meios de repressão se sobressaem primeiro na lista.

Especialistas estrangeiros organizarão unidades de polícia e da gendarmeria, que serão responsáveis por “regulamentar estritamente o porte de armas por pessoas que não pertençam ao exército regular ou a polícia ou as forças da gendarmeria”, em outras palavras, desarmar o povo.

Esse grupo de especialistas será responsável por “policiar centros nos quais europeus residam”, e “assegurar a segurança em áreas de agricultura onde europeus possam ser numerosos e onde a administração local possa não ser suficientemente desenvolvida para provê-los com a proteção adequada”. Dessa forma, a população local estando desarmada, os homens negros serão ensinados a dar o devido respeito aos brancos na África sob domínio imperialista.

Mussolini iria fazer o mesmo. Mas ele, de forma bem estúpida, exigiu o desmantelamento do exército. Esses estrangeiros especialistas não vão desmantelar o exército. O porte de armas será permitido para o exército. O Egito, que também é independente, tem um exército de apenas 10,000 homens, tão mal equipado que são inúteis para qualquer coisa que não seja mostrar como o Egito é independente!

O exército regular da Etiópia nunca foi grande. A força do país sempre esteve no fato de que o exército era toda a população.

Tendo a gendarmeria feito seu trabalho, o imperialismo pode, seguramente, seguir em frente com a civilização. Sob a Seção II, do departamento de Desenvolvimento Econômico, estrangeiros vão “participar da posse de terra, regulamentação da mineração, exercício de atividades comerciais e industriais”; e também funcionários públicos, telegrafista, etc., todas as coisas que o imperialismo necessita para o seu comércio. Será a mesma velha exploração que está ocorrendo em cada parte da África hoje.

Primeiro, os imperialistas chamaram as áreas exploradas de colônias; depois, de protetorados; em seguida, mandatos. Agora, é “ajudar uma nação irmã”.

O nome fará pouca diferença para o nativo privado de suas armas, conduzido como gado para áreas cercadas, trabalhando em minas por poucos xelins por semana6 sem proteção sindical, com o policiamento especial e a gendarmeria para ensiná-lo como deve se comportar. Ele escolheu sua escravidão feudal. No futuro, ele verá esse período como uma era de ouro.

Seção III, do Departamento de Finanças, mostra que os conselheiros da Liga também serão responsáveis pela “avaliação e arrecadação de impostos, taxas e tributos”. Como eles vão se deleitar com isso! Empréstimos também (dos quais a City7 ficará rica), e “controle das garantias vinculadas ao pagamento dos empréstimos”. Isso significa que, como na China e outras partes onde o imperialismo vem “ajudando” o governante local, impostos alfandegários e outros tributos semelhantes serão coletados coletados pelos imperialistas de uma vez e enviados aos investidores na Europa. A Grã-Bretanha pode dar calote, mas a Etiópia, assim como a Índia, terá que pagar – mesmo que o nativo tenha que suar sangue para isso.

Após a disponibilidade de empréstimos virá o pagamento de salários, o dinheiro para a gendarmeria, telégrafos, estradas, ferrovias, etc. A balança então irá para a educação, etc. – como podemos ver na Índia depois de duzentos anos sob o domínio britânico, onde a porcentagem de analfabetos ultrapassa os 90%.

A seção IV lida com a justiça. As cortes mistas que julgarem casos entre estrangeiros e europeus serão “reorganizadas”. Aqui também haverá a reorganização da “justiça nativa”. Nós recomendamos nessa conexão o estudo do relatório publicado no ano passado sobre a justiça nativa no leste africano britânico.

Quem aplicará toda esta assistência à  nação irmã há muito perdida da Etiópia, tão alegremente encontrada por último? Primeiro, a polícia e a gendarmeria. Onde quer que os colonos europeus vivam em grandes números, e também nas fronteiras, a gendarmeria “participará na administração geral em uma extensão variável conforme o padrão alcançado pelas autoridades locais e a pela natureza dos problemas a serem resolvidos”. Carta branca.

Mas mesmo em outros lugares o imperialismo britânico não deixará nada para o governo etíope. Cada uma dessas quatro seções terá à sua cabeça um “Principal Adviser”, enviado pela Liga das Nações. Estes quatro terão acima de si um chefe, que será um delegado da Liga reconhecido pelo Imperador. Se este Imperador não é especialmente indicado, então os quatro conselheiros irão eleger um chefe.

Esses senhores, além de controlar a polícia e a gendarmeria, as finanças, o comércio e a justiça, também “devem confiar na efetiva cooperação das autoridades etíopes”, e isso mesmo onde eles não têm poderes especiais. Melhor ainda, haverá uma organização central tanto para coordenar os serviços de assistência como para os assegurar “o necessário apoio do governo etíope”. O Imperador da Liga e seus conselheiros farão o que quiserem no país e terão total apoio do governo etíope.

O delegado e seus principais conselheiros serão, claro, apontados pelo Conselho da Liga, “com o acordo do Imperador”. Sendo assim, ele pode escolher entre o imperialismo britânico, ou o imperialismo francês, ou o sueco, ou o belga. Quantas escolhas ele vai ter?

Contudo, mais do que isso: o Imperador não poderá nomear livremente nem uma única equipe ou funcionário desses conselheiros. Esses conselheiros submeterão nomes para o Imperador, entre os quais pode escolher, ou mesmo que ele indique alguns agentes, o conselheiro da Liga deverá que dar seu aval “conforme a natureza e a importância dessas funções”.

Finalmente, que controle terá, mesmo nominal, o povo etíope, ou mesmo o Imperador, sobre tudo isso? Nenhum, seja o que for. Estes conselheiros, vão “fazer relatórios que serão comunicados ao Imperador ao mesmo tempo que eles são endereçados ao Conselho da Liga”. Assim, os conselheiros não devem se preocupar com o governo etíope de forma alguma, que, no entanto, poderá “submeter ao Conselho qualquer observação que deseje formular em relação a esses relatórios”.

Ao final de cinco anos, o plano deve ser revisto. Mas, por volta desse tempo, o imperialismo terá afundado seus dentes e garras tão profundamente no país que nada a não será uma revolução das massas etíopes poderá expulsá-los.

Os imperialistas estavam atrás da Etiópia há muito tempo e finalmente a conseguiram. Tudo que a Itália tem, no entanto, é uma promessa de que seus interesses predominantes serão reconhecidos. Isso não é o suficiente. Musso, o macaco, enfiou os dedos no fogo, mas foi o leão britânico quem pegou a noz8. Não é de se admirar que Garvin, no Sunday’s Observer9, berra que não é justo, que Mussolini deveria ter o suficente, pelo menos, para mostrar à Itália que o fascismo não é um blefe e que de fato, às vezes, trás bens e mercadorias para casa.  Se a guerra for evitada dessa forma, então Eden e Laval podem voltar para seu lar, levando honrosamente a paz e levando o suficiente da Etiópia para manter a chama de casa queimando um pouco mais10.

Agora, há algum trabalhador britânico, algum negro na África que, tendo compreendido esse documento infame, esteja preparado para exigir sações da Liga e seguir os imperialistas em sua defesa da “independência da Etiópia”?

Tendo conseguido que o Imperador concorde com tudo que desejem,  agora os imperialistas lembraram de suas obrigações firmadas em tratado e passaram a permitir que armas entrassem na Etiópia. Uma remessa chegou da Bélgica; e também armas antiaéreas da Suíça. Os franceses estão se preparando para proteger a ferrovia de Djibouti até Addis Ababa.11 Isso é para segurar que a nação irmãzinha Etiópia pegue suas armas e suprimentos durante a guerra.

Os trabalhadores britânicos, o negro ansioso para ajudar a Etiópia, devem se manter longe dessa lama, que pode tão em breve se tornar sangue.

Trabalhadores da europa, camponeses e trabalhadores da África e Índia, por todo o planeta sofrem com o imperialismo, todos ansiosos para ajudar o povo etíope, se auto organizem de forma independente, e por suas próprias sanções, pelo uso de seu próprio poder, ajudem o povo etíope. A luta deles está apenas começando.

Vamos lutar não apenas contra o imperialismo italiano, mas contra os outros ladrões e opressores, o imperialismo britânico e francês. Não deixem que eles te arrastem. Entrar dentro da órbita da política imperialista é ser debilitado pelo fedor, ser afogado em um pântano de mentiras e hipocrisia.

Trabalhadores britânicos, camponeses e trabalhadores da África, se aproximem por essa e outras lutas. Mas continuem distantes dos imperialistas e de suas Ligas, tratados e sanções. Não sejam a mosca na teia de aranha deles.

Agora, como sempre, vamos defender a organização e a ação independente. Nós temos que quebrar nossas próprias correntes. Quem é o tolo que espera que nossos próprios carcereiros as quebrem?

 

Notas 

1.Abissínia é o nome histórico da região que corresponde hoje à Etiópia. Foi um antigo império africano conhecido por sua resistência ao colonialismo europeu, mantendo sua independência durante grande parte do período imperialista.

2. Jornal britânico fundado em 1922, ligado inicialmente ao Independent Labour Party (ILP). Serviu como veículo para ideias socialistas democráticas, pacifistas e críticas ao imperialismo, especialmente nas décadas de 1930 e 1940.

3. Político e ativista britânico (1888–1988), destacado membro do ILP. Anti-imperialista e defensor da independência das colônias, Brockway editou o New Leader e foi um dos principais críticos da invasão italiana à Etiópia

4. Filial local do Independent Labour Party (ILP) na região de Finchley, norte de Londres. O ILP era um partido socialista independente que se separou do Partido Trabalhista por discordar de suas posições moderadas, especialmente em relação à guerra e ao imperialismo.

5. Grupo formado pela Liga das Nações em 1935 para mediar a disputa entre a Itália e a Etiópia. Composto por representantes do Reino Unido, França, Espanha, Polônia e Turquia, o comitê foi amplamente criticado por propor soluções que favoreciam a Itália e minavam a soberania etíope.

6. Referência à remuneração miserável paga a trabalhadores colonizados. Um xelim era uma fração de libra esterlina (1/20), e “alguns xelins por semana” sugere um pagamento extremamente baixo, simbolizando a exploração econômica sob o imperialismo britânico.

7. Abreviação de City of London, o distrito financeiro de Londres. Na crítica de C.L.R. James, a “City” representa o capitalismo financeiro britânico, que lucrava com empréstimos e controle econômico das colônias, como a Etiópia, mesmo em contextos de guerra ou crise.

8. “Musso” refere-se a Benito Mussolini, comparado a um macaco que se arrisca (coloca os dedos no fogo) por um objetivo — neste caso, uma “noz”, símbolo de recompensa ou ganho — que acaba sendo tomada pelo “leão britânico”, símbolo tradicional do Império Britânico. A imagem insinua que Mussolini fez o trabalho perigoso ou imprudente, mas quem se beneficiou foi o Reino Unido.

9.J. L. Garvin (1868–1947) foi editor do Observer e voz influente do imperialismo britânico. Suas posições expressavam a ideologia da burguesia, defendendo os interesses do capital britânico sob uma retórica civilizatória.

10.Referência irônica ao acordo anglo-francês de 1935 (plano Hoare-Laval), em que os ministros Eden (Reino Unido) e Laval (França) cogitaram ceder grande parte da Etiópia à Itália fascista para evitar a guerra. A frase critica a hipocrisia das potências imperialistas que, em nome da “paz”, estariam dispostas a sacrificar uma nação colonizada, mantendo seus próprios interesses acesos — como uma “chama doméstica” alimentada por espólios coloniais.

11. A ferrovia de Djibouti a Addis Ababa era uma infraestrutura estratégica que ligava o litoral controlado pela França à capital da Etiópia.

Carrinho de compras
Rolar para cima