Redação
Reproduzimos abaixo fala de Flávia Telles, militante do Pão e Rosas em Campinas, cientista social e professora de História na rede estadual de São Paulo. Trata-se da mesa de abertura da Semana de Ciências Sociais do IFCH, ocorrida em Agosto deste ano. O tema é "Semeando o pensamento de Lélia González nas Ciências Sociais", aos 30 anos de sua morte. A mesa contou com a participação de TC Silva, músico, ativista e fundador da Casa de Cultura Tainã de Campinas, e Lourival Aguiar, doutor em Antropologia pela USP e militante da Resistência PSOL. A mediação é de Ana Vitória Cavalcante, estudante de Ciências Sociais, parte da Comissão organizadora do evento e militante da Faísca Revolucionária. Em sua fala, Flávia Telles aborda Lélia González em diálogo e debate com os intérpretes do Brasil e sua apropriação de categorias marxistas e trotskistas, destacando seu olhar a partir das mulheres negras e sua trajetória militante, como intelectual da práxis.
Oi, pessoal, em primeiro lugar queria agradecer o convite para estar aqui na mesa de abertura da Semana de Ciências Sociais do IFCH, uma Semana que eu já fui parte de organizar quando era estudante e agora poder vir aqui como convidada é bastante especial, ainda mais com um tema tão pertinente que é a busca por retomar as principais ideias, o legado, de uma autora e intelectual negra como a Lélia González, queria estar aí pessoalmente com vocês, mas infelizmente não foi possível, mas parto de saudar todo os organizadores da SEMANACS. Acho que estamos nesse momento em que estudantes, feministas, ativistas, intelectuais da luta antirracista estão recuperando a Lélia para pensar nossos desafios atuais diante de um mundo convulsivo, onde a gente está vendo um genocídio a céu aberto como na Palestina, onde seguimos vendo que são os trabalhadores, os negros e negras, as mulheres, os indígenas e as LGBTQIAP+ que pagam a conta da crise capitalista. Então, sob qual perspectiva retomar Lélia González, há 30 anos da sua morte?
Hoje há muitas maneiras de se retomar a Lélia González, creio que os meus colegas de mesa apresentaram algumas delas. A Lélia tem o feito de ter percorrido diversas áreas da ciências humanas e sociais, da psicanálise à antropologia, dando fermento hoje aos estudos poscoloniais e decoloniais com seu conceito único de amefricanidade que buscou explicar qual era a especificidade do Brasil e da América Latina, vendo negros e indígenas americanos como sujeitos ativos na formação cultural do continente. Mas eu queria aqui reivindicar um âmbito da Lélia González que eu acredito que ele é no mínimo subvalorizado e acredito que é uma das perspectivas que mais deveriam ser recuperadas para pensar esses nossos desafios atuais. São conclusões que eu e a Léticia Parks, que milita comigo no MRT e no Quilombo Vermelho, nós chegamos no artigo “O feminismo de Lélia González: pioneirismo e diálogos com o marxismo na interpretação do Brasil” para a revista “Feminismo e Marxismo” do Ideias de Esquerda.
A primeira coisa que poderiamos dizer é que o pensamento de Lélia González interpretou o Brasil a partir de um olhar que buscou nas mulheres negras as raízes econômicas, históricas, sociais e culturais do país, a partir desse olhar é que ela foi capaz de analisar o capitalismo brasileiro se apoiadando em conceitos marxistas e trotskistas para superar uma visão então vigente sobre o “lugar do negro na sociedade de classes”
.
A Lélia foi a primeira autora brasileira que trouxe à tona o entrelaçamento entre raça, classe e gênero, e fez isso ao analisar a força de trabalho no Brasil a partir da superexploração do trabalho das mulheres negras. Ela se aproxima de uma visão também compartilhada por Angela Davis sobre o papel das mulheres na escravidão, enfrenta a ideia das mulheres negras como instrumento de satisfação sexual diante dos instintos sexuais naturais dos colonos brancos e demonstra que o “cruzamento das raças” é fruto da brutalidade dos estupros e da dominação colonial que atravessou a vida das mulheres negras, ou seja, também aqui enfrentando o mito da democracia racial. Em Cultura, etnicidade e trabalho: Efeitos linguísticos e políticos da exploração da mulher, escrito em 1979, um de seus trabalhos mais conhecidos, González aponta a realidade do trabalho das mulheres negras do pós-abolição até o último Censo que tinha acesso, o de 1950, afirmando que a mulher negra “foi o sustento moral e a subsistência dos demais membros da família”. Em A mulher negra na sociedade brasileira: uma abordagem político-econômica escrito no mesmo ano, ela diz:
Ser negra e mulher no Brasil, repetimos, é ser objeto de tripla discriminação, uma vez que os estereótipos gerados pelo racismo e pelo sexismo a colocam no nível mais alto de opressão… Enquanto empregada doméstica, ela sofre um processo de reforço quanto à internalização da diferença, da subordinação e da “inferioridade” que lhe seriam peculiares. Tudo isso acrescido pelo problema da dupla jornada que ela, mais do que ninguém, tem de enfrentar. Quando não trabalha como doméstica, vamos encontrá-la também atuando na prestação de serviços de baixa remuneração (“refúgios”) nos supermercados, nas escolas ou nos hospitais…”.
Utilizando também os dados mais atuais vemos que essa realidade é a que persiste até hoje na vida cotidiana de cerca de um quarto da classe trabalhadora brasileira, como são as mulheres negras, no trabalho doméstico são mais de 65%, e do ponto de vista do salário, as mulheres negras ainda ganham menos da metade dos homens brancos trabalhadores no Brasil, segundo pesquisa da FGV em 2023, ou compondo os batalhões do trabalho terceirizado, como vocês podem ver aqui na Unicamp. Mas a Lélia ainda foi além.
A escola de sociologia paulista, com Florestan Fernandes à frente, fez estudos centrais sobre a situação do negro no Brasil, a obra A integração do Negro na sociedade de Classes é a maior expressão disso, e foi um grande marco nas reflexões sobre a questão negra no Brasil, contribuindo para combater qualquer visão harmônica das relações raciais no país, e portanto fundamentando também que a ideia de democracia racial era um mito. Ao mesmo tempo, a marginalização do negro para o Florstan Fernandes seria um “arcaismo”, uma “demora cultural”, advinda da herança colonial e que portanto poderia ser superada com o desenvolvimento da ordem social burguesa no Brasil, ainda que como apontam Brasil Jr e Mário Medeiros, professor aqui do IFCH, Florestan não via uma relação incompatível entre racismo e industrialismo. Mas González vai questionar essa ideia apresentada de “integrar” o negro na sociedade de classes uma vez que ela assume como categoria analítica o que chama de “a problemática do desenvolvimento desigual e combinado”, uma categoria marxista e desenvolvida por Leon Trotsky, grande dirigente da Revolução Russa e combatente do stalinismo. Esse conceito demonstra que o capitalismo não somente se desenvolve de maneira distinta em cada local do globo, mas que tem seu funcionamento fundindo o arcaico e o moderno dentro do desenvolvimento de um mesmo país, ou seja, permitiu Lélia concluir que essa condição social do negro não é uma anomalia do sistema, mas é parte de seu funcionamento, para fundamentar ainda mais essa visão ela utiliza o conceito marxista de exército industrial de reserva e também a categoria do cepalino José Nun de massa marginal buscando compreender a funcionalidade da condição marginal do negro dentro do sistema. Portanto, nos permite dizer também que a Lélia ao ter como base essas categorias marxistas supera a visão do Florestan Fernandes sobre o lugar do negro na sociedade de classes, que não seria resolvido por nenhum desenvolvimento econômico capitalista, porque num país como o Brasil o sistema capitalista é justamente essa combinação entre a exploração profunda do trabalho e das vidas das massas negras e a técnica do capitalismo moderno.
Outra ideia possível de colocarmos de Lélia aqui e aí termino com isso é que Lélia era uma intelectual da práxis, ela sempre foi militante, não era possível para Lélia conceber sua teoria separada da prática para transformar a realidade. Lélia fazia uma forte crítica aos setores que buscavam separar as análises de classe das análises sobre a raça no Brasil, inclusive fazendo uma forte crítica à Caio Prado Júnior e ao PCB, por essa separação. Depois, Lélia vai ser fundadora do MNU e do próprio PT, em que ela vai expressar uma profunda preocupação em criar um programa político que dê conta de responder às mazelas da população negra.
São dessa época textos elementares da denúncia do racismo brasileiro, como Democracia racial? Nada disso!, Mulher negra, essa quilombola, Pesquisa: Mulher negra, A questão negra no Brasil, todos de 1981; e E a trabalhadora negra, cumé que fica?, de 1982. A tensão por um programa partidário para combater o racismo e o patriarcado chega ao esgotamento em sua carta à Folha de São Paulo, em 13 agosto de 1983. Racismo por omissão criticava de forma ácida a propaganda do PT exibida pela primeira vez na televisão poucos dias antes e que segundo ela deixava de fora a ala dos negros e negras.
Nesse momento já era possível ver o papel que vinha cumprindo o PT e várias de suas figuras, como Lula, de conter e desviar o ascenso operário e de ser parte de uma transição pactuada da ditadura à democracia, que terminaria por perdoar os crimes de militares e civis do regime e dar as mãos a banqueiros e industriais supostamente comprometidos com o “crescimento” do país, nada mais atual, ao ponto de hoje Lula homenagear o signatário do AI-5 Delfim Netto. Lélia vai tendo então experiências em especial com o PCB antes e depois com o PT que vai levando ela para uma certa separação dos partidos mais tradicionais da esquerda, e assim uma separação da perspectiva de unidade entre luta negra e luta de classes, não à toa ela vai depois para o PDT, um partido burguês, que naquele momento reunia várias figuras do movimento negro no RJ, mas que justamente porque era um partido burguês, não poderia levar à frente nenhuma das aspirações que a Lélia via como sendo necessárias para responder à situação dos negros e negras no Brasil.
A leitura da trajetória política e militante de González, lado a lado do percurso intelectual que vai se forjando na relação com essas experiências e com seu período histórico, servem para resgatar as enormes contribuições teóricas de uma intelectual que relacionou luta negra e feminista à luta de classes. Considero importante resgatar esse pioneirismo de Lélia González que apontamos aqui na interpretação do capitalismo brasileiro, porque é muito comum somente resgatar a Lélia numa perspectiva de estudos pós-coloniais que apesar de partir da preocupação de combater perspectivas eurocêntricas, muitas vezes também vão ser separadas de uma perspectiva de classe, o que ela não fez. Serve também para alertar nossa geração de feministas e antirracistas sobre o que nos separa de transformar nossa indignação em um embate aberto e de morte contra o capitalismo.
Estamos no Brasil diante de um governo da conciliação de classes, o governo Lula-Alckmin, o que significa que no lugar de qualquer luta vão colocar os pactos e acordos com os burgueses, com o agronegócio, com os industriais, com os herdeiros da escravidão, ou seja, tudo que acaba por fortalecer e não combater a extrema direita. Como professora, eu estou vendo escolas privatizadas do governo Tarcísio que serão financiadas pelo BNDES do governo Lula que mantém reformas e faz seus própria ataques hoje como o arcabouço fiscal, ou vemos até ex-comandante da Rota, a polícia mais assassina, que comemora a morte da juventude negra em São Paulo com charutos e cerveja, sendo parte da campanha do Boulos do PSOL que já diz que não é mais a favor da legalização da maconha (sabemos que a política de criminalizar as drogas está no m função de encarcerar a juventude negra), ou internacionalmente onde querem nos colocar como apoiadores de ninguém menos que Kamala Harris, em nome de uma representatividade que não nos representa, ou alguém aqui se sente representada por uma mulher negra que lança bombas nas meninas e mulheres palestinas? Qualquer um que se diga combate do colonialismo hoje precisa estar na primeira fila contra o genocídio palestino. Resgatar Lélia González hoje deve nos colocar a tarefa de superar essas perspectivas, buscando a independência política do Estado capitalista, dos patrões e empresários e unificar a luta negra com a luta de classes.
As mulheres negras sempre foram vítimas da opressão e da exploração do trabalho. Hoje, elas conformam um contingente de milhares em todos os setores da classe trabalhadora, nos mais precarizados mas não só, em todos os setores que fazem tudo funcionar, o que nos permite também ver que vão ter um papel decisivo na luta pela transformação revolucionária dessa sociedade da miséria capitalista e racista.