Revista Casa Marx

Bets e Tigrinhos: uma epidemia de uma sociedade adoecida pelo capital

Mateus Castor

“Eu aposto. Porque a emoção não tem replay”

“Quando eu comecei a ganhar dinheiro, a sensação era de total euforia, satisfação e prazer. Comecei com jogos de todos os tipos nas casas de apostas.”

“Eu não me satisfazia em fazer R$ 200 ou R$ 300 por dia. Eu queria sempre fazer R$ 10, 20 mil todos os dias, então, às vezes, eu fazia mil reais e, ao invés de sacar, tentava mais e acabava que saía sem nada.” 

“Vimos que pessoas estavam pedindo adiantamento de férias, de 13º salário, ou mesmo empréstimo. Outros chegaram a pedir para fazer acordo para serem demitidos e sacar o FGTS. Foram muitos funcionários; então começamos a atuar e descobrimos pela família e pelo funcionário que ele estava envolvido com apostas e jogos eletrônicos.”

“Perdi a noção de tempo, não sabia quando era dia, quando era noite, só sabia jogar sem parar. Quando não jogava, pensava em me matar. Não entendia como tinha chegado àquele ponto. Olhava para a avenida cheia de carros e cogitava pular ou me encher de remédios. Sentia vergonha de mim e pavor de contar para minha família.” 

Os relatos acima foram feitos por pessoas que sofrem de “Transtorno do Jogo Patológico” ou por aquelas que conviveram de perto com aqueles que sofrem deste problema de saúde, que se espalhou por todo o Brasil nos últimos anos. Vale comparar os relatos acima com a situação seguinte:

É intervalo de jogo na TV. Surge um homem dizendo que é controverso, que já foi chamado de louco e, enquanto discursa, um violino toca ao fundo. Cenas emocionantes de diversos esportes passam enquanto ele justifica… a sua paixão pela aposta. Por fim, conclui: “Eu aposto. Porque a emoção não tem replay.” 

Um questionamento: haverá o dia que olharemos para as propagandas de bets como hoje olhamos para as propagandas de cigarro? 

Por enquanto, não. Lidamos com o fato de que todos os times brasileiros de futebol que competem no Brasileirão tem uma casa de aposta virtual estampada em seu uniforme. Virgínia na CPI junto a um senador apostando no “tigrinho”; Bruno Henrique, atleta do Flamengo, investigado por decisões em campo para favorecer apostas de parentes; direção do Corinthians investigada por esquemas com bets. Bilhões do Bolsa Família gastos com apostas. Lidamos com casos de endividamento e perdição de milhões de  trabalhadores e trabalhadoras, viciados na aposta.

Por enquanto, lidamos com o fato de que a peça publicitária narrada e muitas outras pintam uma epidemia de saúde pública com cores da glória, euforia e diversão. 

Vale marcar que não há aqui qualquer objetivo de condenar a aposta ou qualquer jogo de azar, que sempre fizeram parte de diversas culturas pelo planeta no decorrer de séculos, e continuarão a fazer. Humanos apostam. Partimos do consenso que a criminalização não resolve problemas que surgem de questões estruturais de uma sociedade à mercê das ordens do capital. O cenário de criminalização da aposta online manteria as coisas exatamente como são, e apostadores apenas migrariam de plataforma em plataforma, estas por sua vez continuariam a lucrar bilhões.

Mas, podemos, sim, buscar uma análise de como as Bets conquistaram seu império bilionário no Brasil. Questionamos: quais as condições econômicas e sociais que permitem a massificação de um vício em casas de apostas online? Como o regime político brasileiro, em especial o governo de turno de Lula, contribuiu para essa hegemonia cultural das casas de apostas online? 

Sobre as condições econômicas e sociais

Ainda que dados econômicos brutos exaltem as recentes baixas taxas de desemprego, de uma média salarial considerada elevada à crescimentos do PIB, as estatísticas ocultam a vida concreta de milhões. Não consideram a extrema precarização do trabalho e o sacrifício diário, muitas vezes na escala 6×1, entre terceirizados e uberizados, para pagar as contas do mês. Após uma sequência de Temer e Bolsonaro, com reformas trabalhistas, da previdência e diversos mecanismos que precarizaram o trabalho e os serviços públicos, observamos a continuidade do programa de ataques ao trabalho. Nenhum desses ataques foi, de perto, questionado pelo governo de Frente Ampla de Lula-Alckmin, pelo contrário, regulamentaram a uberização do trabalho. 

Na economia real, de quem enfrenta a ausência de direitos, a ultra exploração, sindicatos pelegos ou a plena informalidade, surge um bombardeio publicitário. Na tela, são pessoas felizes, empolgadas, se divertindo em casas de aposta. Elas estão por todos os lugares, a todo momento. Um paraíso, uma promessa de alegria. 

Com um salário péssimo, sem qualquer expectativa de melhora no futuro, vivendo uma vida cinza, o capitalismo pode fornecer uma série de comportamentos compulsórios para descomprimir a pressão, que não deixam de ser uma reação individual à miséria cotidiana. Buscamos, das mais diversas formas, a fuga da vida ordinária, opressiva e cansativa. Uma exposição de emoções com alta demanda e baixa oferta, expressa nas propagandas das bets, busca atrair o trabalhador por aquilo que ele busca. 

Ocorre que a emoção é mercantilizada no capitalismo – “boa” ou “ruim” – ainda mais o é a fragilidade emocional da classe trabalhadora. O Brasil lidera o planeta em casos de transtornos de ansiedade segundo a OMS; nas Américas, o Brasil só perde para os EUA em casos de depressão. Ótima oportunidade, tanto para a indústria farmacêutica como para as casas de aposta lucrarem.

Sendo assim, que se aposte. Porque o gosto de um palpite correto, de um lance de sorte, pode, quem sabe, te fazer feliz. Mas para esse efeito, é preciso assumir um risco. Deste risco, seria possível criar dinheiro a partir do dinheiro, caso se tenha sorte. 

“Que pena, não ganho há algum tempo, mas, quem sabe, na próxima.” Não é nem a clássica fórmula de Marx D-M-D’, a lógica se aproxima mais ao do mercado financeiro, D-D’. 

Não poderia ser menos irônico que o tipo de estímulo econômico que gera o movimento da casa de aposta, que espolia trabalhadores, segue a lógica básica da  mais poderosa forma de acumulação de capital. A mesma fórmula da acumulação do mercado financeiro é, também, a fórmula econômica que, para além de, para burguesia, gerar o capital, subjetivamente, à um apostador indeterminado, produz o sentimento de recompensa em um jogo de aposta. Mas nada além, poderiamos considerar, do sentimento. Temos, contudo, uma diferença importante, extravagante, entre um apostador endividado e um agente bilionário. Seria redundante e tosco explicar a diferença, mas façamos um mínimo.

Talvez, as sensações geradas possam ser parecidas, mas são isto, sensações. Na tela do celular, após um dia exaustivo de trabalho e sem acesso ao lazer de qualidade, essas raras sensações ganham ainda mais força. Destes  sentimentos poderosos que se fundamenta a vontade de repetição, o “replay”. A casa de aposta gera a ilusão de que um trabalhador explorado, que não pode escapar do circuito D-M-D’, alcançará o fetiche especulativo da rentabilidade pura D-D’. 

Um brincar de agente financeiro. É o suprassumo de uma cultura capitalista neoliberal, cuja base se sustenta em uma subjetividade financeirizada: essa subjetividade tem seus produtores e produtos, como Pablo Marçal. 

A Faria Lima já nos prova o quanto o Capital é viciante para a classe dominante. Mas um apostador, quando raramente ganha algo, não aumenta o seu capital, uma obviedade. Recorrendo ao exemplo daquele que sofre um vício, o dinheiro será gasto com novas apostas e, consequentemente, perdido. Também se vai o salário baixo, empréstimos, se necessário, agiotas. Daí em diante, a vida se perde. 

Se pensarmos no neoliberalismo brasileiro enquanto uma determinada forma de acumulação capitalista, cuja hegemonia do mercado financeiro nas últimas décadas se estabeleceu não só pela política de crédito e consumo dos governos petistas, mas também pela ideologia que exalta a figura do empreendedor, de um sujeito capitalista ideal que gera sua riqueza por mérito, a massificação do consumo das bets pode ser considerada como um efeito cultural direto desta mesma economia que fez um Pablo Marçal um ator político com ampla base social. Tal ideologia se fortaleceu com os ataques ao trabalhador e ao trabalho, de Temer e Bolsonaro, que continuaram a ser geridos por Lula. A adoração do dinheiro, o vício do risco.

Vemos, dessa forma, na cultura de massas – e, sim, as casas de aposta online são parte da cultura de massas contemporânea, tema da principal música do carnaval de 2025  – uma expressão direta da decadência do capitalismo brasileiro e das péssimas condições objetivas e subjetivas que são impostas à classe trabalhadora. Ela gasta seu salário, já miserável pela extração de mais-valia, em jogos de azar, que lucram com a tomada de uma parte da renda de dezenas de milhões de trabalhadores. 

Viciada naquela mesma sensação que um “apostador” de ações sente diariamente, a diferença é que um deixa de comprar alimentos e fazer compras devido a sua “diversão”, o outro, quando perde na bolsa, muda para um perfil mais conservador nos jogos do mercado financeiro e continua a acumular capital. Em síntese, estamos vendo diante de nossos olhos uma epidemia cultural com expressões psicológicas e impactos econômicos, produto de um capitalismo sádico. 

A regulamentação de uma epidemia pelo governo Lula

Estima-se que, em 2024, os brasileiros destinaram cerca de R$ 240 bilhões às apostas online. Os EUA lideram com 66 milhões de usuários, o Brasil detém 42,5 milhões de usuários únicos. Cerca de 40% das apostas ainda ocorrem em plataformas ilegais e movimentam mensalmente 8 bilhões no Brasil. As casas de aposta são investigadas e ligadas à lavagem de dinheiro, com figuras como Gusttavo Lima, ex-presidenciável, envolvidas. Há muito dinheiro e diversas frações da classe dominante brasileira envolvidas neste esquema sujo de lucro com a miséria subjetiva da classe trabalhadora.

A lei que liberou o funcionamento das Bets no Brasil foi aprovada pelo governo golpista de Temer – momento em que também ocorreram ataques intensos contra os trabalhadores. Durante o governo Bolsonaro, permaneceram sem nenhuma regulamentação.  Em janeiro de 2024, nota do gov.br exaltou que Lula sancionou a “Lei das Bets”. A nova lei traria “segurança jurídica para o mercado e estabeleceu critérios sobre tributação, normas para a exploração desse serviço e define a distribuição da receita arrecadada”. Assim como o governo Lula regulamentou ataques às condições de trabalho, regulamentou este mecanismo de espoliação direta dos salários dos trabalhadores. 

Até então, em 2024, não havia surgido uma crítica de alcance de massas às casas de apostas online. O que deixou o governo federal numa posição confortável De certa forma, o posicionamento crítico da invasão das casas de aposta online na sociedade brasileira ganhou peso pela temática da saúde pública, com diversos especialistas e profissionais da saúde apontando os efeitos nocivos da massificação das apostas, tendo uma expressão patologizada chamada “transtorno do jogo patológico” e chamada com o nome correto: uma epidemia. 

A atenção do governo Lula, contudo, só se intensificou quando sentiu ele próprio os efeitos dessa epidemia: cerca de 21% dos R$ 14 bilhões destinados ao Bolsa Família, ou seja, R$ 3 bilhões, foram gastos com apostas via pix, somente no mês de agosto de 2024. 

“Subestimamos os efeitos nocivos e devastadores sobre o que isso causa à população brasileira. É como se a gente tivesse aberto as portas do inferno, não tínhamos noção do que isso poderia causar […] Principalmente essa ação muito ofensiva das casas de jogos e o uso de publicidade extrema”, disse Gleisi em entrevista concedida à Folha de São Paulo, em setembro de 2024. No mínimo cínico dizer que o governo “não tinha noção”. Admitir incompetência pela falta de estudos prévios antes da regulamentação que legitimou as grandes casas de aposta online nacionais e internacionais soa como um “mea culpa”. 

A CPI aberta pelo Congresso surgiu como uma espetacularização explicada pelos prejuízos que quase R$250 bilhões fora da circulação da economia brasileira gera para setores da própria classe dominante brasileira. Há, também, uma competição entre as casas de aposta com o aval do governo e sem o aval e envolve grandes clubes de futebol no Brasil.

A hegemonia das casas de aposta e a epidemia que lhes garante o lucro são expressão das condições socioeconômicas da classe trabalhadora brasileira. Contudo, sua viralização pelo mundo aponta para uma crise subjetiva de caráter internacional, fruto da decadência do sistema social vigente. Neste cenário, a burguesia encontrou mais uma oportunidade de negócio, com a alta demanda emocional da classe trabalhadora e a baixa oferta real que preencha a vida de sentido.

“Eu aposto. Porque a emoção não tem replay”. Diz o slogan de uma Bet. Contudo, sua propaganda é justamente para que as pessoas repitam apostas,e joguem de novo, e de novo. 

É preciso compreender as apostas online como mais do que um mero vício individual. Elas expressam a subjetividade moldada por uma sociedade de precarização generalizada, de emoções capturadas e exploradas pelo capital. A financeirização da vida não se restringe ao topo da pirâmide: ela penetra o cotidiano de quem vive de salário, transformando até a escassez de sentimentos de empolgação em fonte de espoliação. A tragédia das bets é um sintoma de uma crise mais profunda, social e existencial.

É necessário um combate de fundo às condições sociais que tornam as Bets e o Tigrinho tão atrativos. Isso implica revogar as reformas que o governo Lula mantém intactas, romper com a lógica de uberização também regulada pelo Governo Federal . A esquerda que quiser se enfrentar de verdade com esse fenômeno precisa sair do discurso técnico e assumir a denúncia frontal: estamos diante de um sistema que lucra com a miséria e a destruição da vida. E que precisa ser superado.

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