Revista Casa Marx

Revolução Permanente no Século XXI: Internacionalismo Revolucionário

Bernardo Camara

Paris, 2025. O Ato Internacionalista Revolucionário organizado pela Révolution Permanente, organização irmã do MRT na França, e pela Fração Trotskista-Quarta Internacional foi emocionante. As notas despertas por essas cordas formavam um acorde maior, que entoava hoje mais do que nunca a necessidade urgente da revolução socialista e do comunismo frente a decomposição e a barbárie capitalista. Poderosos fios de continuidade ressoavam lições deixadas em um outro tempo, quase um século anterior, mas em uma mesma cidade: Paris, 3 de setembro de 1938, quando foi fundada a Quarta Internacional.

Em 1938, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, Leon Trótski diagnosticava com precisão a decadência do capitalismo e a tragédia a que as direções traidoras levariam ao proletariado e a toda a humanidade. Em seu Programa de Transição, aprovado na fundação da Quarta Internacional, afirmava que as condições objetivas para a revolução socialista estavam maduras – ou mesmo começando a apodrecer – diante do impasse histórico que o sistema capitalista impunha à humanidade1 . A burocratização stalinista, a ascenção do fascismo e as derrotas do proletariado internacional pavimentavam o caminho para uma nova guerra mundial imperialista. Ele concluiu que essa crise histórica da humanidade se resumiria à crise da direção do proletariado e que essa contradição só poderia ser resolvida pela Quarta Internacional, apresentando ao mundo um programa de reivindicações transitórias que ligava as demandas imediatas das massas à perspectiva da conquista do poder pelo proletariado.

Hoje, em 2025, a situação política mundial não é mais precisamente comparável às vésperas da Segunda Guerra, mas novamente se encontra suspensa sob o fio da navalha. Estamos em um momento de grande instabilidade social, econômica e política internacionalmente. “Excepcionalmente volátil, dinâmico e instável da história mundial”2 , nas palavras do ex-conselheiro do Departamento de Estado dos EUA, Philip Zelikow. A vitória de Donald Trump nos Estados Unidos só fez se aprofundar a volatilidade das já precárias condições estruturais que mantêm o equilíbrio capitalista. O imperialismo, pressionado por sua crise, retoma o militarismo como válvula de escape. A reacionária ofensiva russa na Ucrânia é parte de uma escalada militar que reflete essa situação internacional cada vez mais tensa e instável. É muito nítida ao menos um sentimento entre os jovens – e possivelmente a memória entre os mais velhos – de que a Europa enfrenta tensões que se tornam alarmantes. Segunda Claudia Cinatti, também do PTS na Argentina:

“A ordem neoliberal liderada pelos Estados Unidos, com uma liderança incontestada no imediato pós-Guerra Fria, está em uma crise provavelmente terminal. O mundo ‘globalizado’ dirigido de Washington está cedendo lugar a uma nova configuração ‘pré-1914’. No contexto de uma degradação das democracias liberais e tentativas ‘cesaristas’, voltaram a ganhar destaque as tendências protecionistas nos países imperialistas […], as rivalidades entre as grandes potências e a guerra no coração da Europa, combinada com outra guerra de dimensão internacional no Oriente Médio. Ainda não estamos nos estágios iniciais da ‘terceira guerra mundial’, ou seja, de um confronto militar aberto pela hegemonia mundial, mas um interregno perigoso se abriu.”3 

Nesse sentido, o momento atual é mais comparável ao período imediatamente anterior à Primeira Guerra Mundial (1914), marcado por rivalidades entre potências, crises econômicas e políticas, e o risco crescente de um conflito global ampliado. A lembrança do cenário pré-1914 torna-se então muito pertinente. As limitações da intervenção ocidental na Ucrânia, a guerra comercial e tecnológica entre EUA e China e a emergência de novas alianças geopolíticas, como a entre Rússia e China, penetram todos os continentes em uma nova corrida por um novo espólio das semi colônias, em condições ainda mais duras que as anteriores – na África, na América-Latina, na Ásia. E pressionam o imperialismo europeu no sentido de uma enorme ampliação dos gastos e propaganda das forças militares. Em meio a crise nas relações transatlânticas, a Alemanha apresentou planos bilionários para ampliar seus arsenais. Para além do aspecto simbólico, fraturas entre os EUA e a maior potência industrial europeia, podem traumatizar e enfraquecer o núcleo do esqueleto de sustentação à unidade europeia. Embora essa escalada bélica seja justificada por discursos sobre a “ameaça russa” e a defesa dos “valores europeus” e “democracia”, na realidade as potências europeias compartilham a mesma lógica imperialista dos EUA, buscando assegurar seus mercados e lucros, inclusive apoiando o genocídio do povo Palestino em Gaza, e perseguição aos que não se calam frente a violência brutal e covarde do enclave imperialista. Esse é o caso do Estado Francês, que apesar das falas crescentemente demagógicas – após meio milhão de pessoas marcharem nas ruas de Londres – persegue e no próximo dia 18 de Junho irá julgar o trabalhador ferroviário e militante do Revolution Permanente, Anasse Kazib por publicar um tweet denunciando o genocídio. 

Os Fios de Continuidade e a resposta do Trotskismo para o século XXI

No encontro4 se mostrou uma síntese inspiradora, a memória, o comunismo como movimento real, o legado do marxismo revolucionário para a atualidade. Se apoiar em ombros de gigantes e carregar um quantum da história da humanidade sobre nossos próprios ombros. Somos comunistas e queremos construir uma alternativa real aos caminhos do capitalismo decomposto. 

Nesse sentido, o internacionalismo consequente passa pela luta de classes nos diferentes países, da luta do proletariado em cada país contra sua própria burguesia e, por consequência, da construção de partidos revolucionários nacionais em cada um desses países. A destruição da burguesia dos países imperialistas seria um grande passo na revolução mundial. Lênin em 1915, em polêmica com os oportunistas que apoiavam a guerra mundial “em defesa da pátria”, dizia que via na derrubada revolucionária da burguesia imperialista não só uma condição para escapar ao colonialismo, mas também uma forma de acelerar imensamente a revolução internacional. Trótski em 1938 contra a teoria estalinista do “socialismo em um só país” dizia:

“O internacionalismo proletário não é um slogan vazio, mas uma necessidade histórica objetiva. A luta pela revolução socialista mundial exige a construção de partidos revolucionários em cada país, capazes de dirigir a classe trabalhadora. A teoria do ‘socialismo em um só país’ é uma capitulação ao nacionalismo burguês e uma traição ao internacionalismo proletário. A vitória da revolução socialista só pode ser assegurada através da ação conjunta e coordenada dos trabalhadores de todos os países.”5 

A grande tarefa de construir partidos nacionais fortemente internacionalistas e anti-imperialistas por todo o globo, inclusive dentro de importantes estados nacionais imperialistas, como EUA, França e Alemanha, foi uma das necessidades mais importantes atacadas pelos partidos traidores e contra-revolucionários. A luta por construir esses partidos é uma das continuidades que queremos resgatar do melhor da tradição do marxismo revolucionário. Ainda mais em tempos de guerra, quando a burguesia e seus agentes dentro do movimento operário tentam fazer a classe trabalhadora ir à guerra identificando seus inimigos como trabalhadores de outros países – apoiada no racismo, na xenofobia e no colonialismo, a ideologia burguesa prepara para esses momentos. Por isso queremos construir partidos nacionais que reúnam os setores mais conscientes e combativos da juventude, da classe trabalhadora, do movimento de mulheres, LGBT’s, do povo negro e de todos os povos racializados, e consigam em cada um dos países se dirigir aos setores mais precarizados da classe trabalhadora e das massas. 

Não somos ainda esses partidos – assim como não somos ainda a Quarta Internacional. Mas deixamos explícita nossa intenção de contribuir decisivamente para que esses partidos existam em pelo menos algumas dezenas de países de diferentes continentes. Para a reconstrução da Quarta Internacional. E chamamos a todos aos que nos acompanham nas lutas, nas discussões teóricas, na luta ideológica e na militância política em mais de 14 países através da rede internacional La Izquierda Diario, a serem parte da luta pela construção desses partidos.   

A Fração Trotskista pela Quarta Internacional (FT-QI) se propõe a retomar os fios de continuidade da tradição revolucionária, resgatando os princípios da grande estratégia contidos na Revolução Permanente e atualizando o Programa de Transição, de Leon Trótski, para enfrentar os dilemas do século XXI. Em um cenário marcado pela restauração capitalista da ex-União Soviética, pelas guerras imperialistas e por uma nova onda de autoritarismo, a FT-QI afirma: não há saída reformista para a crise atual.

A traição da social-democracia e do stalinismo são acontecimentos históricos que levaram a tragédias. As experiências neo-reformistas, como Syriza e Podemos, se  mostraram como farsas. Nesse momento, com o avanço do militarismo e da internacional da extrema-direita, se coloca em relevo a necessidade urgente de um programa revolucionário baseado na independência de classe. 

Entre a Primavera de 1848 e a Tormenta do Século XXI

Nas últimas décadas, períodos de intensa agitação social e revoltas populares surgiram em diversas partes do mundo, lembrando os eventos revolucionários de 1848. Manifestações e protestos emergiram simultaneamente em diferentes regiões, de Santiago a Beirute, de Paris a Argel, de Hong Kong ao Haiti. Embora ocorram de forma dispersa, muitos desses movimentos compartilham características estruturais comuns: surgem em resposta à opressão e à profunda desigualdade social, mas frequentemente carecem de uma direção política unificada e de um horizonte revolucionário definido.

No livro Revolutionary Spring (2023), o historiador Christopher Clark traça um paralelo entre os levantes de 1848 e os movimentos contemporâneos6 . Ele argumenta que, caso uma nova onda revolucionária ocorra, ela poderá refletir a dinâmica dos conflitos do século XIX: fragmentada, contraditória e impulsionada por uma energia caótica. Segundo Clark, muitas das contradições daquele momento também se expressam hoje, como a instabilidade das lideranças, a mistura de ideologias incompatíveis e o improviso das dissidências políticas. As lutas de 1848, que tentaram estabelecer alianças temporárias entre diferentes classes sociais, acabaram anunciando desilusões e traições futuras. Da mesma maneira, a chamada “Primavera Árabe” (2010–2012), apesar de ter despertado esperanças revolucionárias ao redor do mundo, foi rapidamente sufocada por golpes militares, repressões violentas e intervenções externas, como ocorreu no Egito, na Síria e na Líbia.

Mesmo os episódios mais marcantes de mobilização popular, como a ocupação da Praça Tahrir, não conseguiram se transformar em revoluções bem-sucedidas. A interferência imperialista, a falta de uma alternativa política independente, da classe trabalhadora e a fragmentação social, agravada por décadas de neoliberalismo, impediram que as revoltas se transformassem em revoluções. Em países como França, Espanha e Grécia, grandes manifestações, incluindo o 15M e diversas greves gerais, tiveram que enfrentar não apenas os governos, mas também a postura oportunista das lideranças reformistas e neo-reformistas. Movimentos semelhantes surgiram entre 2018 e 2019, com levantes no Chile, Colômbia, Sudão, Myanmar e EUA, nos quais predominou uma dinâmica de revolta dispersa, sem uma estratégia unificadora.

Há conexões profundas entre os séculos XIX e XXI. Tanto as revoluções de 1848 quanto os atuais processos de contestação compartilham a simultaneidade de levantes interligados, confusão ideológica e a ausência de uma organização consolidada. Isso abre caminho para um cenário instável, mas no qual o novo ainda luta para emergir enquanto o antigo ainda resiste. O movimento operário atual, apesar de ter sido abalado por derrotas históricas e pela fragmentação, começa a demonstrar sinais de recomposição. Greves massivas contra a reforma da previdência na França, o aumento da sindicalização nos Estados Unidos e mobilizações de trabalhadores em países como Alemanha, Reino Unido e Grécia evidenciam que, diferentemente de 1848, a classe trabalhadora atual é numericamente superior e mais experiente. No entanto, como dizem Emilio Albamonte e Matias Maiello:

“Se, como sugere Clark, não há solução não revolucionária para a ‘policrise’ do capitalismo e a perspectiva de uma onda revolucionária como a de 1848 pode ser pensada hoje, a conclusão que precisamos para o presente é o oposto [do que sugerem coalizões]. Se há algo que as múltiplas e variadas revoltas das últimas décadas mostraram é que as correntes neo-reformistas e os ‘populismos de esquerda’ foram incapazes de responder às demandas sociais e democráticas dos movimentos. […] A maior contribuição dos trabalhadores alemães era organizar com toda independência o partido do proletariado, ‘seu grito de guerra deve ser: a revolução permanente”7 

Ou seja, é imperativo superar diversas correntes políticas e ideológicas que fragmentam a luta da classe trabalhadora. Entre os principais entraves, destacam-se as burocracias sindicais e os partidos reformistas clássicos, neo-reformistas e de conciliação de classes que atuam para conter, desviar ou neutralizar os processos de mobilização, funcionando como verdadeiros freios internos ao desenvolvimento de uma alternativa revolucionária. Soma-se a isso a fragmentação da classe trabalhadora, dividida entre o setor tradicional e os trabalhadores precarizados, o que demanda a construção de uma nova identidade operária capaz de unificar e organizar as lutas, através de sindicatos democráticos e combativos, que permitam ao mesmo tempo que das escolas de guerra de cada greve surjam organismos de tipo soviético. Além disso, as ideologias que desvinculam os processos de mobilização da perspectiva de classe, configuram-se como barreiras adicionais à formulação de uma estratégia socialista revolucionária. Por fim, o nacionalismo burguês aliado à ilusão parlamentar – fomentados por setores da esquerda institucional e partidos como o PT no Brasil – direcionam as energias das mobilizações para soluções circunscritas aos limites do sistema. As experiências recentes demonstram que revoltas isoladas não são suficientes para promover mudanças estruturais. Sem um projeto revolucionário claro e uma organização internacional sólida, esses levantes acabam sendo contidos, desviados ou reprimidos. A ausência de uma alternativa revolucionária capaz de articular volumes de força e bem estruturada se apresenta como o maior obstáculo para uma transformação social radical. Diante do cenário atual, marcado por instabilidade extrema, crise ecológica, conflitos entre potências e o desgaste das democracias liberais, torna-se urgente uma direção política capaz de unificar a luta contra o capitalismo e transformá-la em um projeto revolucionário concreto.

Pela reconstrução da Quarta Internacional 

Por isso, como dizia Trótski em 1938, a missão histórica imposta aos marxistas revolucionários na atualidade consiste na reconstrução da Quarta Internacional. Essa tarefa não demanda uma simples imitação, mas sim a criação de uma organização dinâmica e viva, profundamente enraizada nas lutas concretas, capaz de articular as demandas imediatas das massas com a conquista do poder operário. Conforme delineado no Programa de Transição, é essencial formar um partido revolucionário mundial que opere sob os princípios do internacionalismo revolucionário e da luta de classes em todos os países em que constrói partidos nacionais.

A alternativa ao caos instaurado pelo capitalismo não é encontrada na social-democracia reciclada nem nos populismos de esquerda domesticados, mas na revolução socialista internacional. Mesmo entre 1938 e 2025 terem ocorrido inúmeras transformações, a essência da crise permanece a mesma: a contradição entre forças produtivas avançadas e relações sociais atrasadas, entre a maturidade objetiva da revolução e a crise que assola a humanidade, até hoje, a crise da direção revolucionária.

Portanto, a reconstrução dessa direção — combativa, internacionalista, socialista — surge como a única saída. Como apontava Trótski, “não há meio-termo, nem alternativa. A revolução socialista é a única esperança para a salvação da civilização.”8 

Notas

1. https://www.iskra.com.br/produtos/o-programa-de-transicao/

2. Citado no artigo Rumo a uma configuração pré-guerra entre potências no cenário internacional? de Emílio Albamonte e Matias Maiello, do PTS, partido da Fração Trotskista na Argentina. “Estamos diante de um período. Durante os próximos dois ou três anos, a situação provavelmente se estabilizará de forma mais duradoura em uma direção ou outra: uma guerra mais ampla ou uma paz incômoda. Existe uma séria possibilidade de uma guerra mundial”. Em https://www.esquerdadiario.com.br/Rumo-a-uma-configuracao-pre-guerra-entre-potencias-no-cenario-internacional

3. https://www.esquerdadiario.com.br/A-ofensiva-russa-na-Ucrania-e-os-espectros-de-uma-situacao-pre-1914#:~:text=ordem%20neoliberal%20liderada%20pelos%20Estados%20Unidos

4. https://www.esquerdadiario.com.br/Mais-de-2-000-pessoas-no-ato-internacionalista-com-Myriam-Bregman-e-Anasse-Kazib-em-Paris

5. TROTSKY, Leon. The Transitional Program for Socialist Revolution. Chapter 2: “The Proletariat and Its Directions”. Available at Marxists.org: https://www.marxists.org/archive/trotsky/1938/12/progtrans/ch02.htm

6.  Citado no artigo A situação mundial e o espectro da primavera revolucionária de 1848 de Emílio Albamonte e Matias Maiello. https://esquerdadiario.com.br/A-situacao-mundial-e-o-espectro-da-primavera-revolucionaria-de-1848

7. Idem.

8. TROTSKY, Leon. The Permanent Revolution, 1930. Available at Marxists.org:

https://www.marxists.org/archive/trotsky/works/1930-rev/index.htm

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