Juliane Feix Peruzzo
Gabriel Fardin Nogueira Carreira
Este artigo foi originalmente publicado no livro “O trabalho na encruzilhada do tempo presente Virtualização, Precarização e Controle”, da editora Edufal (2023), organizado por Manuella Aragão Pinheiro, Reivan Marinho de Souza. Neste artigo tratamos do desenvolvimento técnico-científico da Inteligência Artificial, assim como a evolução da capacidade de armazenamento e processamento de dados, recolocam o debate filosófico a respeito da interpretação da capacidade intelectual humana e a possibilidade de sua replicação através de meios artificiais. Por outro lado, a Inteligência Artificial passa a se incorporar nas mercadorias e nos processos produtivos, de modo a mediar as relações sociais capitalistas, laborativas e interpessoais. Neste sentido somos impelidos a compreender tal tecnologia de forma materialista histórica para contribuir com as pesquisas de cunho marxista que são interpeladas por essas tecnologias, assim como para o debate filosófico em torno da Inteligência Artificial.
“Nada do que é humano me é estranho” – Terêncio, Públio
Introdução
A Inteligência Artificial não é um campo de pesquisa propriamente recente em perspectiva histórica, “embora seu aparecimento como disciplina científica só tenha ocorrido a partir da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a ideia de construir uma máquina pensante ou uma criatura artificial que imitasse as habilidades humanas é muito antiga.” (TEIXEIRA, 2019, p.5). Porém atualmente os debates em torno da Inteligência Artificial têm ganhado especial relevância devido aos avanços tecnológicos e a evolução da produtividade de componentes informacionais, produzindo uma capacidade inédita de processamento e armazenamento de dados, assim como a integração dessas tecnologias às mercadorias. De tal forma que as Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) passam a desempenhar inúmeras funcionalidades na sociabilidade, transformando a sociedade e o mundo do trabalho (ANTUNES, 2020, p.14). Tal como podemos observar em nossos próprios aparelhos celulares, nos aplicativos de rede social e na chamada “economia de plataforma”, que vem gerando uma nova escala de acumulação de capitais, em esfera global.
“Entram em cena sistemas lógicos que, a partir dos algoritmos, operam de maneira automatizada por meio dos softwares de inteligência artificial, com impacto profundo no movimento de acumulação global do capital, isto é, máquinas aprendendo com outras máquinas, desde a esfera produtiva até o mercado financeiro – a exemplo dos chamados robôs investidores” (ARAÚJO, 2021, p.25).
É muito comum nos depararmos com afirmações de que “as máquinas estão aprendendo”, constituindo inclusive conceitos técnico-científicos, como por exemplo, o machine-learning (aprendizado de máquina). Conjuntamente retornamos a também não inovadora imagem distópica, em filmes, séries, produções artísticas, etc, onde máquinas e robôs superam e dominam seres humanos, sendo capazes de pensamento e discernimento próprios, criando seus próprios valores e arbítrios.
Nosso ponto de partida é a compreensão, apresentada por Marx ainda século XIX (MARX, 1987 p.188), que a particularidade humana está na capacidade de realizar trabalho, ou seja, a capacidade de interagir e transformar teleologicamente a natureza e meio a partir de condições materiais historicamente pré-estabelecidas. Deste ponto de vista, compreendemos a Inteligência Artificial como um produto do trabalho humano.
Neste sentido a reificação1 de atribuir inteligência a um artefato tecnológico nos é compreendido como um processo de fetichização2 , no marco em que o modo de produção capitalista aliena os trabalhadores dos meios de produção, assim como do conhecimento dos processos produtivos, ao mesmo passo em que inverte a percepção social e suas relações, transformando o mundo dos homens no mundo das coisas/mercadorias. Da mesma forma, a ciência burguesa imputa ideologicamente sobre a Inteligência Artificial sua mistificação antropomorfizando aparatos tecnológicos do meio informacional.
Por tanto, nosso objetivo, neste artigo, é apresentar algumas chaves explicativas visando desfetichizar a Inteligência Artificial, retirando o véu reificante que lhe é conferido, desvelando-a como produto do trabalho em seus distintos níveis. Para tal, abordaremos a Inteligência Artificial através da investigação da matéria a fim de desvendar a natureza da sua “inteligência”.
A máquina de Turing: computação, processamento e algoritmos
Como explica TEIXEIRA (2009, p.2), mesmo com a massificação do uso informacional na sociedade, o computador é ainda uma máquina cujo funcionamento interno é desconhecido pela maioria dos usuários. A incompreensão de sua funcionalidade é ainda mais complexa por não estar visualmente aparente3 . É sobre este terreno de estranhamento que a mistificação da Inteligência Artificial, teórica e ideológica, se propaga. Para desfazer esta mistificação, investiguemos agora a matéria tecnológica da Inteligência Artificial até então vigente.
As tecnologias de Inteligência Artificial mais avançadas na contemporaneidade se desenvolvem na área informacional. Grande parte dos avanços científicos e funcionais da Inteligência Artificial dos últimos anos, seja no campo de pesquisa, seja nos recursos já disponíveis nas mercadorias, se devem ao grande salto tecnológico e produtivo na área da computação, permitindo enorme capacidade de processamento e armazenamento de dados.
Teixeira ajuda a entender o funcionamento de um computador resgatando o experimento da máquina de Turing. Trata-se de uma máquina mecânica, mas que pode realizar operações distintas a depender de como era programada. Os procedimentos e a programação da máquina seguiam um princípio geral que “tem como ponto de partida a noção matemática de procedimento efetivo. As instruções que damos para a máquina têm de ser executadas passo a passo, formando uma sucessão.” (TEIXEIRA, 2009, p.8).
O conjunto de instruções submetidas à máquina corresponde à programação, da mesma maneira que dizemos que os computadores têm um programa, de modo que a máquina seria capaz de efetuar qualquer operação aritmética. A máquina de Turing4 apresentou de forma mecânica o princípio básico da computação.
“a descoberta de Turing consiste no fato de ele ter demonstrado, através da invenção de sua máquina, que toda e qualquer tarefa que possa ser representada na forma de um procedimento efetivo pode ser mecanizada, ou seja, pode ser realizada por um computador. Com sua invenção ele demonstrou ademais, que todo e qualquer tipo de computador pode, em última análise, ser reduzido a uma máquina de Turing, pois, embora os computadores possam diferir entre si quanto à sua finalidade e até mesmo ao material de que são compostos, eles podem ser imitados por sua máquina. E isso sem dúvida torna a máquina de Turing um verdadeiro princípio universal.” (TEIXEIRA, 2009, p.14)5.
Segundo Teixeira, o que torna o experimento da máquina de Turing interessante “é a possibilidade de mecanizar tarefas executadas pela nossa mente, desde que elas possam ser representadas por símbolos e na forma de procedimentos efetivos”. Ou seja, desde que sigam o princípio geral matemático de “procedimentos efetivos”, “um conjunto finito de instruções não ambíguas que nos dizem o que fazer passo a passo, e que nos garantem a obtenção de um resultado no final” (TEIXEIRA, 2009, p.15).
Segundo Teixeira (2009, p.15) é este princípio que nos permite alcançar uma “representação elétrica do pensamento”6 , de forma que os computadores modernos utilizam circuitos eletrônicos que realizam eletricamente o que máquina de Turing executa mecanicamente. As vantagens dessa diferença de estado material são evidentes. Quando falamos de correntes elétricas, estamos falando de elétrons, ou seja, passamos das proporções mecânicas para proporções atômicas. Sendo assim, as máquinas que funcionam com circuitos elétricos são capazes de infinitas vezes mais operações que a máquina mecânica de Turing.
Os computadores operam realizando contas matemáticas – “procedimentos efetivos” – e os dados utilizados para contas são formados de cargas elétricas armazenadas em conjuntos binários de 0 e 1, ou seja, onde 1 é carregado eletricamente e 0 é sem carga elétrica. Através da linguagem binária é possível produzir todos os tipos de numerais para realização das contas. Os circuitos elétricos representam a primeira base para operações matemáticas básicas – soma, subtração, multiplicação, divisão, etc7 – a serem executadas com as cargas elétricas. Portanto, os algoritmos formulam instruções dos procedimentos matemáticos que devem ser operados eletricamente pela máquina.
Deriva-se daí uma conclusão importante, uma vez que “procedimentos efetivos” são instruções de encadeamentos lógicos, não ambíguos e finitos, o objetivo a ser alcançado já está previamente localizado no processo de programação. Ou seja, a operação a ser realizada já foi teleologicamente construída por seu programador, e é objetivada em um algoritmo, o código de programação, em linguagem computacional. Sendo assim podemos compreender que o algoritmo é produto de um trabalho intelectual realizado pelo programador, que é incorporado à máquina, compondo uma mercadoria, ou sendo o próprio algoritmo a mercadoria, quando comercializado enquanto propriedade intelectual.
Por outro lado, a máquina de Turing também nos permite realizar um paralelo entre um algoritmo computacional e uma maquinaria industrial. O computador é antes de mais nada uma máquina, o algoritmo fornece instruções para seu funcionamento elétrico, dizendo como e quando processar os dados, quais dados utilizar, etc, ou seja uma programação. Assim como existem máquinas autônomas, que realizam atividades cíclicas, reproduzindo movimentos automatizados, com auxílio e supervisão humana, mas sem depender de seus comandos – automação industrial –, também existem algoritmos que atuam autonomamente, se alimentando de interações humanas de forma automatizada. Marx nos mostra no volume I do O Capital que o conceito da automação industrial já estava presente desde os primórdios das máquinas a vapor na maquinaria capitalista, substituindo as capacidades manuais da força de trabalho, e subsumindo os trabalhadores até tornarem apêndices de sua engenharia, ritmo e capacidade produtiva.
“Primeiramente, na maquinaria adquirem autonomia, em face do operário, o movimento e atividade operativa do meio de trabalho. Este se transforma, por si mesmo num perpetuum mobile industrial, que continuaria a produzir ininterruptamente se não se chocasse com certos limites naturais inerentes a seus auxiliares humanos: debilidade física e vontade própria.” (Marx, 1987, p.321)
Podemos entender, portanto, a inteligência artificial como uma automação computacional informacional de uma atividade intelectual objetivada correspondente a um trabalho intelectual anteriormente realizado que compõe um maquinário digital (ANTUNES, 2020, p.14)8 . Esta compreensão nos ajuda a entender a primeira fundação da Inteligência Artificial enquanto um processo lógico – trabalho intelectual – automatizado e objetivado em um programa de computador, uma automação algorítmica9 . Assim como as máquinas industriais parecem ter “vida própria” quando seus movimentos ganham autonomia perante seus operadores, a inteligência artificial também parece ganhar “inteligência própria” perante seus usuários.
Uma aproximação marxista da Inteligência Artificial
A Inteligência Artificial é conceitualmente particularizada, no meio científico, por sua capacidade de fazer com que máquinas “aprendam” ou então possam ser “ensinadas”. Ou seja, existe um aperfeiçoamento processual dos resultados obtidos pelas operações lógicas de sua programação.
De outra forma podemos entender que uma mesma programação obtém resultados diferentes, respeitando sua finalidade. A mesma programação que pode “aprender” a associar uma imagem à palavra “gato”, também pode “aprender” a identificar uma imagem que é associada à palavra “avião”, como nos explica Hilary Mason (2021)10 , especialista em ciências da computação. Isso ocorre, pois o algoritmo compara os dados fornecidos buscando criar um padrão que pode ser associado com uma informação previamente dada, ou entregar informações que derivam da comparação.
Da mesma forma que analisamos anteriormente a respeito de “procedimentos efetivos”, o algoritmo contém um trabalho intelectual prévio, teleologicamente realizado, pelo seu programador. Ou seja, a finalidade do algoritmo da inteligência artificial já contém sua funcionalidade e seu objetivo antes de ser produzido. Porém, ao invés de uma operação que responde a comandos realizados por humanos, ou então uma automação que parte de uma mesma “matéria prima” para se chegar sempre ao mesmo “produto”, temos objetivado na programação um conjunto de operações que formam um raciocínio lógico genérico11 .
Ou seja, é objetivado o trabalho intelectual referente a um raciocínio lógico genérico, como de comparação, por exemplo, traduzido em “operações efetivas” e que, portanto, podem ser processadas em operações aritméticas e replicadas de forma automatizada. Dito de outra forma, através de trabalho foi objetivado uma atividade intelectual humana genérica de comparação numérica e criação de padrões aproximados dentro de um desvio padrão12 .
Deste ponto desprendemos concluir que para a máquina tudo que está acontecendo são comparações de dados através de contas matemáticas de 0 e 1. É importante considerar que na ciência da computação existe uma diferença entre dados e informação. Dados são sequências de códigos binários que o computador é capaz de processar e operacionalizar, ou seja, conjuntos de 0 e 1, e que possuem seu correlato simbólico, por exemplo, cada letra do alfabeto possui um código binário correspondente. O circuito elétrico processa o código binário, mas nos devolve suas representações simbólicas, assim como faz a máquina de Turing de forma mecanizada. Informação é um conjunto de dados que, organizados, possuem um sentido, e que, portanto, pode ser interpretado. Rigorosamente os computadores processam dados e nos entregam informação. Esta compreensão é importante para nos desvencilharmos da apreensão antropomórfica do “aprendizado” da Inteligência Artificial, uma vez que as operações matemáticas de um computador, e seus resultados estão associadas a representação simbólica que apenas nós humanos podemos interpretar (TEIXEIRA, 2009 p.20) em seu estado de saída, imagens, sons, etc.
Tomemos como exemplo o machine-learning onde, os dados informacionais são comparados infinitamente a partir de um banco de dados. O procedimento operado pelo computador compara dados buscando um padrão. Os dados são comparados a partir de seu posicionamento e agrupamento nas diferentes fontes de dados previamente disponibilizados (MASON, 2021)13 . Ao final, a automação algorítmica nos devolve um resultado, seja mostrando o conjunto de dados próximos e agrupados por suas semelhanças relativas, seja um resultado identificando um padrão que se buscava alcançar. Porém o resultado do ponto de vista da sua relevância, ou seja, sua correlação simbólica a elementos da realidade é desconhecido pelo computador, fazendo sentido apenas para um humano que compreende a informação que está sendo disponibilizada, cabendo a este interpretá-la14 .
Se por um lado compreendemos que a máquina é incapaz de diferenciar o que de fato está sendo processado em termos de sua relação simbólica e sua significância na realidade, por outro lado, a operação matemática realizada só ganha qualquer relevância, funcionalidade, sentido e efetividade quando externalizado de forma compreensível para um humano através de periféricos, imagens, sons, movimento, etc, sendo este o momento, na capacidade interpretativa e na “inteligência humana”, em que o resultado da operação processada se efetiva, uma vez que é o humano o capaz de compreender a representação expressa pela máquina, com seu correlato real e sua funcionalidade, e assim instrumentalizá-lo. Ou seja, a transformação de dados em informação só pode ser efetivada na capacidade intelectual humana15 .
Assim como uma maquinaria não é capaz de realizar trabalho, tão pouco a inteligência artificial realiza qualquer trabalho intelectual, ou tão pouco produz valor, sendo imprescindível a interação humana através da exploração do trabalho para que isso ocorra.
Inteligência Artificial e força de trabalho
Uma vez que a única inteligência presente na inteligência artificial está na capacidade humana de trabalho intelectual, podemos identificá-la nos seguintes momentos: 1. Na produção do conjunto informacional, incluindo o próprio algoritmo. 2. Coleta e abastecimento de dados para processamento e constituição do padrão da inteligência artificial. 3. Interpretação das informações pelo intelecto humano.
Deste ponto de vista podemos interpretar que a gestão algorítmica e as empresas de aplicativos que utilizam de inteligência artificial (Ifood, Uber, etc), para gerenciar força de trabalho, constrói uma relação laboral, na qual o trabalhador gerencia a si mesmo a partir de uma automação algorítmica, não apenas excetuando o trabalho físico, mas também o intelectual de interpretar e interagir com as instruções logísticas e gerências da inteligência artificial sobre sua própria atividade laborativa, ao mesmo tempo em que alimenta a automação com seus dados. Ainda que deslocado para o espaço virtual do meio informacional, não se trata de uma relação tão distinta da automação industrial verificada por Marx, como já mencionamos anteriormente (MARX, 1987, p.321), uma vez que de fundo temos uma máquina regendo o tempo e os ritmos do trabalho. A distinção aqui está na qualidade do processo de trabalho que interage com a automação, mesmo que o núcleo do trabalho de um entregador de aplicativo, por exemplo, seja o esforço físico, a sua subsunção acontece antes de tudo em seu “autogerenciamento”, enquanto que a forma com que acontece a atividade física em nada se “automatiza” ou se transforma qualitativamente, exceto em ritmo e intensidade. Ainda assim, com a aplicação da inteligência artificial, operando para a subsunção de trabalhos reconhecidos como “autônomos”, podemos compreender também que existe a extração de mais-valia relativa através da aplicação tecnológica na medida em que altera o ritmo de trabalho em função desta16 .
Portanto, o algoritmo dos aplicativos das empresas de plataforma são incorporados ao processo de extração de mais valia enquanto capital, trabalho intelectual morto, que ganha vida na medida que subsume o trabalho vivo. O mesmo podemos compreender sobre a inteligência artificial aplicada na Indústria 4.0, seja quando utilizadas como ferramenta de gestão para a patronal, seja quando incorporados nos processos produtivos fundidos às automações industriais e maquinaria17 .
Porém existem outros ramos de trabalho subsumido pela inteligência artificial, pois o trabalho necessário para produzi-la não se restringe apenas à produção do algoritmo e seus componentes computacionais. A capacidade não apenas de armazenamento, mas também de produção dos dados a serem processados é fundamental para seu desempenho. Os dados se incorporam à automação algorítmica como uma calibrador e matéria prima de sua funcionalidade a partir dos procedimentos lógicos de comparação e criação de padrões. Entretanto, como concluímos anteriormente, uma vez que os algoritmos possuem uma finalidade determinada, “treiná-lo” para executar determinado objetivo exige dados que representem as informações corretas correspondentes. Esse discernimento do que é válido e não válido só pode ser incorporado à automação através, como já mencionamos, de um trabalho intelectual humano.
Algumas inteligências artificiais utilizam do imenso volume de dados coletados na internet, textos, imagens, áudios, etc. Ou seja, trata-se da apropriação de um trabalho intelectual realizado globalmente por milhões de pessoas e que está objetivado em forma de dados informacionais disponíveis na web18 . Neste caso podemos também compreender que existe um enorme potencial de lucratividade nos marcos da gratuidade dos dados publicamente disponibilizados que se estendem desde sites, redes sociais e até conteúdo acadêmico e científico que podem ser apropriados e utilizados, sem ter de remunerar aqueles que os produziram. Uma vez disponibilizado publicamente a inteligência artificial pode acessá-los para formar bancos de dados na produção de algoritmos comercializáveis. Outras inteligências artificiais coletam dados em tempo real de usuários, de forma que essa atividade intelectual se incorpora no processo de manipulação, interação e instrumentalização do algoritmo, com pequenas micro interações cotidianas19 . Também é válido mencionar o aumento exponencial da mercantilização de dados informacionais por parte de empresas multinacionais cujo objetivo é coletar dados para venda e marketing, como, por exemplo, as redes sociais.
Entretanto, as inteligências artificiais também precisam de dados produzidos artificialmente, ou seja, é necessário criar uma interação artificial com o algoritmo para que ele constitua sua base de dados, especialmente quando se refere ao “treinamento” do algoritmo. Ainda assim existem muitas situações que as inteligências artificiais não capaz de alcançar seu propósito e precisam ser auxiliadas por trabalhadores humanos. Grandes empresas empregam sob condições extremamente precárias uma enorme força de trabalho espalhada pelo mundo, trabalhadores que vivem em grande parte no Sul da Ásia e África e trabalham para empresas como iMerit, Sama, Meta, Amazon e Alegionpara para produzir esses dados, ou seja, selecionando as respostas certas para a inteligência artificial obter um padrão e corrigindo suas lacunas de eficiência20 . Esses sãos os chamados “Turkers”21 . Em suma, o que esses trabalhadores fazem é avaliar informações disponibilizadas a partir da finalidade para qual uma inteligência artificial foi projetada, porém ainda não é capaz de realizar. Na medida em que os “Turkers” selecionam as informações válidas e as inválidas, além de realizar o serviço prometido pela inteligência artificial, o conjunto binário referente a informação “clicada” pode também ser integrado ao algoritmo para constituir o padrão de respostas verdadeiras e falsas. Como nos explica Chloe Xiang (2022)22 :
“As empresas de tecnologia contratam dezenas de milhares de trabalhadores para manter a ilusão de que os seus algoritmos de aprendizagem da máquina são totalmente auto-funcionais, e que cada nova ferramenta de IA é capaz de resolver uma série de questões fora da caixa. Na realidade, o desenvolvimento de IA tem muito mais em comum com os ciclos de produção de materiais do que imaginamos”. [tradução nossa]
Sem este processo de “aprendizado” a inteligência artificial é incapaz de realizar predições complexas só coerentes para os humanos. Este é mais um dos momentos em que a inteligência humana é integrada ao algoritmo como um replicador. Sendo assim, cada interação realizada com o algoritmo por um “Turker” compõem a inteligência artificial, enquanto objetivação do trabalho intelectual humano.
Neste sentido também é possível comparar o trabalho dos Turkers como uma espécie de linha de montagem virtual global em torno de algoritmos, onde cada trabalhador individualmente realiza tarefas e agrega componentes de dados através de um trabalho intelectual repetitivo, monótono e degradante para construção de uma mercadoria, através de micro interações.
Desta perspectiva, podemos levantar a hipótese de que a precarização do trabalho intelectual do enorme infoproletariado global, permitindo reduzir o gigante trabalho necessário para o funcionamento de uma inteligência artificial eficiente, dividindo-o em milhares de micro operações dispersas pelo mundo em um exército de trabalhadores precários e de não remunerados, é o que constitui não apenas sua lucratividade, mas também a chave da sua produção no capitalismo e sua integração econômica e social na escala atual. Por outro lado também cabe a hipótese de que o trunfo das atuais automações algorítmicas, como machine learning, que reproduzem raciocínios genéricos, não está apenas em seu complexo algoritmo produzido pelos programadores, mas especialmente na capacidade de se apropriar de imenso trabalho intelectual disponível na internet, pelos usuários e pelo infoproletariado. A inteligência artificial torna-se não apenas produto, mas também um meio de apropriação e exploração do trabalho e extração de mais valia para produzir mercadorias informacionais e meios de produção digital, constituindo também uma enorme cadeia de valor. Se por um lado uma inteligência artificial é fruto de um avanço técnico científico computacional de armazenamento e processamento de enormes quantidades de dados, por outro ele também é produto da gigantesca socialização de um trabalho intelectual coletivo oculto pela divisão sociotécnica do trabalho.
Sendo assim, podemos concluir que não existe nenhuma “inteligência” ou aprendizado ocorrendo na máquina, senão aquela que é objetivada pelo trabalho humano, seja nos componentes materiais e eletrônicos de seu circuito, seja nas operações lógicas eletricamente operadas pela máquina, seja na programação que operacionaliza o circuito elétrico a fim de alcançar determinado objetivo seguindo instruções teleologicamente concebidas por seu programador, seja na produção e fornecimento dos dados utilizados no processamento, seja na interpretação e instrumentalização das informações de saída.
A inteligência artificial só tem sentido e qualquer efetividade enquanto mediador e extensão das capacidades humanas. Como afirmamos anteriormente, a disrupção ocorre na capacidade de processamento e armazenamento de dados, uma vez que abandonamos a imagem do gato, para realizar comparações de dados produzidos globalmente, em todas as esferas da vida social, da produção, circulação e reprodução. Com a capacidade de processamento e armazenamento que a tecnologia vem alcançando é possível constituir modelos para processar informações que até então seria impossível pela capacidade orgânica humana. De tal forma que se eleva qualitativamente as possibilidades úteis da inteligência artificial.
Com a intermediação das relações sociais, interpessoais, laborativas, econômicas, etc, por aparelhos que procedem com inteligência artificial, avançamos para um novo estágio da reificação (ARAÚJO, 2022, p.24), onde coisas comunicam com coisas, através dos sistemas ciber-físicos e da internet das coisas23 . Elevando também o processo de alienação humana do produto e de sua capacidade de executar trabalho, assim como da fetichização do mundo das coisas/mercadorias.
Considerações Finais
Desfetichisando a inteligência artificial e suas tecnologias, concluímos que um algoritmo nada mais é, enquanto valor de uso, do que um processo de raciocínio lógico humano – trabalho intelectual objetivado – em linguagem computacional. Desta forma a inteligência artificial pode ser entendida como um tipo de automação algorítmica, executando operações lógicas pré-determinadas a partir de um sistema elétrico. A união coordenada de todas essas operações aparece objetivadas e fetichizadas como uma inteligência artificial, reproduzindo raciocínios complexos, aparentemente capazes de “aprender”. Ou seja, na realidade estamos diante do espelhamento da nossa própria capacidade intelectual objetivada em uma mercadoria.
Da mesma forma que através do trabalho humano construímos braços robóticos capazes de erguer pesos que nenhum humano é individualmente capaz, os processadores são capazes de processar informações com quantidade de dados que nenhum ser humano é individualmente capaz. Se a esteira de produção, assim como a maquinaria, incorpora em si o modo especificamente capitalista de produzir determinada mercadoria em sua engenharia, como postula Marx no Grundrisse (Grundrisse, 1857-1858, p.486) restando ao trabalhador se subjugar a seu tempo, sua velocidade, suas ferramentas, sua ergonomia, etc – subsunção do trabalho vivo ao capital – o mesmo ocorre agora com a gestão algorítmica, que incorpora o modo especificamente capitalista de produzir também em sua programação.
A inteligência artificial, portanto, nunca é neutra. As operações lógicas que contém em sua programação é a própria lógica do detentor dos meios de produzi-la, no caso, o capitalista, e enquanto extensão da capacidade cognitiva humana, objetivada pelo trabalho, está sempre exposta às leis da alienação. Sua finalidade, neste caso, otimizar a extração de valor.
Se por um lado a fetichização ocorre devido a separação dos meios de produção na propriedade privada, assim como do conhecimento por de trás das mercadorias, enquanto propriedade intelectual, também está oculto as relações sociais – trabalho – que produzem a mercadoria. Compreender o funcionamento e a natureza da inteligência artificial, assim como seus limites, permite desfazer um nível ideológico da fetichização, especialmente no que se refere a sua antropomorfização alentada pelo discurso e linguagem cientificista24 .
Por outro lado, a fetichização não é apenas uma relação ideológica, mas sim material. Trata-se da inversão do mundo dos homens para tornar-se um mundo de coisas, mercadorias, independente de nossa compreensão teórica sobre sua natureza, as relações sociais capitalistas se constituem materialmente subjugando e escondendo as relações de trabalho que as produzem. Assim como na indústria capitalista o trabalhador se torna apêndice das máquinas automatizadas, extensão do trabalho humano subsumido ao capital, o mesmo está em curso em relação a inteligência artificial e o processo informacional, na medida em que trabalhadores passam a estar subordinados a computadores e algoritmos de inteligência artificial.
A inteligência artificial passa também a mediar relações interpessoais, o consumo, os serviços, além de compor a mercadorias cada vez mais comuns para sociabilidade contemporânea, constituindo assim uma nova elevação de reificação. Porém, antes que sejamos tomados por uma superestimação fetichizante em relação a inteligência artificial, não percamos nunca de vista que, não importa o quão sofisticado seja o algoritmo e o quão poderoso seja o processamento de dados de um computador, até o presente momento nada foi inventado na área da inteligência artificial que resista a um “desconectar da tomada” pelas mãos da classe trabalhadora que a produz.
Notas
1. O cerne da reificação pensada por Marx pode ser assim compreendida: (…) na forma geral da produção capitalista, a qual o modo menos desenvolvido dessa produção tem em comum com o mais desenvolvido -, os meios de produção, as condições objetivas de trabalho, a saber, material de trabalho, meios de trabalho (e meios de subsistência), não se apresentam subsumidos ao trabalhador; este é que aparece a eles subsumido. Não é o trabalhador que os usa, mas eles que o usam. E são, por esse meio, capital. Capital emprega trabalho (…). Em sua simplicidade, essa relação já é uma perversão, personificação da coisa, e coisificação da pessoa; pois o que distingue essa forma de todas as anteriores é que o capitalista domina o trabalhador não por força de um atributo pessoal, mas apenas enquanto é “capital”; esse poderio é tão-só o do trabalho materializado sobre o vivo, do produto do trabalhador sobre o próprio trabalhador. (MARX, 1987. p.385-386)
2. Uma breve passagem demonstra com clareza a compreensão de fetichismo para Marx: “Uma vez que o trabalho vivo – com a troca entre capital e trabalhador – se incorpora ao capital e aparece como atividade a este pertencente desde o início do processo de trabalho, todas as forças produtivas do trabalho social passam a desempenhar o papel de forças produtivas do capital, do mesmo modo que a forma social geral do trabalho aparece no dinheiro como propriedade de uma coisa. Assim, a força produtiva do trabalho social e suas formas particulares se apresentam então na qualidade de forças produtivas e formas do capital, do trabalho materializado, das condições materiais (objetivas) do trabalho – as quais, nessa forma independente, em face do trabalho vivo, se personificam no capitalista. Eis aí, mais uma vez, a relação pervertida, que, ao tratar do dinheiro, chamamos de fetichismo” (MARX, 1987. p.385)
3. Quando observamos uma máquina se movendo, podemos não entender os princípios físicos de seu motor e sua fonte de energia, mas podemos deduzir sua operacionalidade e a apreender seus movimentos, uma vez que estamos familiarizados com os movimentos mecânicos e interagimos constantemente com as leis da cinemática. Porém quando se tratam de microprocessadores, componentes eletrônicos, correntes elétricas passando por um circuito, nossa familiarização cai drasticamente.
4. A máquina de Turing é uma máquina mecânica capaz de ser programada para fazer relações entre operações efetivas a representações simbólicas. É um experimento que comprova os princípios básicos da computação tendo como base operações efetivas.
5. Vale mencionar que a computação quântica não segue alguns destes princípios básicos computacionais, embora ainda esteja em fase muito experimental.
6. Teixeira se refere a “representação elétrica do pensamento” enquanto uma materialização lógica de um processo de raciocínio. Os circuitos elétricos ordenam operações matemáticas seguindo um procedimento lógico previamente idealizado. Essa forma de interpretar pode ser relacionada com a objetivação de um raciocínio lógico, ou seja, de um trabalho intelectual humano. Assim como máquinas mecânicas simulam processos de trabalho mecânicos reproduzindo movimentos, o computador simula processos de trabalho intelectual reproduzindo operações lógicas que podem ser representadas em circuitos elétricos. Para utilizar uma metáfora, podemos pensar em um fluxograma de transistores que seguem caminhos lógicos, em operações efetivas, pré concebidos em sua arquitetura.
7. Cada uma dessas operações possui componentes eletrônicos correlatos que as executam eletricamente com cargas elétricas, como uma calculadora.
8. Tal paralelo é sugerido por Antunes, quando nomeia as tecnologias informacionais, internet das coisas, big data, inteligência artificial, etc., enquanto maquinário digital (ANTUNES, 2020, p.14).
9. Automação algorítmica pode ser entendido como um momento de uma automação digital, conceito utilizado por Araújo. “Na Indústria 4.0, com a automação digital, a oposição entre capital e trabalho produz ainda mais reificação para as relações de produção, ao passo que estas se tornam relações entre coisas que adquirem vida própria na forma do robô dotado de inteligência artificial. Neste contexto, a questão fundamental a ser examinada inclui um aspecto que se torna determinante na era digital: o momento que o trabalho morto não somente substitui, mas, sobretudo, age como uma força autônoma sobre o trabalho vivo.” (ARAÚJO, 2021 p.27).
10. https://www.youtube.com/watch?v=5q87K1WaoFI&ab_channel=WIRED. Último acesso em: 12 de outubro de 2022
11. Os programas modernos de Inteligência Artificial permitem que esta associação seja realizada através de comparações e padrões. Por exemplo, é oferecido um conjunto de imagens de gatos a um banco de dados associadas à palavra “gato”. Porém a Inteligência Artificial, ao invés de realizar uma operação direta de nomeação dessas imagens, irá realizar uma comparação dos dados contidos em todas elas até constituir uma padrão aproximado do dados que a compõem e que deve ser associado à palavra “gato”. Após realizar essa operação com uma quantidade gigantesca de imagens, quando apresentarmos a imagem de um gato que não havia sido previamente apresentada, o computador conseguirá associá-la à palavra “gato”, pois os dados contidos naquela imagem atendem ao padrão criado pelas imagens anteriores. Caso apresentemos a imagem de um cachorro, o computador saberá negar aqueles dados como pertencentes ao conjunto “gato” (MASON. 2021).
12. A importância da alta capacidade de processamento, em volume e velocidade, assim como de armazenamento de dados, é crucial, pois é necessário que a automação algorítmica da Inteligência Artificial seja reproduzida milhões de vezes com milhões de imagens até conseguir chegar em um padrão satisfatório relativamente preciso (CAPRA, 2021). O que temos como disruptivo do ponto de vista funcional não é a capacidade em si de “ensinar máquinas”, mas sim de processar volumes gigantescos de informações em um breve período de tempo e chegar em padrões, resultados e novas informações, algo impossível de ser realizado apenas com as capacidades cognitivas do corpo orgânico humano.
13. https://www.youtube.com/watch?v=5q87K1WaoFI&ab_channel=WIRED. Último acesso em: 12 de outubro de 2022
14. Para nos ajudar nesta compreensão cabe o exemplo fornecido por Hilary Mason (2021) de um programa de inteligência artificial produzido para uma empresa de convênio médico que tinha como objetivo criar um padrão dos clientes que poderiam estar prestes a cancelar seus serviços, de forma que a empresa pudesse se antecipar a este evento. Para tal foram usadas as técnicas de machine-learning. Ao implementar e executar o algoritmo a partir da base de dados dos clientes da empresa, o computador foi capaz de apontar, segundo o padrão de dados que criou, aqueles que estariam prestes a se desligar. Porém não era possível determinar o motivo pelo qual o cliente ia se desligar, ou seja, não era possível compreender que dados comparados pelo computador levava a essa conclusão, e a associação simbólica em termos de informação.
15. Quando estamos diante de uma de um chat inteligente como um Chat GPT por exemplo, o que está ocorrendo de fato é a interação com uma máquina. Quando escrevemos no chat uma pergunta, estamos inserindo dados binários para serem calculados nas equações matemáticas do algoritmo que nos devolve um resultado de dados binários correspondentes aos dados inseridos a partir dos padrões previamente definidos, e depois transposto na forma simbólica de letras que formam palavras, frases, etc, de forma que podemos ler e interpretar. Ou seja, é uma ferramenta de busca em uma base de dados. A busca pelos dados correlatos é realizada palavra a palavra por probabilidade a partir das palavras que são inseridas na pergunta. Deste ponto de vista, o que ocorre fisicamente não é tão distinto de qualquer outra máquina automatizada, onde inserimos matéria prima e que nos devolve um produto. Em ambos os casos não existe trabalho sendo executado pela máquina, sendo esta justamente o produto de um trabalho morto objetivado já executado anteriormente que ganha vida com a interação do trabalho vivo de quem a instrumentaliza.
16. A mais-valia relativa como Marx desenvolve em O Capital (MARX, 2013, p.387), ocorre com o emprego da tecnologia para a elevação da produtividade do trabalho, de forma que seja possível produzir mais mercadorias em uma mesma quantidade de tempo de uma jornada de trabalho, ou então uma mesma quantidade de mercadoria com uma quantidade menor de trabalhadores, ou em menos tempo. No caso dos aplicativos, a otimização logística dos trabalhadores, assim como os elementos coercitivos integrados aos aplicativos, que possui já na programação de seus algoritmos os parâmetros da produtividade, imprime ao trabalhador o ritmo do trabalho que deve ser executado. Soma-se aqui o conceito de gamificação do trabalho que impõe a produtividade por meio de metas também integradas aos aplicativos. Ao final, o algoritmo torna-se uma automação de otimização da exploração do trabalho, coagindo o trabalhador a trabalhar mais rápido e de forma mais eficiente perante os objetivos de lucratividade. Assim, ainda que os trabalhadores de aplicativos sejam remunerados por tarefa executada, e não a partir de uma jornada definida, a extração de mais-valia relativa ocorre também a cada tarefa realizada. Por outro lado, a automação algorítmica conecta a esfera da circulação unindo serviço, logística e consumo – consumidor, fornecedor e entregador – dispensando assim a necessidade de trabalhadores especializados nesta função. Ao mesmo tempo que em partes acumula parcialmente essas atividades laborativas as funções do próprio trabalhador.
17. Uma inteligência artificial de gerenciamento que integra a fábrica e seus distintos postos de operação, assim como sua cadeia logística, entregando ordens e comandos aos trabalhadores cumpre um papel bem semelhante aos aplicativos, reproduzindo a lógica de gestão algorítmica. Em uma fábrica moderna da indústria 4.0, os algoritmos de gestão também são incorporados às automações industriais, criando uma integração cyber-física automatizada da produção. Também é comum inteligências artificiais atuando na mediação e verificação de qualidade integrado à maquinaria. Neste sentido, os algoritmos da indústria 4.0 se integram diretamente a produção enquanto capital.
18. Exemplo Chat GPT – ver nota 15
19. Como por exemplo redes sociais e qualidade fabril.
20. Um dos exemplos mais brutais de exploração deste tipo de força de trabalho é a seleção de conteúdo sensível nas redes sociais. Treinar uma inteligência artificial a retirar e descartar postagens com conteúdos de violência, por exemplo, exige que esses trabalhadores repitam milhares de vezes o processo de identificar este conteúdo nas redes sociais e indicar como conteúdo a ser censurado. Uma inteligência artificial não sabe distinguir um vídeo de um filme de terror e ação de um vídeo de um evento real, por exemplo, somente pela análise das imagens, em termos cores, símbolos e informação, ou seja, se o conjunto binário, forem similares. Tão pouco a inteligência artificial possui parâmetro moral ou capacida interpretativa para entender situações não explícitas de violência e conteúdo preconceituoso e ofensivo que devam ser censurados. Por tanto são contratados milhares de trabalhadores que ficam longas jornadas observando e julgando este tipo de conteúdo, levando a transtornos psicológicos e emocionais, enquanto que a inteligência artificial não é capaz de constituir algum padrão eficiente. Destes trabalhadores é objetivado o trabalhado intelectual de discernimento de um conteúdo moral nocivo e não nocivo a ser integrado ao serviço oferecido pela inteligência artificial e ao próprio algoritmo enquanto dados de “aprendizagem”. Como nos explica Xiang “o Facebook tem um dos mais avançados sistemas de moderação de conteúdos algorítmicos na Internet. A chamada inteligência artificial desse sistema, porém, é ‘aprender com milhares de decisões humanas’ tomadas por moderadores humanos”. (XIANG, 2022) [tradução nossa]
21. Trabalhadores remotos autônomos, urberizados e terceirizados que realizam tarefas que computadores ainda não são capazes de realizar. Os trabalhadores verificam dados, respondem pesquisas, moderam conteúdo, entre outras atividades. As ‘microtarefas’, chamadas de Human Intelligence Tasks (HITs), são usadas em pesquisas para o aprendizado de máquina, processamento de imagens, processamento de dados e coleta de dados. O nome é cinicamente inspirado na máquina de xadrez “O Turco”. Esta máquina fingia ser capaz de jogar xadrez quando na realidade era operada por um humano escondido.
22. https://www.vice.com/en/article/wxnaqz/ai-isnt-artificial-or-intelligent. Último acesso em: 24 de janeiro de 2023
23. Aparelhos inteligentes conectados a internet são cada vez mais comuns nos dias atuais. Desta forma a internet das coisas conecta mercadorias a outras mercadorias trocando dados e informações sem a necessidade da intermediação humana.
24. Na medida em que os algoritmos de inteligência artificial se tornam cada vez mais comuns na sociedade, seu véu metafísico e antropomórfico tende a se desvanecer. Da mesma forma que não é comum o conhecimento do funcionamento do motor de um automóvel, a interação da práxis com esta máquina reconstitui o seu entendimento, de forma que é possível prever e compreender seus movimentos, sua funcionalidade e sua natureza. O mesmo deve ocorrer com a inteligência artificial, assim como já não há “espanto” quando um aparelho eletrônico completa palavras que queremos escrever, ou quando o lixo eletrônico de nosso e-mail seleciona autonomamente as mensagens que devem ser excluídas.
Referências
ANTUNES, Ricardo. Trabalho intermitente e uberização do trabalho no limiar da Indústria 4.0. In: Uberização, trabalho digital e Indústria 4.0, ANTUNES, Ricardo (org). São Paulo: Boitempo Editorial, 2020.
ARAUJO, Wecio Pinheiro, Marx e a indústria 4.0: trabalho, tecnologia e valor na era digital. Universidade Federal da Paraíba: 2021. Dísponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/katalysis/article/view/82591. Último acesso em: 12 de fevereiro de 2023.
CAPRA, Ricardo, Como as máquinas aprendem? In: Diálogos sobre Inteligência Artifical. Disponível em: https://open.spotify.com/show/2Jll68Dz51paJIIz9NXebl. Último acesso em: 12 de outubro de 2022.
MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro 1, v. 1: O processo de produção do capital. São Paulo, Boitempo, 2004.
MARX, Karl. O Capital. Livro 1, Volumes I e II. São Paulo, Difel, 1987.
MARX. Karl. Grundisse: manuscritos econômicos de 1857-1858 – esboços da critica da economia política. São Paulo. Boitempo. 2011
MASON, Hilary, Computer Scientist Explains Machine Learning in 5 Levels of Difficulty. In: WIRD. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=5q87K1WaoFI&ab_channel=WIRED. Último acesso em: 12 de outubro de 2022
TEIXEIRA, João de Fernandes, O que é inteligência artificial?, Universidade Federal de Santa Catarina: 2009. Dísponível em: https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/praxis/395/o%20que%20e%20inteligencia%20artificial.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Último acesso em: 12 de fevereiro de 2023
XIANG, Chloe, AI Isn’t Artificial or Intelligent. In: Motherboard Tech By Vice. Disponível em: https://www.vice.com/en/article/wxnaqz/ai-isnt-artificial-or-intelligent. Último acesso em: 24 de janeiro de 2023