Eduardo Castilla
Traduzimos artigo publicado no último domingo no Ideias de Esquerda da Argentina sobre os debates em curso no regime político.
No recém-publicado Para qué sirvió el peronismo? 1 , Hernán Brienza define: “Se o peronismo está em algum lugar, é na tensão sempre candente entre doutrina e pragmatismo”. O método permite uma conclusão contundente: “Não existem diferentes peronismos ao longo de sua história, mas um único peronismo aplicado aos desafios de diferentes etapas históricas, com estratégias definidas conforme os novos obstáculos e oportunidades”.
Oportunismo total diante das circunstâncias, essa concepção permite justificar quase tudo. Por exemplo, as negociações, abertas ou confidenciais, entre o peronismo e La Libertad Avanza. Contradizendo seus próprios discursos, o kirchnerismo articula acordos às escondidas com a força política que, até há pouco tempo, era rotulada exageradamente como “fascista”.
O “pacto não escrito” – como definiu a jornalista Laura Serra – veio à tona na quinta-feira passada, na frustrada sessão sobre a lei restritiva de Ficha Limpa. As oito ausências dos parlamentares de Milei, somadas às de diversos aliados do governo, impediram a realização da sessão. Impotente, a oposição “republicana” disparou uma série de insultos furiosos contra La Libertad Avanza. A Frente de Esquerda, que sempre denunciou o caráter restritivo da norma, também não contribuiu para o quórum.
As negociações entre o governo e o peronismo tornaram-se públicas em relação às nomeações para a Corte Suprema. Em poucos dias, o kirchnerismo destruiu todos os seus discursos sobre o “lawfare”. Lucía Corpacci, senadora nacional e vice-presidenta do PJ cristinista, afirmou que era necessário escolher entre Ariel Lijo e “outros piores”. Essa postura pragmática ignora que o magistrado de Comodoro Py é apadrinhado por Ricardo Lorenzetti, aliado emblemático de Sergio Moro e do falecido Claudio Bonadio, figuras centrais na perseguição judicial a Lula e a Cristina Kirchner.
Os acordos também incluem a antidemocrática reforma eleitoral promovida pelo governo. Um nervoso Germán Martínez (Unión por la Patria) confirmou isso na noite de quarta-feira, ao responder aos questionamentos de Nicolás del Caño (PTS-FITU). Divulgada apenas como a “eliminação das PASO”, o projeto visa mais do que isso, buscando delinear um novo sistema partidário que exclua a esquerda e outras forças das eleições. A questão não é apenas o número de organizações, mas os interesses sociais que elas representam. Ao facilitar o financiamento privado em larga escala, a reforma impulsiona uma privatização das campanhas. O grande empresariado, com enormes somas de dinheiro, poderia apoiar abertamente os partidos alinhados aos seus interesses. Isso representa, logicamente, um ataque à Frente de Esquerda e a outros partidos de esquerda, que não recebem nem receberão esse tipo de “ajuda” financeira.
Se aprovada, a reforma impulsionada por Milei contribuirá para uma democracia capitalista ainda mais subordinada aos interesses de figuras como Paolo Rocca, Héctor Magnetto, Marcos Galperín e outros grandes empresários. Não há como apoiá-la sob uma perspectiva minimamente progressista. Pelo contrário, é urgente uma ampla campanha democrática de rejeição a essa tentativa antidemocrática.
A crise e a colaboração
Antonio Gramsci recomendava separar os fenômenos conjunturais daqueles mais profundos, de caráter orgânico. A crise do sistema partidário local reflete ambas as dimensões. As tensões da última semana derivam de uma explosão anterior ao debate parlamentar. A fragmentação política é um reflexo de uma crise estrutural de representação que afeta o peronismo, o macrismo e a UCR.
O PRO parece assistir ao seu próprio funeral. Golpeado por disputas internas, enfrenta a erosão de sua base eleitoral, que em grande parte migra para La Libertad Avanza. Esse processo está repleto de tensões. O boicote oficial à sessão sobre Ficha Limpa prejudicou o governo, especialmente porque parte de seus eleitores no segundo turno optou por ele como um “mal menor” em relação ao kirchnerismo. Esse descontentamento explica a decisão presidencial de apresentar um “projeto próprio” sobre o tema.
Originalmente uma ferramenta política do poder econômico 2 , o PRO agora vê esse vínculo em crise. La Libertad Avanza, que adota abertamente a agenda do grande empresariado, apresenta-se como a força política mais alinhada à classe dominante. Contudo, essa relação não é linear. As críticas de grandes entidades empresariais – como a AmCham e a AEA – e da mídia de direita ao comportamento do governo em relação a Ficha Limpa são evidências disso.
O peronismo, por sua vez, enfrenta um mar de divisões: governadores, prefeitos, líderes sindicais burocráticos e grupos parlamentares atuam conforme seus próprios interesses corporativos.
O kirchnerismo lida com o peso de seu próprio fracasso: foi Cristina Kirchner quem elevou Alberto Fernández à presidência. Esse estigma a impede de controlar o peronismo conforme seus desejos. As negociações sobre as PASO e Ficha Limpa têm como objetivo criar um cenário político restrito, que favoreça a recuperação de um peronismo enfraquecido. Nesse contexto, a ex-vice-presidenta busca a possibilidade de competir eleitoralmente, talvez apostando que um resultado aceitável na Província de Buenos Aires – como em 2017 – possa devolver-lhe influência e poder decisório.
Governadores enfrentam hoje dificuldades na negociação orçamentária, trocando apoios parlamentares por recursos que raramente chegam. As sucessivas concessões desse peronismo provincial ao governo nacional (como na Lei de Bases, vetos em aposentadorias e financiamento universitário) beneficiaram mais a governabilidade de Milei do que as populações desses distritos. Os governadores Osvaldo Jaldo, de Tucumán, e Raúl Jalil, de Catamarca, são exemplos desse peronismo “periférico”.
Gramsci também observou o papel das burocracias em tempos de crise orgânica e de representação 3 . Nos últimos meses, a maioria da CGT e o sindicalismo burocrático têm sustentado a governabilidade presidencial, mantendo laços com figuras como Julio Cordero, ex-CEO do Grupo Techint e atual secretário de Trabalho [“[Julio Cordero, el histórico abogado del Grupo Techint que hace equilibrio entre los empresarios y los sindicalistas” em La Nación.]]. Essa colaboração foi essencial: ao cumprir uma “função preventiva” 4 na luta de classes, evitaram que resistências ao ajuste econômico se ampliassem, como demonstraram as greves nacionais, marchas universitárias e inúmeros conflitos pelo país. Atuando como uma corporação sindical, a burocracia sindical peronista isenta-se da responsabilidade frente a um ataque político que prejudica todo o povo trabalhador.
Para além do “veraneio”
A realidade econômica nacional não se resume aos indicadores de um “veraneio” financeiro que é tudo menos sólido. O embate discursivo com a União Industrial Argentina (UIA) revelou as tensões de um “modelo” que desacelera a inflação à custa de uma recessão feroz e do empobrecimento popular. Distante do discurso oficial, o salário continua abaixo dos já deteriorados níveis que apresentava no final de 2023 5 .
Esse descontentamento com os setores capitalistas industriais tende a se intensificar. Nesta semana, as más notícias vieram em português. A desvalorização do real – além de provocar uma fuga turística para o Brasil, afetando as sempre limitadas reservas – pode restringir as exportações para aquele país e aumentar as importações de lá. O resultado, além de impactar a balança comercial, aprofundaria o momento recessivo 6 .
Além disso, apesar das ilusões mileístas, a nova gestão republicana nos EUA também pode agravar as contradições econômicas locais. Antes mesmo de assumir o Salão Oval, Trump já provoca crises diversas com seu programa protecionista. A Argentina, um país dependente e subordinado na economia internacional, só pode sofrer impactos com o aumento das tensões geopolíticas.
A economia e a política se alimentam mutuamente. A vantagem mileísta reside, até agora, no desprestígio da classe política com a qual ele confronta enquanto negocia. A permanência desse estado de coisas está em disputa. Nesta semana, em um artigo destinado a contrapor o “globalismo” do presidente argentino ao protecionismo de Trump, The Economist advertiu que:
“Os êxitos de Milei enfrentam grandes riscos. Um deles é político. Ele se beneficiou de um descontentamento entre a oposição que não durará para sempre, assim como não durará a tolerância do público ao crescimento fraco, ao alto desemprego e à pobreza (…) essa expectativa é mais difícil de gerir, especialmente se os argentinos não sentirem essa euforia em suas carteiras.”
O projeto refundacional de La Libertad Avanza ainda carece de bases sólidas na economia. O futuro anuncia novas crises se as expectativas sociais se esvaziarem como os salários e o poder de compra.
O peronismo e suas crises
Abalado pela derrota eleitoral, o peronismo atravessou o primeiro ano do governo Milei dividido entre aqueles que garantiam a governabilidade abertamente e os que ofereciam um discurso confrontativo que, no entanto, não chegava às ruas para resistir. A conjuntura atual reflete uma mudança: as negociações com La Libertad Avanza parecem ocorrer sob o olhar atento de Cristina Kirchner.
As consequências políticas são visíveis. Uma pesquisa recente da consultoria Tendências ilustra o descontentamento: 54,5% dos eleitores de Massa estão insatisfeitos com o papel que o peronismo desempenha na oposição. Na apresentação do estudo, Fernando Rosso descreve uma “polarização assimétrica” onde
“…o bloco opositor é mais intenso na base (…) entre os ‘opositores de base’, mas os líderes que os representam não têm nada claro o rumo e estão em disputas internas ‘de casta’ (peronismo) ou em negociações ‘de casta’ (CGT). Daí o marcado descontentamento dos eleitores de Sergio Massa no segundo turno em relação ao papel do peronismo na oposição e o contínuo crescimento de figuras que se posicionam claramente no outro polo de Milei, como Myriam Bregman, que já supera os 35% de imagem positiva.” 7
Incapaz de propor um projeto de país substancialmente diferente do apresentado por Milei, o partido de Cristina Kirchner e Axel Kicillof gera crescente decepção. A agenda programática desse peronismo propõe respeitar o regime de submissão ao FMI, além de adotar demandas do grande capital: reforma trabalhista e equilíbrio fiscal, entre outras. Essa orientação global impede estruturalmente que ofereçam uma saída favorável às grandes maiorias trabalhadoras.
A esquerda na cena política
Se prevalecer, a reforma política antidemocrática proscreverá a Frente de Esquerda, entre outras forças. Este espaço tem sido um claro opositor ao programa de Milei, ao FMI e ao grande capital. No Congresso, foram suas deputadas e deputados que denunciaram de forma contundente e enfrentaram a Lei de Bases e o RIGI, o Protocolo antiprotestos de Bullrich e os diversos decretos do governo. Grande parte do arco opositor agiu de forma contrária: aprovou parlamentarmente essas ferramentas de gestão política que fortaleceram o já poderoso Executivo.
A esquerda também tem sido um ator importante da resistência que se manifestou nas ruas. Nesse contexto, o PTS-Frente de Esquerda apostou no desenvolvimento da coordenação e auto-organização, buscando unir o que as diversas burocracias (sindicais, sociais e estudantis), vinculadas ao peronismo ou à UCR, dividiam ou fragmentavam.
Essa orientação visa fortalecer a capacidade de luta das maiorias trabalhadoras. Dessa rebeldia que – periodicamente – emerge de forma violenta e massiva na cena nacional, redirecionando os rumos do país. Essa “Argentina contenciosa” não é uma lembrança do passado; é um futuro latente, pronto para emergir quando as condições políticas e sociais permitirem. A crise de representação que assola as grandes coalizões políticas é mais um motivo para redobrar uma tarefa fundamental: lutar por construir uma nova força política da classe trabalhadora que, com uma orientação revolucionária e socialista, seja capaz de intervir nesses grandes eventos, buscando impedir que terminem em impotência.
Para as dezenas ou centenas de milhares de pessoas que hoje veem com decepção a orientação conservadora e negociadora do kirchnerismo, é preciso assumir um debate: que nova força política construir, com qual programa e para qual saída. O contrário é condenar-se a sofrer a repetição da estratégia do pragmatismo malmenorista que gerou tantos fracassos e, segundo Brienza, faz parte da essência do peronismo.
NOTAS DE RODAPÉ
1. Brienza, Hernán (2024), ¿Para qué sirvió el peronismo?, Buenos Aires, Planeta Argentina, 2024.
2. Gabriel Vommaro descreveu este proceso em La larga marcha de Cambiemos, Buenos Aires, Siglo XXI, 2017.
3. Juan Dal Maso, El marxismo de Gramsci, Buenos Aires, Ediciones IPS, 2018, p. 80.
4. “A técnica política moderna mudou completamente após 1848, com a expansão do parlamentarismo, do regime de associação sindical ou partidária, da formação de vastas burocracias estatais e ’privadas’ (político-privadas, de partido e sindicais) e das transformações ocorridas na organização da polícia em sentido amplo, ou seja, não apenas do serviço estatal destinado à repressão da criminalidade, mas também do conjunto das forças organizadas do Estado e de particulares para preservar o domínio político e econômico das classes dirigentes. Nesse sentido, partidos ’políticos’ inteiros e outras organizações econômicas ou de outro tipo devem ser considerados organismos de polícia política, de caráter investigativo e preventivo.” — Antonio Gramsci, citado por Juan Dal.
5. Pablo Anino, “El lado oscuro de la fiesta financiera”, La Izquierda Diario.
6. Aponta Javier Blanco em La Nación: “O ‘efeito pinça’ que ocorre sobre a economia argentina promete aumentar o ruído já existente em relação à competitividade cambial local (…) Como o Brasil é um dos principais parceiros comerciais da Argentina, a desvalorização do real pressiona o peso argentino por meio da taxa de câmbio real (TCR), já que as exportações brasileiras se tornam mais competitivas”, opinou Juan Manuel Franco, economista-chefe do Grupo SBS. Isso ocorre em um contexto em que, ao mesmo tempo, se flexibilizam as condições para a entrada de importações na Argentina.”
7. Tendencias, encuesta online realizada entre el 11 y el 19 de noviembre a nivel nacional.