Revista Casa Marx

A nova etapa do genocídio em Gaza e o labirinto estratégico de Netanyahu

Claudia Cinatti

Este artigo foi publicado originalmente em espanhol no site La Izquierda Diario.

No dia 15 de maio se comemora mais um aniversário da Nakba, a limpeza étnica da Palestina perpetrada pelo nascente Estado de Israel. Passados 77 anos daquela “catástrofe” original — um crime prolongado no tempo pela ocupação colonial — a situação do povo palestino é desesperadora. Após um breve e frágil cessar-fogo, em 2 de março o governo de Benjamin Netanyahu retomou a brutal ofensiva em Gaza, um verdadeiro genocídio transmitido ao vivo, executado com os meios militares e financeiros e com a cobertura diplomática dos principais aliados do Estado sionista: Estados Unidos e potências europeias.

Em 18 meses, o exército israelense assassinou mais de 52 mil habitantes de Gaza — entre eles cerca de 18 mil crianças —, embora a revista The Lancet, que acompanha a situação em Gaza, estime que esse número possa ser ao menos o dobro. A guerra-genocídio se estendeu também à Cisjordânia, com dezenas de milhares de palestinos deslocados sob o duplo fogo do exército israelense e das milícias de colonos armados. Como se pode ver em No Other Land (documentário premiado com o Oscar) ou no mais recente The Settlers (uma espécie de continuação de Ultra Zionist, o documentário anterior de Louis Theroux sobre a Cisjordânia), os ataques violentos contra a população palestina, suas casas e terras, que acompanham a expansão dos assentamentos de colonos, ocorrem desde muito antes de outubro de 2023 e fazem parte de um plano de anexação territorial ventilado abertamente pelos ministros do gabinete de Netanyahu.

Mas com a última guerra em Gaza houve um salto, com a colaboração escandalosa da Autoridade Palestina. Segundo reportagem de jornalistas do The New York Times, as ruas da Cisjordânia — território palestino ocupado por Israel — se assemelham cada vez mais a Gaza: casas reduzidas a escombros, paredes perfuradas por munições pesadas, tratores e escavadeiras. Um dos alvos mais afetados foi Jenin, de onde foram deslocados 40 mil palestinos — a maior transferência populacional desde 1967, quando Israel tomou o controle do território. Isso sem contar os cerca de 9.500 presos palestinos, em condições duríssimas, muitos deles submetidos a torturas.

Se o genocídio contou com o financiamento e apoio do ex-presidente Joe Biden (um dos fatores que explicam a derrota democrata), a limpeza étnica palestina do século XXI recebeu um forte endosso da Casa Branca quando o então presidente Donald Trump, ladeado por Netanyahu, anunciou sua “proposta” de transformar Gaza em um resort de luxo, uma vez que o exército israelense terminasse a tarefa suja de deslocar os 2 milhões de habitantes de Gaza para o Egito ou a Jordânia. Embora Trump tenha logo abandonado seu projeto imobiliário diante da rejeição dos aliados árabes dos EUA e da perplexidade dos analistas e estrategistas militares, seu anúncio foi lido pelos promotores do “Grande Israel” como um sinal verde.

Ministros dos partidos da extrema direita religiosa, aliados de Netanyahu, falam abertamente sobre a execução de uma espécie de “solução final” — um plano macabro que combina ferramentas de extermínio e métodos de “transferência forçada” da população palestina para a ocupação e recolonização de Gaza. Em poucas palavras, ampliar a escala dos crimes de guerra. Não são apenas os bombardeios, a ocupação militar e a destruição que torna impossível a vida dos palestinos. É também o cerco e, sobretudo, a fome. Desde 2 de março, quando o Estado sionista rompeu o cessar-fogo, Gaza está completamente bloqueada, sem acesso a ajuda humanitária, praticamente sem água, sem eletricidade, sem hospitais, sem insumos básicos. Não é que tenham inventado a pólvora ao usar a fome como arma de guerra, mas o que chama atenção é a defesa pública desse método perverso. Talvez o mais brutal até agora tenha sido o ministro do Patrimônio do governo Netanyahu, Amichai Eliyahu, que declarou em entrevista que era necessário bombardear os depósitos de alimentos e combustíveis em Gaza, e fazer a população passar fome para que aceitassem o “plano de emigração”. Eliyahu ficou famoso quando sugeriu lançar uma bomba nuclear sobre Gaza no início dos ataques. O ideólogo do plano de fome — agora aperfeiçoado por esses engenheiros do genocídio — é o ex-ministro da Defesa Yoav Gallant. Vale lembrar que a Corte Penal Internacional emitiu um mandado de prisão contra Gallant e Netanyahu, acusando-os justamente desses e outros crimes de guerra e contra a humanidade.

Apesar da superioridade militar — possibilitada pelos EUA, Alemanha, França, Reino Unido e outras potências —, o genocídio e as táticas mais brutais contra a população palestina não conseguiram, até agora, garantir a “vitória total” prometida por Netanyahu no início das operações: a “erradicação do Hamas” e a recuperação dos reféns por meios militares. A aceitação do cessar-fogo, em grande parte imposta por Donald Trump às vésperas de seu retorno à Casa Branca, foi uma forma indireta de admitir que os objetivos eram inalcançáveis. As cerimônias de troca de dezenas de reféns israelenses por milhares de prisioneiros palestinos — transformadas em atos de propaganda política pelo Hamas — mostraram em imagens o fracasso de Netanyahu. Apesar de ter enfraquecido o Hamas (e seus aliados regionais como o Hezbollah e, indiretamente, o Irã), ele não conseguiu liquidá-lo como força político-militar. Tampouco conseguiu a “migração voluntária” da população palestina, que retornou massivamente aos seus locais de origem, mesmo diante da destruição. Isso colocava Netanyahu diante de um dilema: se o cessar-fogo avançasse, Gaza poderia voltar a uma situação não muito diferente da anterior ao ataque de 7 de outubro.

Do ponto de vista político, o cessar-fogo ameaçava a coalizão de governo de Netanyahu e, portanto, também sua liberdade pessoal, já que está sendo julgado por casos de corrupção.

Essas mesmas contradições que emergem da estratégia fracassada do Estado de Israel explicam tanto o cessar-fogo quanto seu colapso, e o início de uma nova fase da ofensiva militar em Gaza, que alguns analistas já consideram uma “segunda guerra”.

Em 5 de maio, o gabinete de segurança de Netanyahu votou um novo plano, a ser implementado após o término da viagem de Trump ao Oriente Médio, em meados de maio. Caso se concretize — o que está cercado de dúvidas —, isso implicaria uma mudança radical na estratégia da primeira fase da guerra em Gaza. A chamada operação “Carros de Gideão” (o Estado sionista sempre dá uma dimensão bíblica a seus massacres) implica a ocupação militar de Gaza, o deslocamento da população para o sul e sua “concentração” (sic) em campos, ao redor dos quais Israel organizaria a distribuição de alimentos, sob a tutela de “contratistas” (mercenários) norte-americanos. Para realizar essa ofensiva, o exército precisaria convocar entre 60 mil e 100 mil reservistas, segundo fontes militares.

Mesmo nos exercícios estratégicos, o plano apresenta várias falhas, a começar pelo fato de que o próprio chefe do exército admitiu que a estratégia de aniquilamento — “limpeza” militar e “zonas de esterilização” — é contraditória com a prioridade de resgatar os 24 reféns que se estima ainda estarem vivos, de um total de 59 nas mãos do Hamas.

Do ponto de vista militar, isso vai contra o princípio das guerras curtas, já que Israel baseia boa parte de sua capacidade militar nos reservistas — ou seja, cidadãos que precisam deixar seus trabalhos, estudos e famílias para servir no exército, com impacto direto na vida econômica, social e familiar. Os sinais de “fadiga de guerra” após um ano e meio de operações militares e massacres já são evidentes.

Com a ampliação das frentes de guerra para o Líbano e, sobretudo, para a Síria — onde Israel vem intervindo sob o pretexto de proteger a minoria drusa e, ao mesmo tempo, garantir uma zona tampão para proteger as Colinas de Golã e eventualmente fragmentar o território —, o exército parece sobrecarregado em sua capacidade.

Segundo matéria da revista +972, o exército israelense enfrenta a pior crise de rejeição à incorporação de reservistas desde a guerra do Líbano em 1982. Embora os números exatos não sejam conhecidos (e as autoridades militares se cuidem para que não vazem), estimativas de analistas com base em redes sociais, pronunciamentos e presença efetiva nas unidades militares indicam que essa recusa pode estar entre 40% e 50% — o que, em números conservadores, ultrapassa os 100 mil reservistas. Soma-se a isso o fato de que os setores religiosos estão isentos da obrigação de servir no exército, uma concessão que Netanyahu precisou fazer a seus aliados do sionismo religioso.

Embora as razões dessa crise dos reservistas sejam diversas, ela é objetivamente uma expressão da perda de legitimidade da guerra para uma parcela importante da população israelense, que, em sintonia com os familiares dos reféns, exige o fim da guerra e a abertura de negociações para recuperar todos os reféns. Segundo uma pesquisa de fim de março, 69% são favoráveis à negociação pelo retorno dos reféns — essa posição é majoritária (54%) mesmo entre os eleitores da coalizão governista. Os dois principais motivos dessa oposição são: a prioridade na libertação dos reféns e a percepção de que Netanyahu prolonga a guerra por interesse político-pessoal, ampliando-a para outros frontes como forma de garantir sua sobrevivência política.

Além da impopularidade de Netanyahu, que aproveitou a recomposição de sua coalizão para avançar na controversa reforma judicial e realizar uma purga nos serviços de inteligência e nos comandos militares que não se alinham com seus interesses — uma espécie de versão israelense do ataque ao “Estado profundo” promovido por Trump nos EUA.

Essa oposição se manifesta nas ruas, com protestos contra Netanyahu e seus aliados extremistas, que vêm ocorrendo desde o início da ofensiva em Gaza, ainda que sem contestar o massacre contra o povo palestino — com exceção de pequenos grupos. Mas isso começa a mudar, especialmente após o colapso do cessar-fogo. No Dia da Memória do Holocausto, vários sobreviventes e centenas de manifestantes romperam o silêncio sobre Gaza e marcharam com fotos de crianças palestinas assassinadas pelo exército israelense. Esse primeiro sinal inequívoco de empatia pode indicar o início de uma mudança mais profunda.

Internamente, Netanyahu faz um delicado equilíbrio para manter sua coalizão unida — coalizão essa que o empurra cada vez mais em direção à “solução final”. Externamente, ele está submetido aos vaivéns da política externa dos EUA, o principal aliado e sustentáculo do Estado de Israel. Não há dúvidas de que Trump (como toda a extrema direita, inclusive suas versões neonazistas) é ideológica e politicamente mais alinhado a Netanyahu — e que sua volta à Casa Branca deu ainda mais ânimo aos setores da extrema direita israelense. Mas isso não significa que Netanyahu (ou Israel) possa ditar a política dos EUA ou arrastar o imperialismo a aventuras militares que não estejam no interesse nacional americano.

Bibi parece estar aprendendo na prática o significado do “America First” como princípio guia da política externa trumpista.

O presidente norte-americano anunciou a suspensão dos ataques contra os houthis no Iêmen porque eles aceitaram deixar de atacar navios comerciais no Mar Vermelho — deixando Israel fora do acordo, que segue recebendo ataques dessa milícia aliada do Irã.

Para Trump (como antes para Biden), o principal problema geopolítico no Oriente Médio é o Irã. Também para Netanyahu, que pressiona por uma guerra com apoio dos EUA para destruir a capacidade nuclear iraniana. Mas os EUA não estão interessados em se ver arrastados para uma nova guerra na região, que poderia escalar para além do Oriente Médio e gerar consequências devastadoras para a economia mundial. Por isso, Trump iniciou negociações com o regime iraniano por meio de seu enviado pessoal, S. Witkoff — embora seu governo esteja dividido. Os falcões (os antigos “neoconservadores”), alinhados com a linha dura de Netanyahu, parecem ter sido momentaneamente derrotados pelo setor liderado pelo vice-presidente Vance, que defende uma política de pressão extrema com sanções econômicas e ameaças militares, buscando extrair do enfraquecido regime iraniano um acordo o mais favorável possível aos interesses norte-americanos. A substituição de M. Waltz como assessor de segurança nacional é um indício desse novo equilíbrio interno, favorável aos “isolacionistas”.

Naturalmente, qualquer negociação viável implica que o Irã mantenha certa capacidade de enriquecimento de urânio — algo que Netanyahu considera inaceitável.

Nos próximos dias, Trump iniciará uma viagem ao Oriente Médio. Visitará Arábia Saudita, Catar e Emirados Árabes Unidos (mas não Israel), com objetivos geopolíticos de ampliar a colaboração dos aliados dos EUA na estabilidade regional — e com expectativas concretas de voltar com uma enxurrada de investimentos prometidos pela monarquia saudita e Abu Dhabi, além de acordos petrolíferos e de defesa. Para perplexidade de Netanyahu, a Casa Branca anunciou que já não exige mais que a Arábia Saudita normalize relações com Israel como condição para avançar nas negociações sobre o programa nuclear civil do reino.

A continuação da guerra-genocídio em Gaza, com suas imagens de massacres, destruição e fome, dificulta os planos de Trump de incorporar a Arábia Saudita aos Acordos de Abraão, já que a monarquia saudita sabe que não pode se reconciliar com Israel enquanto o Estado sionista perpetuar o genocídio. Por isso, mantém a exigência de uma menção formal a um “Estado palestino” para conservar sua legitimidade interna e perante as massas árabes em geral.

Isso explicaria por que Trump teria assumido como seu o fracassado plano de ajuda humanitária israelense, rejeitado por todas as ONGs tradicionais, e esteja pressionando para que ele seja aceito, com o objetivo de distanciar os Estados Unidos das imagens de fome em Gaza. Nesse contexto, Netanyahu está sob tensão, entre a pressão para lançar a operação “Carros de Gideão” em sua versão extrema — a fim de evitar que seus aliados abandonem o governo — e a necessidade de alinhar-se aos interesses de Washington.

O genocídio, agora agravado pela fome em Gaza, continua corroendo a legitimidade do Estado de Israel no cenário internacional. Esse repúdio generalizado se expressou no surgimento de um movimento massivo de solidariedade com o povo palestino, protagonizado principalmente pela juventude das grandes universidades dos países centrais. Esse movimento denunciou não apenas o genocídio de Netanyahu, mas também a cumplicidade de seus próprios governos na chacina, sendo duramente reprimido com expulsões, processos por acusações de suposto “antissemitismo”. Nos Estados Unidos, essa perseguição inclui ameaças de deportação de estudantes, como Mahmoud Khalil, e um ataque generalizado às universidades, cujas autoridades cedem diante da ameaça do governo de cortar seu financiamento. Se comparado ao movimento contra a guerra do Vietnã, a perseguição estatal atual tem traços do macartismo, com um ataque sem precedentes ao direito de protesto e à liberdade de expressão. Parte dessa repressão é o julgamento contra Anasse Kazib, referência da Révolution Permanente na França, e o processo contra Vanina Biasi (deputada do Partido Operário na FITU da Argentina).

Nas últimas semanas, diante da brutalidade exibida pelo Estado sionista e da continuidade da colaboração dos governos “democráticos” ocidentais com os crimes de guerra de Netanyahu, há sinais de que esse movimento está ressurgindo. A mobilização na Universidade de Columbia e o protesto de docentes e estudantes no Brooklyn College no início de maio. As mobilizações massivas que começam a ocorrer como parte da comemoração internacional da Nakba, como no Estado espanhol. As organizações formadas por jovens judeus antissionistas que romperam com setores tradicionais. A enorme campanha internacional de solidariedade com Anasse Kazib. E, em outro nível, a ruptura com a organização “mainstream” da comunidade judaica britânica. São sinais de que há condições e motivos mais do que suficientes para colocar de pé um movimento internacional contra o genocídio perpetrado pelo Estado de Israel e seus cúmplices, contra a opressão colonial do estado sionista e em defesa do direito de autodeterminação nacional do povo palestino.

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