Revista Casa Marx

Marxismo e feminismo: um diálogo imprescindível para a emancipação

Andrea D’Atri

O texto que se segue é o prólogo da edição espanhola de Marx, as mulheres e a reprodução social capitalista, de Martha E. Giménez, publicado por Ediciones IPS.

Prólogo  

Aproximadamente desde 2015, as grandes manifestações – na Argentina e em outros países – contra os femicídios e a violência sexista, depois pelo direito ao aborto, para comemorar o Dia Internacional da Mulher ou para enfrentar os discursos de ódio da extrema-direita, foram focos de palavras de ordem e reivindicações que ultrapassaram os propósitos de cada ação. A par das exigências rigorosas de cada ocasião, a discriminação, o racismo, a superexploração, a pilhagem e a depredação da natureza também se manifestaram. Em diferentes partes do mundo, a exigência da legalização do aborto misturava-se com o desrespeito pela dívida externa; a exigência da utilização de uma linguagem inclusiva acompanhou as reivindicações de aumentos salariais ou a denúncia de demissões e encerramentos de empresas com maioritariamente mulheres empregadas; a publicidade que os femicídios ganharam levou à denúncia da cumplicidade patriarcal da polícia e dos tribunais, enquanto o racismo estrutural e a pobreza foram apontados. As maciças mobilizações feministas internacionais serviram de caixa de ressonância a múltiplos e diversos males sociais que fervilhavam antes da pandemia do coronavírus. 

O fato é que a violência masculina, as disparidades de gênero em todos os domínios da vida, os direitos que se ganham ou perdem consoante os ventos políticos, mostram que, após décadas de feminismo neoliberal – com a “expansão dos direitos” e o triunfo de um discurso individualista meritocrático -, as coisas não correram como nos disseram. O contraste entre a igualdade perante a lei e a desigualdade na vida dói, e dói muito. 

A equidade, o respeito e os direitos reinam no plano legislativo, cegos às vidas onde a ordem é imposta pela exploração, a precariedade, a violência e a pobreza. O feminismo neoliberal, empenhado em demonstrar que a única coisa a aspirar era a primeira – embora reconhecendo todas as suas limitações – tentou varrer para debaixo do tapete a outra: o agravamento das condições materiais de existência que, por sua vez, impedem o exercício universal dos direitos. Mas outros feminismos abriram-se nesta fenda: é possível pôr fim a todas as formas de discriminação, desigualdade, desprezo e opressão das mulheres no quadro do sistema capitalista? É neste tipo de questões que as tendências anticapitalistas do feminismo dão frutos. E quando se trata de atacar o capital, o marxismo aparece como uma arma de crítica inestimável.

Esquecido durante décadas, o feminismo marxista foi revalorizado com o surgimento da última onda feminista, que reabriu o debate sobre a relação entre o capitalismo e a reprodução da vida. Foi a pandemia do coronavírus – que abalou o mundo entre janeiro de 2020 e maio de 2023 – que tornou claro que o mundo continuava a funcionar graças às pessoas “essenciais” que continuavam a sua tarefa cansativa, no meio da calamidade: a sede de lucro do capitalismo atacava a vida, e a vida travava a sua batalha através do trabalho assalariado de alguns setores chave de uma classe maioritária e do trabalho livre de uma imensa maioria de mulheres. Esta era uma verdade que o feminismo marxista vinha sustentando, em voz quase inaudível, há várias décadas, sem qualquer catástrofe sanitária.

As feministas marxistas têm este mérito: o de terem debatido, a partir de várias abordagens, a ligação estrutural que existe entre o trabalho (livre) de reprodução social que se realiza na esfera doméstica e a exploração capitalista, através da qual a classe proprietária dos meios de produção obtém mais-valia a partir do trabalho excedente da classe assalariada. Tem sido feito um esforço louvável, especialmente a partir dos anos 70, para compreender esta relação complexa entre produção e reprodução e para lhe dar uma centralidade privilegiada na análise do modo como a classe e o gênero operam no capitalismo.

Este vasto trabalho teórico produziu teorias dualistas ou unitárias sobre o patriarcado e o capitalismo; teses sobre o valor de troca do trabalho doméstico ou explicações sobre o seu caráter improdutivo; críticas a Marx por não ter aprofundado a análise do circuito exterior à produção onde se reproduz a força de trabalho, ou tentativas valiosas de partir das suas próprias categorias para alargar a sua perspetiva global sobre a reprodução do capital, etc. O resultado coletivo desta produção teórica é diverso, contraditório e envolvente; mas, sobretudo, vital e uma demonstração contundente de que não há proposta social e política emancipatória que possa prescindir do diálogo com o marxismo

Atualmente, o livro mais conhecido desta coleção é, provavelmente, “O Marxismo e a Opressão das Mulheres”, de Lise Vogel, sendo uma teoria unitária. Publicada originalmente em 1983 e editada em espanhol pela primeira vez em 2024 1, esta obra é resgatada pelo seu papel fundador na Teoria da Reprodução Social. Vogel aborda o modo como, fora da esfera da produção, se reproduz a mercadoria particular da força de trabalho, cuja exploração está no cerne do funcionamento do capitalismo. Retoma também os debates sobre o trabalho doméstico que surgiram na década de 1970. Não é por acaso que este livro tem sido revalorizado nas últimas décadas, em que a crise do capitalismo se tornou uma recessão crônica sem solução progressiva à vista: uma agonia relativamente estável, com momentos agudos de tempestade e outros de relativa calmaria, prenhe de lutas sociais promissoras e fenômenos políticos aberrantes. Se a primeira onda feminista pode ser identificada com os direitos civis igualitários (nomeadamente o sufrágio) e a segunda com o reconhecimento das diferenças de gênero e a consagração dos direitos sexuais e reprodutivos, esta última parece estar mais ligada a promessas não cumpridas (e não realizáveis) no quadro degradado das democracias capitalistas neoliberais.

Os primeiros artigos de Martha E. Giménez, que foi uma de suas interlocutoras, datam do mesmo período em que Lise Vogel desenvolveu seu feminismo marxista. No caso de Giménez, essa produção se estendeu até a primeira década do século XXI e está reunida na coletânea ‘Marx, as mulheres e a reprodução social capitalista’. Ensaios feministas marxistas, publicado originalmente em inglês em 2018, que apresentamos aqui pela primeira vez em espanhol, graças à tradução de Mario Iribarren. Propomos uma reavaliação desta obra que, entre outras coisas, nos ajuda a imaginar a riqueza do debate e as contribuições dos feminismos marxistas, mesmo quando tiveram que superar os tempos difíceis do triunfalismo neoliberal em todo o mundo. 

O livro aborda várias questões; no entanto, o cerne deste projeto de investigação teórica reside na preocupação do autor em defender a validade do marxismo para explicar a funcionalidade e a subordinação da reprodução social, tal como a conhecemos, ao sistema de produção capitalista. Para Giménez, as mulheres não existem em abstrato, com vidas determinadas apenas ou principalmente pelo seu gênero; no mundo real, as mulheres ocupam um lugar nas estruturas de classe, socioeconômicas, raciais e étnicas que existem nas formações sociais capitalistas. Defende, por isso, um feminismo centrado nas mulheres trabalhadoras, não para ocupar um lugar num menu de opções que abordam as necessidades e queixas de várias minorias, mas precisamente porque as mulheres constituem a maioria da classe trabalhadora e porque as mulheres trabalhadoras são a maioria das mulheres. Esta vocação da maioria, da qual o marxismo feminista é porta-voz, aparece como um eixo distintivo da elaboração teórica e do apelo militante que Martha E. Giménez traça ao longo dos anos e do debate com diferentes teorias feministas e correntes políticas.

Para a autora, a divisão entre a produção de mercadorias na esfera pública e a reprodução da força de trabalho na esfera privada está na base da opressão das mulheres no capitalismo, entendido como um sistema global de produção universalizada de mercadorias, em que os despossuídos dos meios de produção (de diferentes gêneros) são forçados a vender a sua força de trabalho para sobreviver. Daí que o capitalismo cria a contradição de que a família, para a classe trabalhadora, se sinta como uma fonte alternativa de sobrevivência, ao mesmo tempo que é a instituição social que reproduz e legitima a opressão patriarcal. Ou, por outras palavras, que o trabalho gratuito de cuidados sustenta a subsistência da família na sua resistência muda à investida do capital, ao mesmo tempo que é a fonte da dependência econômica e da desigualdade social das mulheres, não só dentro mas também fora da esfera privada.

Um ângulo atrativo para os nossos leitores será descobrir o pensamento de Giménez, tendo em conta que ela estudou Direito na Universidade Nacional de Córdoba no final dos anos 50 e fez um mestrado no seu Instituto de Sociologia, antes de se estabelecer definitivamente nos Estados Unidos. Aí viveu a maior parte da sua vida até os dias de hoje, onde se encontra reformada do ensino universitário e da investigação há mais de uma década. É  interessante pensar em como as suas reflexões sobre a sobreposição de classe e gênero estão marcadas pela sua experiência política naqueles anos de resistência popular aos sucessivos golpes de Estado, de ativismo estudantil, de greves operárias e de fortes disputas teóricas na academia argentina; enquanto, como ela própria assinala, “a visão da sociedade oferecida pela sociologia norte-americana era irreal e incompleta, baseando-se numa perspetiva que enfatiza a ordem e o consenso” 2.

Na Argentina, esteve militantemente envolvida na luta de classes e nos Estados Unidos, como acadêmica, aproximou-se da teoria marxista, quando se sentia um “sapo de outro poço” numa sociedade muito mais conservadora. Como recorda a autora na introdução: “Para nós, classes, luta de classes, interesses de classe, oligarquia, exploração, imperialismo, colonialismo e revolução não eram simplesmente categorias sociológicas de validade e relevância discutíveis na ciência social, mas conceitos comuns e quotidianos, elementos do discurso político quotidiano, eles próprios partem de uma compreensão de senso comum da realidade social” 3 . Assim, as suas primeiras impressões sobre a vida das mulheres americanas, muito mais conservadoras do que as que tinha vivido durante a sua juventude na Argentina, preocuparam-na e despertaram o seu interesse pelo feminismo.

Embora o livro que aqui apresentamos seja uma compilação de artigos publicados ao longo de um período de tempo bastante extenso – um período marcado por significativas mudanças políticas, econômicas e sociais – cada um destes ensaios é marcado pela intenção persistente de Giménez de desenvolver uma perspetiva marxista-feminista sobre as condições materiais de opressão da grande maioria das mulheres, que são as da classe trabalhadora, entendidas não apenas como assalariadas no sistema capitalista, mas também como membros de redes de relações que pressupõem o seu trabalho gratuito de cuidados para a reprodução da classe explorada a que pertencem. 

A compilação está organizada em três partes: 

  1. Teoría Marxista Feminista, II. Reprodução social capitalista. III.Para onde caminha o feminismo?

A primeira parte começa com um artigo publicado em 1975, no qual Giménez polemiza com o feminismo liberal que ignora a divisão da sociedade em classes antagônicas, considerando que os direitos democráticos de que gozam principalmente as mulheres da classe média se baseiam na exploração assalariada da maioria das “suas irmãs” da classe trabalhadora. A sua preocupação é o desenvolvimento de um feminismo que não se isole teórica ou praticamente da luta de classes, compreendendo que a dicotomia não pode ser entre “consciência feminista” e “consciência de classe”, mas transcendendo os termos deste falso antagonismo numa perspetiva marxista que inclua não só a consideração da exploração capitalista, mas também a preocupação com as múltiplas formas de opressão social (de gênero, sexual, étnica, cultural, etc.), para avançar na elaboração de um programa concreto de libertação que torne possível “a prática real da igualdade” 4 . Apesar de terem passado cinquenta anos desde que este ensaio foi escrito, o debate voltou a ganhar importância quando a ultra-direita conservadora decidiu construir o feminismo como um inimigo, explorando as contradições e os limites da sua corrente hegemônica na sua aliança com os governos neoliberais progressistas das últimas décadas.

Nos dois ensaios seguintes, elabora uma dura crítica à teoria da interseccionalidade, questionando se não se trata de uma forma de política de identidade que “foi cooptada pelo recurso neoliberal à linguagem da diversidade em todo o lado (…), como se o objetivo original da interseccionalidade tivesse sido facilitar a mobilidade ascendente de alguns” 5. Também aponta que argumentar “que a classe trabalhadora é o agente fundamental de mudança não significa que ela seja o único agente de mudança” 6, mostrando que se a classe trabalhadora assume as lutas contra a opressão sexual e racial que a atravessam, esse mesmo movimento tem “o potencial de ser uma luta de classes”, porque os padrões de distribuição da propriedade, daqueles que suportam maioritariamente o fardo da produção de excedentes que sustentam a acumulação de riqueza em poucos, etc., são obviamente sobrepostos aos padrões de desigualdades sexuais e raciais. Mas, como Giménez assinala corretamente, esta compreensão “requer um esforço de consciência de classe” 7

Acrescentamos, a partir do nosso compromisso político militante, que este “esforço consciente” tem de ser concretizado num programa que permita aos trabalhadores revolucionários tornarem-se “tribunos do povo”; Isto é, não só para defender os seus interesses corporativos ou sindicais enquanto classe trabalhadora, mas também para se dirigirem às mulheres enquanto gênero oprimido, à juventude enquanto setor socialmente oprimido pelos adultos, aos migrantes enquanto população empobrecida e sujeita ao ódio xenófobo e racista, para os liderar na luta contra o capitalismo, que é patriarcal e racista. Nas palavras de Giménez, “Defender, então, que a classe é fundamental não é ‘reduzir’ a opressão de gênero ou racial à classe, mas reconhecer que esse poder subjacente, básico e ‘sem nome’ que está na raiz do que acontece nas interações sociais baseadas na ‘interseccionalidade’ é o poder de classe” 8.

E não podemos deixar de concordar com a autora quando defende que sexismo, racismo e classismo é uma formulação enganadora, porque enquanto as duas primeiras são ideologias que legitimam a desigualdade, a discriminação e a opressão, a relação entre classes designa relações de exploração delimitadas pela propriedade (ou não) dos meios de produção. É por isso que ele sublinha que as relações de classe “são simultaneamente um lugar de exploração e, objetivamente, um lugar onde se forjam os potenciais agentes de mudança social” 9. Estas ideias iluminam os debates atuais sobre o paradigma da vitimação dominante nos movimentos sociais, em que o lugar da vítima (de um mal causado por um outro individual) permite a construção de uma identidade que tem reconhecimento social e político – na medida em que não é uma identidade coletiva – mas desvaloriza o caráter estrutural das condições de segregação, discriminação ou opressão que são entendidas, a partir da biografia pessoal, apenas como “mal”. 

A seção encerra com uma crítica feminista marxista ao feminismo materialista, publicada originalmente em meados da década de 2000, na qual questiona as teorias anticapitalistas que, ao “evitarem os supostos reducionismos do marxismo” 10, resultaram numa conceção a-histórica e dualista do patriarcado e do capitalismo em vez de avançarem na compreensão dos fundamentos capitalistas da opressão das mulheres. Também diferencia entre as primeiras feministas materialistas que tomaram o marxismo como ponto de partida das suas teorizações e o atual feminismo materialista que se baseia na rejeição pós-estruturalista ou pós-moderna do marxismo em sua essência. 25 anos após a publicação original deste ensaio, vale também a pena repensar a revalorização ou o ressurgimento do feminismo materialista no calor da crise capitalista e em que sentido representa uma mudança em relação à viragem linguística anterior. Será hoje possível um diálogo teórico e político mais frutuoso entre os feminismos materialistas e os feminismos marxistas? 

A segunda parte, sobre a reprodução social capitalista, baseia-se no argumento de que o agregado familiar, no capitalismo, se torna o principal local de reprodução (biológica, quotidiana e geracional) da força de trabalho e, por conseguinte, a base material da opressão sexista, segundo a qual a força de trabalho feminina é trabalho doméstico e não trabalho produtivo. Esta seção é composta por sete ensaios que abrangem um período que vai desde o final dos anos 70 até aos primeiros anos do século XXI e que abordam diferentes temas: população, autossuficiência, natalidade, maternidade, reprodução e procriação.

Para Giménez, a lei da acumulação de capital afeta a fertilidade, a mortalidade, a migração e muitos outros fenômenos sociais que, por sua vez, modificam os contextos econômicos. Esta tese é desenvolvida no primeiro ensaio desta seção. No ensaio seguinte, a autora reflete sobre como, apesar das lutas feministas e do recuo das ideologias conservadoras em relação às décadas anteriores, a luta pela igualdade e contra a opressão das mulheres continua a ser necessária devido à persistência do mandato familiar que limita as escolhas reprodutivas e sexuais das mulheres. Em seguida, analisa criticamente as tecnologias reprodutivas e o seu impacto social. A sua tese central é que, ao fragmentar o processo de reprodução, são criadas condições para a existência de um mercado de “elementos” biológicos envolvidos na procriação (óvulos, espermatozóides, úteros, etc.), gerando um “modo de procriação” mercantilizado, separado do modo de reprodução social em que o processo de procriação/criação faz parte do trabalho livre, maioritariamente realizado por mulheres, na esfera privada (por oposição ao mercado). Para a autora, a globalização deste mercado da procriação reforça a opressão das mulheres, ao invés de capacitar economicamente algumas mulheres e oferecer a outras a possibilidade de realizar os seus desejos. Um debate que divide atualmente os feminismos, impulsionado por um maior desenvolvimento das tecnologias reprodutivas, uma crescente mercantilização do processo reprodutivo e uma clara segmentação de classes e regiões entre mulheres “prestadoras” do serviço e clientes, enquanto a conceitualização dos desejos, dos direitos humanos, da liberdade sexual e dos modelos de maternidade difundem múltiplos níveis de leituras a um fenômeno inédito.

Nos dois capítulos seguintes, a autora discute as contradições do trabalho doméstico em sentido lato. Aponta como este trabalho gratuito é uma fonte de opressão e desigualdade para as mulheres, mas, ao mesmo tempo, como contém algumas experiências que, se não forem mediadas pela formação social capitalista, prefiguram relações sociais não mercantilizadas e não utilitárias baseadas no afeto e no livre consentimento. Esta segunda seção termina com um artigo que sintetiza as principais ideias do pensamento de Martha E. Giménez, onde se delimita a partir das teorias da reprodução social, colocando especial ênfase na subordinação, imposta pelo capital, da reprodução à produção. Por outras palavras, questiona a ideia de que a produção de mercadorias depende da reprodução da força de trabalho. Para o efeito, começa por definir a reprodução social (no capitalismo) como a reprodução das classes trabalhadoras, que constituem a grande maioria da população e cuja reprodução está absolutamente sujeita aos altos e baixos da economia.

A terceira seção, “Para onde vai o feminismo?”, encerra este livro com uma visão esperançosa. Para Giménez, que se sentiu isolada no início da sua carreira ao centrar-se na teoria marxista para analisar e debater fenômenos e processos que só interessavam às feministas, há muitas possibilidades para o ressurgimento de um feminismo marxista hoje. A polarização entre o enorme aumento da riqueza de um pequeno punhado de proprietários, por um lado, e as tentativas extenuantes do capital para minimizar os seus “custos laborais”, através de baixos salários, precariedade e flexibilização, etc., são a base material sobre a qual, segundo Giménez, os feminismos que se centram exclusivamente nos direitos das mulheres perdem o seu poder de convocação. Estes três artigos se esforçam por apelar ao feminismo para que não se concentre apenas na opressão da maioria das mulheres, as da classe trabalhadora (em sentido lato), mas também para que considere que os problemas fundamentais que as afetam também afetam a classe trabalhadora no seu conjunto. Partir deste ângulo dos interesses comuns partilhados pela classe trabalhadora, para atacar os antagonismos de gênero, sexuais, raciais e outros que a atravessam, é fundamental para compreender como é que o capitalismo reproduz estes sistemas de opressão, a fim de assegurar taxas de exploração mais elevadas em seu próprio benefício.

Os fenômenos da “feminização das migrações”, da “feminização do trabalho”, da “feminização da pobreza”, etc. são, para a autora, indicadores de uma transformação de alcance histórico que o capitalismo está a produzir nas relações entre homens e mulheres, bem como entre as próprias mulheres, a nível internacional. O feminismo é cada vez menos capaz de prescindir de uma leitura materialista histórica da relação entre produção e reprodução no capitalismo para promover a libertação das mulheres de toda a opressão. Todo o seu esforço teórico reside, nas suas palavras, em “transcender a reificação dos conceitos de classe e classe trabalhadora como separados das relações de opressão em geral, e das lutas das mulheres e outras lutas baseadas na identidade em particular”11. Mesmo que as feridas infligidas pelo capitalismo possam ser compreendidas, inicialmente, através das marcas da identidade.

O que mais nos motivou a traduzir e publicar o trabalho de Martha E. Giménez – apesar das nuances teóricas e políticas que possamos ter em relação às suas elaborações – é o fato de ela defender a necessidade de um feminismo anticapitalista e marxista que, por isso, deve ser um feminismo da classe trabalhadora. Não num sentido identitário, nem no sentido de reivindicar um sujeito político pelos seus sofrimentos, mas pelo potencial que a classe trabalhadora tem para rebentar com as molas da exploração capitalista e tomar o céu de assalto. Embora muitos dos debates levantados por Giménez tenham tomado novas formas nos anos mais recentes, e quase todo o seu trabalho iniciado durante a segunda onda do feminismo norte-americano tenha continuado nos anos difíceis da contra ofensiva global do capital, ela se esforça por transmitir essa potencialidade da classe maioritária que faz mover o mundo. Potencialidade essa de que um feminismo marxista – que não pode ser apenas uma teoria sem aspirações a transcender a academia para se tornar uma força material, política e transformadora – mas que deve convencer as mulheres para a luta pela sua emancipação, que é também a luta pela emancipação de toda a humanidade das garras do capital.

NOTAS

1.  Lise Vogel (2024), El marxismo y la opresión de las mujeres. Hacia una teoría unitaria (prólogo de Paula Varela), Buenos Aires, Ediciones IPS-CEHTI.
2. Martha E. Giménez (2025), Marx, las mujeres y la reproducción social capitlita. Ensayos feministas marxistas, Ediciones IPS, Buenos Aires, p. 22.
3.  Ídem.
4. Ibídem, p. 69.
5.  Ibídem, p. 96.
6.  Ibídem, p. 81.
7.  Ídem.
8.  Ibídem, p. 82.
9.  Ibídem, p. 81.
10.  Ibídem, p. 99.
11. Martha E. Giménez (2019), “Mujeres, clase y política identitaria. Reflexiones sobre el feminismo y su futuro”, en Monthly Review, vol. 71, N.º 4, Londres.
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