Ítalo Gimenes
Chris Amélio Castañeda
Neste texto analisamos os desafios e perspectivas para se construir uma oposição de esquerda ao governo Fátima em seu sétimo ano no Rio Grande do Norte à luz dos desenvolvimentos da situação nacional, da economia e da luta de classes no Brasil e no RN.
Nesses primeiros meses de 2025, viemos debatendo no Esquerda Diário a expressão de elementos de fim de ciclo dos governos do PT a nível federal, com possíveis sintomas de um esgotamento do que viemos definindo como “lulismo senil”. Uma definição que trata da tentativa do regime político burguês de restaurar a sua hegemonia apostando na conservação de elementos do lulismo, que representou o auge da hegemonia burguesa pós-ditadura, mas em um momento totalmente distinto, sem as mesmas bases materiais, econômicas. Por isso o adjetivo “senil”, que não diz respeito à idade biológica de Lula, mas sim à dificuldade de retomar um projeto político que já se esgotou objetivamente, embora na subjetividade de massas ainda carregue certa vitalidade. Ainda que a idade e saúde de Lula sejam também um fator no que diz respeito ao problema da sua sucessão política.
O Nordeste sempre foi um dos pilares indiscutíveis do lulismo, sendo a região com maior concentração de suas bases sociais, sobretudo em termos de voto. Por isso que é expressivo do ponto de vista da crise de setores da base social do lulismo ver que o “tombo” da aprovação do atual governo Lula foi bastante forte também na região.
O DataFolha divulgado no dia 14 de fevereiro mostra que a aprovação de Lula caiu 11 pontos em dois meses, de 35% para 24%, chegando ao pior patamar entre todos os governos dele. Mais baixo que até mesmo o período do mensalão. A reprovação também é recorde, passando de 34% para 41%. Na parcela dos que ganham até dois salários mínimos, onde Lula reservava nicho importante, a aprovação caiu de 44% para 29%. No Nordeste, a queda na aprovação foi de dez pontos, e de sete pontos entre as faixas de renda mais baixa. Na avaliação de ótimo/bom caiu muito, saindo de 49% para 33%.
Diante disso, é necessário refletir de que maneira esses sintomas de esgotamento do lulismo se manifestam nos governos estaduais do PT. Nesse texto, tratamos do governo de Fátima Bezerra no RN, o primeiro governo do PT no estado, que completa 7 anos, analisando quem foram os agentes econômicos, sociais e políticos que se fortaleceram nesse período com o objetivo de contribuir para o construção de uma oposição de esquerda aos governos de Lula e também de Fátima.
Em 2018, pela primeira vez o PT elegeu quatro governadores no Nordeste em uma só eleição. Entre eles esteve o de Fátima Bezerra no RN. Esse resultado, em um momento de maior isolamento do PT após o golpe institucional de 2016 e toda a manipulação judicial das eleições de 2018 que impediram a candidatura de Lula, indicava um aparente paradoxo. O efeito contraditório do golpe institucional de 2016, cuja intenção era girar à direita o questionamento de setores de massa ao projeto lulista a partir das jornadas de Junho de 2013 e o ascenso grevista de 2014, foi de impedir que essa experiência fosse levada a cabo e acabou conservando o lulismo na subjetividade de massas. Um efeito contraditório do golpe institucional que, em meio a eleição da extrema-direita de Bolsonaro, levou a novos governos do PT no Nordeste, como o de Fátima.
No âmbito estadual, outro fenômeno contribuiu para a vitória eleitoral de Fátima. Em coligação com o PCdoB – partido totalmente enfraquecido, mas que se sustentava na CTB – a sua candidatura buscava se localizar na crise do ciclo de governos oligárquicos dos governos do RN após a ”redemocratização”. Um ciclo marcado pela alternância de representantes e aliados das principais oligarquias do estado, passando pelos Maia, Alves, Faria e Rosado. Nessa eleição, nenhuma das famílias quis aparecer junto ao PT.
A debilidade das oligarquias regionais vem de uma série de fatores, como os escândalos de corrupção contra Henrique Alves nas obras da Copa e do governo de Micarla, e a revolta do busão. Mas mais de conjunto, esse desgaste faz parte do fenômeno de crise orgânica no país, marcada por uma maior separação entre a população e suas representações tradicionais, abrindo espaço para alternativas à esquerda e à direita. Não à toa, o discurso contra as oligarquias foi um dos carros chefes da eleição de Fátima em 2018.
Uma crise que se expressa nacionalmente com junho de 2013, um questionamento à esquerda ao projeto do lulismo, e que teve o seu primeiro ensaio em Natal, com a revolta do busão de 2012, parte fundamental do esgotamento político das oligarquias potiguares.
Desde a primeira eleição de Fátima, o Esquerda Diário defendeu uma política de independência dos trabalhadores que confiassem apenas na sua própria força organizada para derrotar a extrema-direita e as oligarquias regionais, alertando que o caminho da conciliação de classes do PT e de Fátima levaria ao fortalecimento dos ataques aos trabalhadores e da direita.
7 anos de governo Fátima, o fortalecimento objetivo do projeto econômico do golpe institucional e do Centrão e as aparências progressistas
Não é preciso muito para afirmar categoricamente que os governos Fátima representaram uma reabilitação das oligarquias estaduais. Além de políticos fisiológicos, do Centrão. O governo Fátima hoje tem como base o UB e o PP, e estabeleceu uma aliança com Ezequiel do PSDB, presidente da ALRN desde 2002, herdeiro de uma família de políticos tradicionais do Estado.
A reeleição de Fátima em 2022, em primeiro turno, se deu no auge da Frente Ampla. A composição da sua chapa foi parte dos acordos nacionais do PT com o Centrão, trazendo o MDB e a oligarquia dos Alves para apoiar a eleição de Lula. Dessa forma, o governo que havia “derrotado as oligarquias”, nas palavras do PT, foi responsável por reabilitar os Alves, uma oligarquia que na sua origem carrega relações com os EUA.
Junto do fortalecimento de setores das oligarquias e do Centrão, o que se viu nos 7 anos de Fátima foi a implementação dos pilares do projeto do golpe institucional no RN, fortalecendo os lucros do extrativismo da exploração de petróleo e das eólicas, o agronegócio potiguar, e a fortuna de bilionários escravistas como Flávio Rocha.
Uma fortuna garantida em base ao aprofundamento da precarização do trabalho. Os elevados índices de trabalho informal denunciam essa realidade, que é resultado da Reforma Trabalhista que a Frente Ampla de Lula se elegeu para preservar. 45,84% da mão de obra ocupada vive sob esse regime de trabalho, muito acima dos (também elevados) 39,1% que representam a média nacional. E a maior parte dessa força de trabalho está localizada no setor de serviços e no comércio, que compõem 73,5% do PIB estadual. São os trabalhadores de aplicativo, vendedores nas praias, garçons, trabalhadores da hotelaria. Mas o trabalho informal também tem peso na própria indústria, como nas facções têxteis da Guararapes. Ou seja, em 7 anos o Rio Grande do Norte de Fátima Bezerra seguiu vendo a precarização do trabalho se aprofundar com ela sendo parte da aplicação do projeto de país da reforma trabalhista, que é responsável pela percepção de piora da vida da população, apesar dos números do PIB.
E não para por aí, o projeto de país do golpe foi garantido pelo seu governo por outras vias. Como forma de garantir o pagamento da dívida do estado com a União – vinculada aos títulos da dívida pública, portanto à exigência de ajustes fiscais – no seu primeiro ano de governo Fátima implementou a reforma da previdência de Bolsonaro, dizendo ser do interesse do “povo potiguar”.
Além disso, ao longo do seu mandato, o RN assistiu a saída da Petrobrás, que privatizou todos os poços de petróleo (majoritariamente em terra), além da principal refinaria, Clara Camarão, em Guamaré, para a 3R PETROLEUM. Ainda que sejam privatizações conduzidas no âmbito federal, com Bolsonaro e Temer à frente, não houve qualquer oposição por parte de Fátima ou do PT. Ao contrário, o governo de Fátima ofereceu incentivos fiscais para aumentar a exploração de petróleo e gás no estado.
Esse projeto extrativista do petróleo estadual é o principal fator que explica os surpreendentes índices de industrialização do RN dos últimos anos. A indústria potiguar cresceu 13,7% entre janeiro e agosto de 2024, quatro vezes mais que a média nacional. Nos anos de 2021 e 2022, a indústria cresceu para 60% do PIB do RN, saindo de 14,7 bilhões para 23,6 bilhões. A participação do PIB da indústria no PIB do RN é a maior desde 2012, que era 22,1%, chegou a 25,1% em 2022, depois de anos de baixa após o golpe institucional quando esse índice ficou entre 16% e 18%1 . A extração de petróleo e gás é onde está concentrada essa participação da indústria no PIB do RN, representando cerca de 25% desse montante. Outros 25% são de refino de coque (derivados de petróleo e biocombustíveis) . Em seguida vem a construção civil, com 19,7%, com construção de estradas, além dos parques eólicos e solares.
Tudo isso representou uma mudança importante na economia do estado, que até 2020 tinha como principal pauta de exportação as frutas, melão principalmente, impulsionadas pela fruticultura irrigada do agronegócio. O setor seguiu crescendo em exportação, mas foi ultrapassado pela exportação de petróleo bruto2. Com a política de Lula de impor a exploração de petróleo na Margem Equatorial, fazendo pressão sobre o IBAMA, o RN seria um dos estados afetados. A Margem Equatorial consiste em um conjunto de bacias hidrográficas localizadas no litoral Norte do país, que vão do Amapá (onde está a Foz do Amazonas, principal foco de tensão com o Ibama), até o RN, com a Bacia Potiguar. E o RN foi o primeiro estado desse território a dar início à exploração de petróleo, com perfurações ocorrendo desde o começo de 2024 e um leilão para venda de poços marcado para junho deste ano.3
Todo esse panorama contrasta com a imagem que Fátima e Lula querem promover do RN como motor da produção de energias renováveis do país. É inegável a força que ganharam em especial as eólicas no estado a partir do governo Fátima, mas os dados que mostramos antes colocam o RN como uma frente de expansão da produção de combustíveis fósseis.
As petroleiras privadas não foram as únicas a se fortalecer sob o governo de Fátima. Flávio Rocha, dono da Guararapes/Riachuelo, acusado de empregar trabalho escravo, apareceu como sétimo bilionário mais rico da revista Forbes4 . Foi parte da radicalização burguesa de 2018, sendo candidato da extrema-direita nas eleições nacionais, apoiador público de Bolsonaro, e recebeu diversos incentivos do governo Fátima. A própria produção têxtil nas facções (fabriquetas improvisadas, baseadas na produção por peça), foram fortalecidas através do programa Pró-Seridó. Nessa mesma lista da Forbes aparece em primeiro lugar a empresa cearense “Casa dos Ventos”, que controla a maior parte das torres eólicas do RN, envolvida nas denúncias de expropriação5 de pequenos produtores do interior6 .
Tudo isso mostra como a conciliação de Fátima enriqueceu enormemente os poderosos da burguesia escravista, nacional e imperialista, dentro do estado, e o leilão do aeroporto e a privatização da CAERN via PPP no seu segundo mandato é parte disso.
Hoje as pesquisas mostram Fátima em uma situação de baixa aprovação, com 18% vendo como ótimo ou bom, 21,6% como regular e 59,3% como ruim ou péssimo. Segundo a mesma pesquisa, ela tem 28,9% de aprovação e 68,1% de desaprovação. São números que correspondem aos sintomas de esgotamento do lulismo também a nível estadual, representando um forte desgaste da figura de Fátima – embora sempre deve-se levar em conta que no RN as pesquisas costumam estar associadas a alguma oligarquia e já se provaram bastante falhas, como nos índices de intenção de voto da deputada Bonavides nas últimas eleições para prefeitura de Natal.
Embora saibamos que a sua política busque se ligar com setores dos movimentos sociais, sobretudo ligados à cultura, ao MST, com o funcionalismo público, com algumas medidas democráticas para manter o apoio da sua base eleitoral e se diferenciar dos políticos tradicionais do estado, Fátima governa como sempre à serviço dos empresários e atacando os trabalhadores, seguindo sem garantir o piso salarial aos professores, atrasando frequentemente o salário de trabalhadores terceirizados da saúde e da educação, mantendo o RN sem nenhum centímetro de terra indígena demarcada. Ao mesmo tempo em que reflete no RN a aliança entre a frente ampla e o bonapartismo judiciário para criminalizar as greves e paralisações, como vimos com a greve do IBAMA/ICMbio nacionalmente em 2024 e com diversas greves da saúde estadual e de outras categorias no RN.
Ou quando se orgulha de ter fortalecido o aparato repressivo do estado, sendo a polícia o setor com maior número de contratações no seu governo. No próprio site do governo diz: “[…] 4.600 novos policiais que incorporamos ao quadro desde 2019, sendo 1.600 somente em 2024. É fruto das mais de 700 viaturas adquiridas nesse período, das promoções e valorização das carreiras, além dos investimentos em inteligência, videomonitoramento e armamentos”. O que não representou uma maior segurança para a população, ao contrário, nas periferias do estado, principalmente na capital potiguar, Fátima se faz responsável pela morte da juventude negra.
A começar com Giovanni Gabriel, em 2020, até hoje sem direito à justiça, e mais recentemente de Bárbara, uma jovem morta na frente de casa por uma bala perdida da polícia em operação no Passo da Pátria. Para não mencionar o evidente aumento de operações da PM do estado, sobretudo em Mãe Luiza e na Vila de Ponta Negra, regiões alvo da gentrificação e da indústria do turismo. Assim, o governo Fátima leva adiante uma mesma política que o PT vem conduzindo em outros estados, como na Bahia, governada por Jerônimo Rodrigues, que é hoje a polícia que mais mata a juventude negra do país.
O cenário eleitoral de 2026 já vem se antecipando no RN, junto com a antecipação das discussões nacionalmente. Aqui no estado a direita aparece ainda bastante dividida, medindo o capital político de cada candidato. Para governador já há a pré-candidatura de Styvenson Valentim (PSDB), Álvaro Dias (Republicanos), o prefeito de Mossoró Allyson Bezerra (UB) e Rogério Marinho (PL). Todos figuras novas da direita que surgiram no pós golpe. Já o PT lançou seu pré-candidato, Carlos Eduardo Xavier, que é Secretário da Fazenda de Fátima. Um político até então desconhecido em termos de figura, mas que aparenta ter um perfil bastante próximo ao mercado. Em reunião com a FIERN, defendeu limitar as despesas salariais do Estado. Falou também do avanço das PPPs, dos incentivos fiscais do estado via PROEDI, além da Lei Ambiental de Fátima, que é uma flexibilização do licenciamento ambiental pelo IDEMA, que vai passar para os municípios, que são mais suscetíveis às econômicas políticas locais. Bastante expressiva essa escolha, com o PT dando sinal forte ao empresariado potiguar, deixando Natália Bonavides – a deputada “progressista” que apoia o arcabouço fiscal e o desmatamento da Mata Atlântica – em segundo plano, ainda que não podemos descartar possíveis reconfigurações nesse cenário.
Por uma oposição de esquerda ao governo Lula e Fátima que fortaleça cada greve com um programa contra as reformas e a precarização do trabalho e contra o extrativismo e as privatizações!
Ao mesmo tempo, viemos definindo uma recomposição da subjetividade dos trabalhadores a nível nacional, com o questionamento à violência policial e à escala 6×1, que aqui no RN, assim como no Piauí, se expressa também nas fortes greves de professores, sendo as mais fortes greves contra governos estaduais do PT desde que Lula voltou ao poder. Ao lado de fortes greves da saúde, do DETRAN e outras categorias que se enfrentaram com o governo Fátima ao longo do seu mandato, setores que tradicionalmente compõem a base do PT regionalmente, expressam ainda uma debilidade de um certo “lulismo invertido” que representou o projeto de Fátima. Ela que veio da categoria de professores e buscou se localizar na categoria ao pagar os salários atrasados de Robinson, manteve a sua força em base ao funcionalismo, de certa forma invertendo a fórmula do lulismo que, após o escândalo do mensalão, passou se apoiar nos setores mais precários da classe.
Tudo isso coloca um desafio para os setores que querem se enfrentar com a miséria capitalista que se expressa na vida da população do país e também no RN, que é a de organizar uma forte oposição de esquerda tanto ao governo Lula-Alckmin como ao governo de Fátima. Uma oposição que possa estar preparada para os choques mais abertos na luta de classes e impedir que as burocracias sindicais e dos movimentos (controladas pelo PT aqui e em todo o país) contenha nossa força nos limites das instituições desse regime degradado, abrindo espaço para que a direita canalize a experiência de massas com esses governos.
E que tenha como base o fortalecimento de cada uma das lutas em curso e com um programa de rechaço ao Arcabouço Fiscal, à escala 6×1, junto à revogação das reformas trabalhista e da previdência e pela redução da jornada de trabalho para 30h sem redução salarial, para dar um basta na precarização do trabalho e no desemprego. Mas também contra o extrativismo das petroleiras nacionais e internacionais, defendendo a reestatização da refinaria Clara Camarão e dos poços de petróleo no RN, parte da luta por uma Petrobrás 100% estatal e sob controle dos trabalhadores. E que as torres eólicas e parques solares sejam estatizados e colocados a serviço de um plano de transição energética ecológica, preservando a Caatinga e outros biomas. E que para isso seja dirigido pelos seus trabalhadores em aliança com especialistas das universidades e do movimento ambientalista e que as comunidades agrárias e tradicionais tenham poder de decisão. A serviço desse projeto que chamamos a todas, todos e todes a se organizarem junto conosco.
NOTAS
1. https://tribunadonorte.com.br/economia/pib-industrial-do-rn-cresce-60-em-um-ano-e-atinge-maior-patamar-desde-2009/
2. https://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2023/02/24/agronegocio-e-responsavel-345percent-das-exportacoes-do-rn-em-2022.ghtml
3. https://opoti.com.br/anp-recebe-propostas-para-leilao-de-petroleo-e-gas-no-rn-ate-31-de-marco/
4. https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/brasil/2024/08/nordeste-tem-18-bilionarios-na-lista-da-forbes-em-2024-saiba-quem-sao.html
5. https://reporterbrasil.org.br/2023/12/latifundiarios-ventos-empresas-eolicas-rio-grande-do-norte/
6. https://reporterbrasil.org.br/2024/01/eolicas-reforma-agraria-rio-grande-do-norte/