Juan Chingo
No auge de sua expansão externa, o setor automotivo chinês enfrenta uma crise interna de superprodução, queda de margens, endividamento massivo e tensões financeiras em cascata.
A China conquistou o mercado global de veículos elétricos (VEs) com uma rapidez e contundência sem precedentes. Em apenas uma década, passou de um ator marginal a se tornar o maior fabricante e exportador do planeta: sete em cada dez VEs vendidos no mundo hoje são fabricados na China. No entanto, por trás dessa aparente vitória, esconde-se uma paradoxo que ameaça arrastar todo o setor ao colapso. É que, justamente no momento de sua maior expansão externa, o setor automotivo chinês enfrenta uma crise interna de superprodução, queda das margens de lucro, endividamento massivo e tensões financeiras em cascata. A mesma máquina industrial que impulsionou sua ascensão meteórica está se transformando em seu pior inimigo.
Da febre do ouro à superprodução crônica
O coração do problema é uma capacidade produtiva superdimensionada. Já no ano passado, o Wall Street Journal apontava:
A China tem um longo histórico de excesso de capacidade no setor automotivo, com mais de 100 marcas nacionais produzindo mais veículos do que os motoristas do país compram a cada ano. Ainda assim, o governo continua incentivando montadoras deficitárias a manter a produção, enquanto autoridades tentam impulsionar o crescimento econômico, preservar empregos e ampliar os negócios no mercado global de veículos elétricos… Atualmente, a China tem capacidade para produzir cerca de 40 milhões de veículos por ano, embora venda apenas cerca de 22 milhões no mercado interno, segundo dados da consultoria Automobility, sediada em Xangai, e números da Associação Chinesa de Veículos de Passageiros.
No ano passado, a China atingiu 6,4 milhões de unidades vendidas, o que reforça seu status como o maior mercado de veículos elétricos do mundo. Outros 4,9 milhões de híbridos plug-in também foram vendidos. Mas a capacidade instalada é muito superior:
A taxa média de utilização das fábricas de automóveis chinesas foi inferior a 50% em 2024, segundo o Gasgoo Automotive Research Institute, um centro de estudos com sede em Xangai. Apesar disso, os estoques de veículos novos de passageiros estão se acumulando: autoridades de Pequim manifestaram especial preocupação com o fenômeno dos veículos “quilometragem zero” — carros que aparecem no mercado de usados com o hodômetro zerado, indicando que os fabricantes estão inflando artificialmente seus números de venda.
Não se trata de um simples erro de planejamento: é o resultado de uma estratégia nacional que transformou o carro elétrico no símbolo do novo “sonho chinês”, com generosos subsídios, crédito farto e uma corrida desenfreada por parte de governos locais, bancos e empresas de tecnologia, que possibilitaram o surgimento de dezenas de montadoras emergentes.
O outro lado da moeda é que o entusiasmo industrial pela revolução dos veículos elétricos, estimulado por anos de incentivos, criou uma bolha de fábricas que hoje produzem mais do que o mercado consegue absorver, gerando uma situação em que, cada vez mais, o status quo se torna insustentável. Inclusive, observadores nacionais afirmam que a consolidação e a reestruturação da indústria já são necessárias há tempos.
Em 2024, existiam 129 marcas de veículos elétricos na China. Mas, segundo o relatório Panorama Automotivo Global 2025, da consultoria AlixPartners, apenas 15 delas terão condições financeiras de sobreviver além de 2030. Apesar de o país ter se tornado sinônimo de eficiência e liderança tecnológica no setor automotivo, a saturação do mercado, o freio no crescimento interno, as novas tarifas globais e as tensões geopolíticas empurram o setor para uma consolidação sem precedentes. As empresas que não conseguirem escalar rapidamente, se adaptar ao ambiente internacional ou desenvolver marcas sólidas, desaparecerão 1.
A guerra de preços: um caminho rumo ao abismo
O ponto de inflexão veio em 23 de maio de 2025, quando o maior fabricante de VEs da China causou choque ao anunciar cortes drásticos em 22 de seus modelos elétricos e híbridos. O preço inicial de seu popular modelo Seagull despencou para apenas 55.800 yuans (cerca de US$ 7.700), um valor significativamente inferior aos já competitivos 73.800 yuans (cerca de US$ 10.000) de seu lançamento dois anos antes. Em média, a redução chegou a 34% dos preços.
Em seguida, o que parecia ser uma promoção pontual se transformou em uma guerra de preços sistêmica. Mais de 70 modelos de outras marcas seguiram a ofensiva, iniciando uma espiral deflacionária que afundou as margens de lucro do setor a níveis ridículos: 3,9% no primeiro trimestre do ano. Para comparação, redes de chá com bolhas na China superam os 20% de rentabilidade. Como bem observa Andrea Ferrario:
Estamos diante de uma situação grotesca: um setor de alta tecnologia e grande investimento de capital compete com margens inferiores às da venda de bebidas açucaradas. Enquanto isso, as fábricas continuam operando em meia capacidade, acumulando veículos em depósitos e destruindo valor em escala industrial.
Para alguns analistas, como Adrian Monck, as montadoras chinesas: “estão sangrando dinheiro a um ritmo que faria corar até as startups mais perdulárias do Vale do Silício” 2.
O risco financeiro: uma corrente prestes a se romper
Mas o problema não é apenas comercial: a estrutura financeira do setor é uma bomba-relógio. As montadoras chinesas enfrentam dívidas de curto prazo superiores a 2 trilhões de yuans (278 bilhões de dólares), um valor que supera, de longe, o do combalido setor imobiliário. Ao contrário dos incorporadores, cuja dívida está concentrada em bancos, as montadoras devem principalmente a seus fornecedores — em sua maioria, pequenas e médias empresas que não dispõem de instrumentos para pressionar seus devedores.
Quando os grandes fabricantes atrasam pagamentos por meses — como já vem ocorrendo —, essas PMEs entram em uma zona de extrema vulnerabilidade, multiplicando o risco de falências em cadeia. O desequilíbrio se propaga por toda a cadeia de suprimentos, ameaçando desencadear uma crise sistêmica na economia real. A BYD foi recentemente pressionada a defender seus números financeiros e suas práticas comerciais após Wei Jianjun, presidente da rival Great Wall Motor, pedir uma auditoria completa de todos os principais fabricantes de automóveis do país. “Neste momento, existe um Evergrande no setor automotivo [chinês], só que ainda não explodiu”, declarou à imprensa local, levantando o espectro de que a indústria siga os passos do setor imobiliário e entre em uma espiral de crise de dívida.
Pequim toma nota: um chamado à autorregulação
Diante do crescente descontrole, o governo chinês começou a intervir. Em uma rara reunião conjunta, os principais dirigentes do Ministério da Indústria, da agência de planejamento econômico e da autoridade do mercado convocaram as grandes montadoras — BYD, Geely, Xiaomi — para enviar um recado direto: evitar guerras de preços, não vender abaixo do custo e conter práticas de maquiagem contábil, como a venda de “carros com quilometragem zero” a concessionárias ou financeiras.
Em especial, a pasta econômica está profundamente preocupada com os efeitos perniciosos que essa competição feroz pode causar nos investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D) e, inclusive, na segurança dos veículos. Dias depois, em 1.º de junho, o People’s Daily, a influente voz midiática do Partido Comunista, somou-se às críticas, argumentando que produtos de baixo custo e qualidade inferior podem corroer a reputação global da marca “feito na China” 3. O carro elétrico é um símbolo político, uma aposta geoestratégica do modelo de desenvolvimento chinês. Sua implosão representaria um fracasso sistêmico do capitalismo promovido pelo Estado sob Xi Jinping e o Partido Comunista em sua versão mais ambiciosa.
Gigante com pés de barro?
Está em jogo o destino de um setor celebrado pelo presidente Xi Jinping como pilar do futuro econômico da China. Xi passou os últimos cinco anos tentando reorientar a economia, afastando-a dos motores tradicionais de crescimento, como o setor imobiliário, e guiando-a rumo a “novas forças produtivas”, como a fabricação de automóveis e energia limpa. Fortalecer a saúde financeira da indústria ajudaria a consolidar a posição da China como potência automobilística global. No entanto, a tarefa se apresenta árdua. Isso porque à necessária racionalização econômica — como aponta Adrian Monck no artigo citado — se opõe:
“… uma rede de interesses conflitantes dentro da China que está dificultando uma consolidação saudável. Existe um conflito fundamental: o governo central quer empresas saudáveis, mas como a indústria automotiva emprega muita gente, os incentivos [para a consolidação] não estão alinhados no nível provincial”, afirma Tu Le, diretor-geral da Sino Auto Insights. Desde 2020, os fabricantes de automóveis chineses criaram cerca de um milhão de empregos, segundo uma análise dos relatórios anuais das empresas feita pelo The Wire. Em um momento em que a economia chinesa desacelera, a consolidação poderia deixar dezenas de milhares de pessoas desempregadas — um resultado politicamente custoso que os governos locais querem evitar a todo custo.
O que deveria ser o carro-chefe da nova China tecnológica corre o risco de se tornar um novo símbolo de excesso de capacidade, endividamento e descoordenação estatal. Como afirma o The Economist:
“O investimento em manufatura, especialmente em empresas de alta tecnologia, tem sido um ponto positivo para a economia chinesa nos últimos anos, que atravessa uma crise imobiliária prolongada. Mas o rápido declínio dos preços e dos lucros industriais levantou dúvidas sobre a sustentabilidade até mesmo desse boom de gastos em capital. Indústrias como carros elétricos, baterias de íons de lítio e painéis solares deveriam ser os novos motores de crescimento que preencheriam o enorme vazio deixado pelo setor imobiliário. Agora, também se tornaram motores da deflação.”
Em conclusão, mais uma vez a burocracia restauracionista de Pequim não consegue estabelecer um novo modelo de crescimento mais equilibrado e sustentável. No momento da crise do gigante imobiliário Evergrande em 2021 — cuja sobreacumulação e excessos produtivos deram origem a uma crise de endividamento — escrevemos:
A burocracia busca a quadratura do círculo: quer evitar as consequências nefastas do sobreendividamento sem provocar uma forte queda no crescimento, por medo das consequências sociais disso. A menos que a China descubra um motor de crescimento econômico totalmente novo que compense o enorme acréscimo de crescimento gerado pela dívida — que agora está sendo direcionada para investimentos não produtivos — essa questão não tem uma solução não traumática.
O “grande salto adiante” do automóvel elétrico foi a aposta de Pequim para resolver esse dilema, mas hoje, mais do que ontem, a burocracia do PCCh continua sem encontrar a chave que lhe permita construir seu império sobre bases sólidas.
A tentativa de Pequim de exportar cada vez mais seu excesso de capacidade não enfrenta apenas a crescente oposição das potências imperialistas já estabelecidas e o aumento do protecionismo da economia mundial — que deu um novo salto com Trump — mas também a própria racionalidade econômica capitalista. Como observa o Financial Times:
Depois de 20 anos de sucesso da China em usar a oferta para gerar crescimento, dizer adeus não é fácil. No mundo fragmentado de hoje, muita gente provavelmente considera que o domínio da cadeia de suprimentos é mais importante do que nunca.
O reequilíbrio da economia chinesa esbarra cada vez mais não apenas nas contrações internas do modelo (baixo consumo das massas, ou, dito de outra forma, uma alta taxa de exploração), mas também nos imperativos geopolíticos de Pequim e na necessidade de garantir recursos naturais, minerais e energéticos para enfrentar as políticas agressivas dos EUA. Talvez, em sua tentativa de avançar e consolidar suas ambições imperialistas, a burocracia acabe descobrindo que sua frente interna é seu calcanhar de Aquiles.
NOTAS
1. Como diz o já citado artigo de Eliot Chen: “Em abril, Zhu Xichan, professor da Universidade Tongji de Xangai, estimou… que, para sobreviver, os fabricantes de automóveis chineses precisam vender pelo menos dois milhões de unidades por ano. Atualmente, apenas cinco participantes do mercado atendem a esse critério: BYD, Geely, SAIC, Changan e Chery. Todos eles são marcas tradicionais, estabelecidas anos — senão décadas — antes do auge dos veículos elétricos na China. Zhu pediu que as novas montadoras chinesas, como NIO, Xpeng e Li Auto, ‘se fundam, se reestruturem e cooperem o quanto antes’. No entanto, é pouco provável que essas novas empresas de veículos elétricos, que têm se promovido fortemente como empresas de software e tecnologia, além de fabricantes de automóveis, estejam dispostas a se unir aos fabricantes tradicionais da China”.
2. Este analista afirma: “Se analisarmos mais profundamente os relatórios financeiros das empresas individualmente, o panorama se torna verdadeiramente distópico. A NIO perde aproximadamente 82.500 yuans (11.500 dólares) por cada veículo vendido. Isso equivale ao salário anual em algumas províncias, que desaparece a cada entrega. E a NIO nem sequer é o pior caso. O verdadeiro espetáculo de horror está no cemitério das antigas empresas unicórnio. Talvez você não se lembre da WM Motor. Mas ela já foi avaliada em centenas de bilhões. Em três anos, de 2019 a 2021, acumulou perdas de 17,4 bilhões de yuans (2,4 bilhões de dólares). Em 2021, seu passivo total chegou a 40,6 bilhões de yuans (5,7 bilhões de dólares). A empresa que um dia esteve lado a lado com NIO e XPeng como um dos ‘quatro dragões’ dos veículos elétricos chineses está agora em processo de falência. A HiPhi Motors sofreu uma implosão ainda mais espetacular. Posicionando-se como a resposta chinesa às ambições de luxo da Tesla, a empresa gastou bilhões para criar veículos com portas tipo asa de gaivota e telas giratórias. Vários fornecedores deixaram de fornecer produtos, e a Bosch se recusou a entregar peças devido a faturas não pagas. A empresa que um dia vendeu carros por mais de 700 mil yuans (98 mil dólares) é agora um fantasma, com suas fábricas em silêncio. O massacre automotivo vai muito além das vítimas que aparecem nas manchetes. Entre 2020 e 2024, as empresas de veículos de nova energia que faliram incluem: WM Motor, HiPhi, Aiways, Skywell, Byton, Youxia, Yudo, Ziyoujia, Leiding, Hanlong, Lifan, Bordrin, Saleen, Qiantu, entre outras. Mesmo os sobreviventes enfrentam ameaças existenciais: as perdas líquidas da NIO no terceiro trimestre chegaram a 5,1 bilhões de yuans (708 milhões de dólares), elevando o total de perdas desde 2018 a mais de 109 bilhões de yuans (15,3 bilhões de dólares)”.
3. É o que afirma Adrian Monck no artigo já citado: “Essa cascata de tensões financeiras está criando uma cadeia de suprimentos zumbificada, com empresas tecnicamente vivas, mas incapazes de investir, inovar ou sequer manter padrões de qualidade. Especialistas do setor relatam que ‘os chips automotivos já deixaram de ter qualidade veicular e passaram a ter qualidade de consumo’, pois as pressões de custo forçam a adotar compromissos perigosos”.