Matías Maiello
Ariane Díaz
Este texto foi originalmente publicado em espanhol na edição de 01/10/2023 do semanário argentino Ideas de Izquierda. Nesta edição especial do Ideas de Izquierda, apresentamos este conjunto de artigos que busca retomar conceitos-chave sobre o que compreendem os marxistas revolucionários quando falam de socialismo ou comunismo; explorar quais desafios se colocam na etapa atual do capitalismo e responder a algumas das críticas falsas – ou diretamente preconceituosas – que os defensores do capitalismo usam para insistir que não há alternativas a este sistema, ou que não valeria a pena lutar por uma sociedade sem exploração e opressão.
Introdução
Após décadas de triunfalismo capitalista, poucos poderiam negar que estamos diante de uma das crises históricas do sistema. Entre seus defensores, alguns tentam responsabilizar os “excessos” neoliberais por essa situação, enquanto outros insistem que o problema foi tentar limitar os mercados – como se não tivessem sido justamente essas receitas que nos trouxeram até aqui. Em ambos os casos, o que não se coloca em questão é que o problema sempre foi o próprio capitalismo.
A verdade é que a causa do aprofundamento das desigualdades sociais, o alicerce de diferentes formas de opressão e o responsável pela caminhada rumo à catástrofe ecológica é um sistema social baseado na exploração do trabalho. A lógica capitalista de organizar toda a sociedade para garantir seus lucros já demonstrou ser profundamente destrutiva: sem resolver, em séculos, nossas necessidades sociais mais básicas, o que certamente aumentou foram as penúrias das trabalhadoras, dos trabalhadores e do povo.
Mergulhado novamente em guerras e crises – econômicas, políticas e sociais – este sistema parece estar, involuntariamente, atualizando dois dos elementos que o revolucionário russo Lênin definiu, há mais de um século, como consequência da época imperialista. Os capitalistas tentaram nos vender a ideia de que essa etapa estava superada e substituída por uma “globalização” que soava menos interessada e mais promissora; no entanto, hoje ela se revira em suas próprias contradições. Mas Lênin vislumbrou, nesse horizonte, algo mais do que novas crises e guerras; enxergou uma perspectiva que acompanhava esses fenômenos por ser a única alternativa real para acabar de vez com eles: a revolução socialista.
Embora os defensores do capitalismo repitam que não há alternativa possível – e estimulem saídas à direita sempre que as correlações de forças permitem –, às vezes parecem perceber esse fantasma nas várias revoltas e levantes que marcaram as primeiras décadas do século XXI, em cada luta e reivindicação com que as massas se negam a continuar sendo bucha de canhão dos interesses capitalistas. Ou em cada questionamento ao que, até então, eram consensos mais ou menos estabelecidos (seja de jovens que percebem a necessidade de criar sindicatos para se defender dos patrões, seja de quem decide se engajar e militar por causas justas). E muitos desses movimentos sociais já reconhecem que suas demandas específicas não têm solução efetiva se não forem atacadas as bases do sistema capitalista. O anticapitalismo, em diferentes variantes e níveis de radicalidade, voltou ao debate político e ideológico.
Alguns guardiões da ordem estabelecida às vezes até exageram: vociferam contra o “perigo do socialismo ou do comunismo” diante de medidas mínimas – como o aumento de um imposto sobre os ricos ou o reconhecimento de um direito básico conquistado com luta. Exageram porque essas demandas ainda não se transformaram em movimentos de massas organizadas contra os capitalistas. Mas talvez não estejam errados em seu instinto de classe: não há um muro separando esses novos fenômenos políticos da consciência de que é necessário acabar com esse sistema pela raiz. Toda a história do capitalismo mostra que essas transformações, impulsionadas pela barbárie capitalista e pelo desenvolvimento da luta de classes, ocorrem de forma mais rápida e vertiginosa do que evolutiva.
Insistem também no desprestígio dessas ideias após a experiência do chamado “socialismo real” no século XX, que surgiu da traição dos objetivos da Revolução Russa e da burocratização da URSS sob o jugo do stalinismo. Voltaremos a esse ponto, mas desde já afirmamos: “conosco, não”. A tradição revolucionária da qual fazemos parte – o trotskismo – foi a que enfrentou esse desvio e denunciou suas consequências – que infelizmente se confirmaram: a restauração do capitalismo nos países equivocadamente chamados de “socialistas”, assim como a perda, por um longo período, da perspectiva da revolução não só como algo necessário, mas também como algo possível.
Hoje, na China capitalista, o partido governante ainda se chama “comunista”, embora dele façam parte os burgueses mais ricos do país, e mantenha um regime autoritário para disciplinar sua enorme classe trabalhadora em benefício das grandes empresas nacionais e estrangeiras. Isso não tem nada a ver com comunismo. Tampouco o chamado “socialismo do século XXI” defendido pelo chavismo na Venezuela. Apesar dos atritos com o imperialismo norte-americano, manteve as relações capitalistas de propriedade e, nos últimos anos, sob Maduro, vem implementando uma política abertamente neoliberal. Na América Latina, a Revolução Cubana de 1959 foi a única que conseguiu expropriar a burguesia e expulsar o imperialismo, adquirindo, nesse sentido, um caráter socialista. No entanto, o regime de partido único, liderado pelo Partido Comunista Cubano, e o desenvolvimento de uma casta burocrática privilegiada impediram o desenvolvimento da revolução socialista em seu sentido pleno. Nas últimas décadas, essa casta dirigente tem aprofundado o caminho rumo à restauração completa do capitalismo, enquanto o imperialismo norte-americano mantém o bloqueio à ilha como uma corda no pescoço do povo cubano.
Precisamos tirar lições das lutas e derrotas frente ao atual cenário de crise capitalista. É do ponto de vista oposto que os revolucionários afirmam que não há futuro para nós, para as novas gerações e nem mesmo para o planeta, se a classe trabalhadora não lutar por um socialismo construído desde baixo, no qual os principais recursos da economia, organizados de forma democrática e planejada, estejam a serviço das necessidades das grandes maiorias, para pôr fim a toda forma de exploração e opressão.
Mas afinal, do que estamos falando quando dizemos socialismo? Inspirando-nos em Engels – amigo e colaborador de Marx nas lutas políticas e teóricas que forjaram o marxismo – e na ideia de desenvolver os princípios pelos quais lutamos por meio de uma série de perguntas e respostas (ainda que inacabadas, foram base de muito do que foi escrito com Marx no Manifesto Comunista), queremos, nestes artigos, abordar os desafios atuais e as definições centrais do que entendemos por socialismo – tão atacado, distorcido e subestimado nas últimas décadas. Porque o debate contra as ideias dominantes, e a apresentação de nossas ideias àqueles que buscam uma alternativa a este sistema, constituem, para os revolucionários, uma das frentes de batalha na organização da força social e política capaz de colocar esses objetivos em prática.
1. Por que lutar hoje pelo socialismo?
Porque o sistema capitalista, regido pela busca incessante por lucros, não apenas deixa de garantir às trabalhadoras, aos trabalhadores e ao povo o acesso às necessidades sociais básicas, como também multiplica as formas de exploração e opressão, arrastando todos nós em suas repetidas crises e guerras, enquanto destrói o planeta. Mas também porque uma sociedade livre da exploração do trabalho assalariado permitirá conquistar tempo livre para desenvolver nossa criatividade, nos dedicar a nossos interesses, nossas capacidades, e poder compartilhá-las com os outros.
Poderíamos escrever capítulos inteiros sobre as consequências que o capitalismo impõe às maiorias populares. Um exemplo claro vimos durante a crise da COVID. A pandemia escancarou as consequências do papel do capitalismo em sua busca insaciável por lucros. Os sintomas emergiram em todo o planeta. Descobriram-se, em países ricos e pobres, sistemas de saúde precarizados. Como um exemplo da barbárie capitalista, voos foram desviados para roubar insumos sanitários de países subordinados às grandes potências. Vacinas foram desenvolvidas, mas patenteadas para que a indústria farmacêutica obtivesse lucros bilionários – as mesmas indústrias que há anos não investem em pesquisa e prevenção de doenças virais porque não são “rentáveis”, e que ainda produzem os químicos usados no “extrativismo agropecuário”. Os poucos casos de reconversão produtiva para atender às necessidades sanitárias vieram de iniciativas dos trabalhadores, não dos empresários, nem dos Estados, que não ousaram interferir na sacrossanta “propriedade privada”. Mas isso não foi tudo que a pandemia revelou: também evidenciou quem são, nesta sociedade, os “essenciais”. Não eram os patrões, os gerentes ou os financistas, mas os trabalhadores da saúde, das mais diversas indústrias e serviços mal remunerados, sem condições de trabalho adequadas, aos quais não foram garantidas nem medidas sanitárias, nem compensações durante a pandemia; ao contrário, foram sobrecarregados primeiro e descartados depois.
O pós-pandemia, segundo a maioria das estatísticas dos organismos que realizam esses levantamentos, mostra um aumento inédito da desigualdade social preexistente. As grandes maiorias populares não “saíram melhores” da pandemia, mas são aquelas que suportaram – e ainda suportam – suas consequências; foram os capitalistas, como classe, que viram seu patrimônio crescer.
Na verdade, mal havia terminado o controle da propagação do vírus, e as manchetes do mundo passaram do alarme pela pandemia para o alarme pela guerra na Ucrânia. De fato, esse conflito bélico tem uma dimensão internacional, não apenas pelos confrontos em solo europeu – muito próximos das capitais de algumas das principais potências imperialistas – ou pelas sanções econômicas impostas à Rússia que afetaram toda a economia mundial, mas porque representam uma mudança nas perspectivas da geopolítica global. Houve guerras nos últimos tempos, sem dúvida – como as do Iraque e do Afeganistão –, mas eram “assimétricas”, com os EUA e diversas potências aliadas contra o inimigo da vez, sem oposição de outras potências. Na Ucrânia, por outro lado, confrontam-se diferentes potências imperialistas tradicionais (Estados Unidos e seus aliados da OTAN) e potências talvez ainda regionais, mas fortemente armadas, com grande peso no “concerto das nações”. Algumas delas, como a China, com aspirações de se tornar a potência emergente. É isso que faz com que a guerra da Ucrânia não afete apenas as populações diretamente envolvidas, mas se transforme em um conflito prenunciador de disputas futuras pela hegemonia mundial. Esteja ou não no horizonte imediato como uma possibilidade concreta, o fato de que os perigos de um possível confronto nuclear – algo que não se ouvia há mais de 50 anos – tenham voltado ao debate público mostra que o capitalismo, quando não consegue ajustar as forças produtivas da sociedade à sua lógica, busca garantir seus lucros apelando às forças destrutivas que forem necessárias. E não apenas não resolve, como agrava, os conflitos que o imperialismo gera e arrasta há décadas, como a ocupação colonial da Palestina pelo Estado de Israel. Se a política das grandes potências gerou, durante mais de 70 anos, morte, deslocamento e empobrecimento da população palestina em um regime que se configura como apartheid, hoje avança em um verdadeiro genocídio transmitido em tempo real por meios de comunicação e redes sociais, cujas dimensões ainda não encontraram limites.
Quando os socialistas dizem que o capitalismo é um sistema irracional, muitos respondem que, embora seja verdade que algumas coisas precisem ser corrigidas, ainda assim é o sistema que nos trouxe “progresso”: produziu mais alimentos, curou doenças, desenvolveu ciência e tecnologia; que, em resumo, vivemos melhor do que na Idade Média graças a ele. Voltaremos a esses pontos, mas digamos algo aqui: essa comparação é válida? Longe disso, parece extremamente conveniente para os capitalistas: todos esses avanços são fruto do trabalho, da invenção, da criatividade de gerações sucessivas, ainda que sejam atribuídos ao capitalismo, que é quem os apropria; todos os seus males seriam, em contrapartida, frutos de uma suposta “natureza humana”.
Mas, de toda forma, mais do que comparar com a Idade Média, justamente porque houve avanços nas forças produtivas, não deveríamos comparar com aquilo que está ao nosso alcance evitar há muito tempo e ainda assim não é evitado? Depois de séculos expandindo seu domínio pelo mundo, é o capitalismo, comparado a si mesmo, que mostra sua irracionalidade quando doenças erradicadas há muito tempo voltam, quando as condições de trabalho em alguns setores pouco diferem das do século XIX, e quando a desigualdade social não apenas não diminui, como aumenta, com guerras contínuas, além de uma crise ecológica que agora ameaça o planeta inteiro. A irracionalidade capitalista se expressa tanto no retrocesso de conquistas coletivas, quanto no bloqueio ao desenvolvimento de tudo o que poderia ser avançado, mas que o capitalismo impede porque “não dá lucro”. A suposta “eficiência” do livre mercado capitalista é apenas a eficácia com que uma minoria se apropria do trabalho dos outros.
Margaret Thatcher, importante ideóloga do neoliberalismo, disse certa vez que “não há alternativa” a este sistema, e essa bandeira parece ter sido adotada por todas as alas defensoras do capitalismo. Mas havia e há outras possibilidades: uma sociedade onde os principais recursos da economia, planejados de forma democrática e racional, estejam a serviço das maiorias populares, seja para combater uma pandemia, alimentar-se, ter moradia ou se vestir (necessidades que o capitalismo não garantiu, apesar dos avanços científicos e tecnológicos), e que contribua para estabelecer uma relação equilibrada e preservadora com a natureza.
Mas, para os socialistas, não se trata apenas de reestruturar radicalmente esta sociedade para satisfazer nossas necessidades básicas, e sim de liberar tempo para não viver apenas trabalhando. Queremos tempo para participar democraticamente do autogoverno político e econômico coletivo, em uma sociedade onde o poder esteja nas mãos dos verdadeiros produtores da riqueza social, mas, acima de tudo, queremos tempo para desenvolver nossa criatividade, nos dedicar ao que nos apaixona e compartilhar isso uns com os outros. Para construir uma sociedade onde ninguém explore ou oprima o outro em busca de lucro, mas onde os seres humanos cooperem para que todos possam desfrutar plenamente. A uma sociedade assim, gerações de revolucionários que nos precederam chamaram de socialista. E ela continua sendo hoje um objetivo necessário – e urgente – a ser conquistado.
2. Quem produz a riqueza social?
A riqueza é produzida socialmente, com o esforço e a colaboração de uma maioria de produtores que, no entanto, não desfruta dos frutos desse empenho coletivo, apropriado por uma minoria por meio de um “roubo legalizado” de tempo, talentos e capacidades – este que, na sociedade capitalista, recebe o nome de “trabalho assalariado”.
Os propagandistas do capitalismo gostam de falar em meritocracia, esforço pessoal e que, se os seres humanos são um pouco competitivos e egoístas, isso não é tão ruim, pois é o que nos impulsiona a inovar. Isso seria, além disso, algo “democrático”: você também pode fazer parte do clube dos vencedores, se tiver talento e se esforçar. Dessa ideia, deriva-se uma desigualdade “legítima”, já que, se talento e esforço variam entre as pessoas, seria justo distribuir a cada um conforme seus méritos. Na sociedade capitalista, portanto, a riqueza viria do talento de certos indivíduos para “reconhecer” o valor de algo, para inventar novos produtos que prestem um “serviço” à sociedade, e seus lucros seriam uma “recompensa” por essa contribuição. Os empresários seriam, então, aqueles que “dão emprego”, pagando ao trabalhador um salário como retribuição, e exploradores seriam apenas os que não pagam um salário digno, ficando com lucros além do que “lhes corresponde”.
Mas, se é verdade que os patrões tentam reduzir ao máximo os salários — e vemos diariamente remunerações que não cobrem nem a cesta básica —, também é verdade que a fortuna de nenhum empresário se deve ao seu talento ou “faro” para os negócios. Sua origem real está na capacidade que têm de se apropriar de parte do trabalho gerado por aqueles que atuam sob seu controle: milhões de pessoas obrigadas a trabalhar para sobreviver. Na realidade, é o nosso esforço que cria a riqueza — seja trabalhando em uma linha de produção, colhendo safras, dirigindo um caminhão, trem ou ônibus, construindo edifícios ou realizando qualquer uma das inúmeras atividades necessárias para satisfazer as necessidades sociais; o valor faturado pelos “donos” provém do nosso trabalho. O lucro surge do roubo legalizado que caracteriza esta sociedade e que permite que nos paguem por nossa força de trabalho apenas uma parte do valor que geramos em nossa jornada laboral. Porque, no salário, os donos dos meios de produção pagam apenas o equivalente ao que precisamos gastar para estar em condições de voltar ao trabalho no dia seguinte. O segredo mais bem guardado da produção capitalista é que, em cada jornada de trabalho, os trabalhadores e as trabalhadoras geram muito mais valor do que recebem como salário. Produzimos bens, serviços e toda a riqueza, e ficamos apenas com o necessário para seguir alimentando a engrenagem da exploração. Por isso dizemos que os capitalistas não “dão” emprego, e sim o “tomam” para si, e que esta sociedade se baseia na exploração do trabalho alheio — tanto quando os salários são miseráveis, quanto quando são mais “dignos”.
Os capitalistas não se apropriam apenas do esforço de seus trabalhadores, mas também das inovações e méritos do trabalho social e coletivo, além daquilo que provém do investimento público. A produção das vacinas contra o coronavírus escancarou isso: o esforço de pesquisadores, cientistas e trabalhadores do mundo todo, muitos deles atuando em instituições públicas ou formados por elas, com amplas estruturas e recursos fornecidos pelos Estados — sustentados pelo trabalho e pelos impostos pagos por todos os trabalhadores —, terminou resultando em vacinas patenteadas por laboratórios cujos acionistas viram seus lucros crescerem mais rápido do que a propagação de novas cepas. Isso também desmente os mitos capitalistas sobre as virtudes do “empreendedorismo” individual: a competição no mercado e a tendência do capitalismo à concentração em nível mundial — base do que Lênin caracterizou como a fase imperialista do sistema — fazem com que os “peixes grandes”, com todo o aparato de poder em suas mãos, acabem mais cedo ou mais tarde engolindo os “peixes pequenos”, por mais que estes tenham contribuído com ideias, produtos ou serviços inovadores e com muito esforço pessoal.
A exploração do trabalho assalariado só é possível porque a grande maioria da sociedade tem apenas uma mercadoria para vender em troca do dinheiro necessário à sobrevivência: sua capacidade de trabalhar — aquilo que Marx chamava de força de trabalho (pois as capacidades físicas e mentais que podem ser utilizadas para produzir bens ou serviços são vendidas como mais uma mercadoria). Esta é sua única propriedade em uma sociedade em que os meios de produção — com os quais se produzem alimentos, roupas e todos os bens — estão nas mãos privadas. Essa separação entre quem produz e os meios de produção é uma novidade trazida pelo capitalismo, imposta por meio da expropriação violenta das classes populares de todo meio de subsistência autônoma. Sem ela, não haveria trabalho assalariado e, portanto, tampouco lucro para os capitalistas.
É por isso que os defensores do capitalismo estão sempre em alerta contra qualquer “ameaça” à propriedade privada. Querem nos amarrar à defesa desse direito. Mas o fato é que, como Marx demonstrou — e isso continua evidente até hoje —, a propriedade privada que caracteriza esta sociedade significa que 90% da população está privada de toda propriedade. Por isso, os socialistas defendem a abolição da propriedade privada dos meios de produção: não se trata de tirar as posses pessoais de cada um, como nossos detratores gostam de fazer crer, e sim de acabar com a base de uma forma de organização social baseada na apropriação privada do que é fruto do trabalho coletivo.
Os capitalistas não podem produzir sem os trabalhadores, mas os trabalhadores, por sua vez, podem perfeitamente produzir sem os patrões — como demonstraram diferentes experiências históricas de formas de associação e cooperativismo, mesmo com as limitações impostas a essas formas em meio ao mar da concorrência capitalista. Em escala mais ampla, a Revolução Russa mostrou que expropriar a burguesia não apenas não impediu o desenvolvimento de um país até então atrasado, mas foi a única forma de garanti-lo — mesmo que, como veremos mais adiante, seus objetivos iniciais e as novas formas democráticas de organização tenham sido traídos.
O que aconteceria se, em vez de experiências isoladas, organizássemos democraticamente toda a produção social, atendendo às necessidades e prioridades do conjunto da sociedade? Isso não permitiria acabar com a irracionalidade da produção capitalista, que joga fora alimentos, remédios, roupas e outros produtos que não conseguiu vender, enquanto milhões de pessoas passam fome, enfrentam doenças e sentem frio? Mas podemos aspirar a muito mais. Reorganizar essa sociedade sobre novas bases nos permitiria planejar essa produção e colocar todos os recursos tecnológicos e científicos à disposição para reduzir a quantidade de horas de trabalho necessárias e distribuí-las entre todas as mãos disponíveis, para que todos trabalhem menos, e não cada vez mais — conquistando mais tempo livre para desenvolver nossa criatividade e nossos talentos. E isso seria também uma oportunidade de reparar os danos já causados ao planeta e satisfazer nossas necessidades em harmonia com a natureza, e não destruindo-a.
É o capitalismo que reduz a riqueza social e as capacidades humanas de inovação e criatividade à medida mesquinha dos “lucros” de uns poucos. É verdade que, em uma sociedade capitalista, existem competição e egoísmo — que não são traços “naturais” da humanidade, mas produtos dessa forma de organização social. Mas também é verdade que, apesar das tentativas de impor a lógica capitalista a todos os âmbitos — à produção, ao lazer, às relações sociais e pessoais, etc —, também existem, nesta sociedade, a solidariedade, a busca pelo bem comum, a cooperação: a grande maioria das pessoas vive de seu trabalho sem explorar ninguém e, na medida em que a produção tem caráter social, trabalha em colaboração com outras. Preocupa-se e cuida de seus entes queridos, e muitas vezes é solidária até com quem nem conhece. E também existem, sob o capitalismo, a luta contra as injustiças e a capacidade de se rebelar — essas últimas constituem um ponto de apoio para aspirar a uma transformação radical da sociedade, e a solidariedade e a cooperação são um alicerce para a construção de uma sociedade mais igualitária.
3. Por que o capitalismo aumenta a desigualdade social e gera crises recorrentes?
Porque, nesse sistema, para que poucos acumulem riquezas, é necessário que os trabalhadores e as trabalhadoras não tenham seus próprios meios de subsistência e, assim, sejam obrigados a trabalhar para os capitalistas. Mas a própria lógica de funcionamento do sistema leva a crises recorrentes — elas fazem parte do seu DNA.
Diante das desigualdades cada vez mais obscenas entre uma minoria cada vez mais rica e uma maioria cada vez mais empobrecida, não faltam vozes tentando nos convencer de que o capitalismo não é, em si, sinônimo de desigualdade, mas que o problema estaria em sua versão neoliberal. Seria, então, uma questão de “redistribuir” melhor a riqueza, “regulando” melhor o mercado e limitando suas manobras mais selvagens, como as desregulamentações e reformas impostas pelo neoliberalismo.
Mas já há mais de uma década economistas críticos — nem sempre marxistas, mas apenas honestos com os dados — vêm apresentando conclusões escandalosas: a desigualdade nas sociedades capitalistas do século XXI atingiu níveis tão altos quanto os de mais de um século atrás. E isso ocorre tanto nos países imperialistas mais ricos quanto nos países semicoloniais e dependentes, onde o atraso econômico é agravado pelo próprio saque imperialista. Isso desmonta a ideia de que, ao longo da história do capitalismo, o aumento da produtividade e da riqueza gerada acabaria se traduzindo numa melhora mais ou menos equitativa do bem-estar. Pelo contrário: um punhado de bilionários fica com uma parte cada vez maior da “fatia” da produção social.
Na verdade, ao longo da história do capitalismo, só houve uma modesta redução da desigualdade em alguns períodos excepcionais. No início do século XX, com a ameaça de revoluções em várias partes do mundo, em países da Europa onde a classe trabalhadora havia organizado partidos e sindicatos de massa, foi possível arrancar algumas concessões dos capitalistas e de seus Estados — que também contavam com o benefício da exploração do mundo colonial e semicolonial. A outra ocasião foi após a Grande Depressão de 1929 e o fim da Segunda Guerra Mundial, em plena Guerra Fria. A simples existência de uma alternativa como a URSS — mesmo já burocratizada sob o stalinismo, o que depois levaria à sua derrota, mas que naquele momento saía fortalecida da guerra — era vista como uma ameaça ao capitalismo mundial, obrigando a nova potência hegemônica, os Estados Unidos, a competir. Para apaziguar as classes subalternas e afastar o fantasma da revolução, promoveu políticas dentro de seu território e nas regiões sob sua influência — aproveitando-se da reconstrução do pós-guerra — que resultaram em algumas melhorias nas condições de vida. Foi o que se chamou de Estado de Bem-Estar. Ou seja, o capitalismo só é forçado a conceder algo quando está ameaçado de perder tudo na luta de classes.
A questão não é apenas que alguns têm demais e outros, de menos. O capitalismo é um sistema que necessita da divisão em classes: a riqueza que a burguesia acumula depende de manter os trabalhadores e trabalhadoras despossuídos, pois, se esses tivessem seus próprios meios de subsistência, não venderiam suas vidas em troca de um salário.
Com a queda do Muro de Berlim, quando nenhuma alternativa sistêmica parecia mais competir com ele, a ideia de um capitalismo com rosto “mais humano” foi abandonada. A percepção de que seu domínio não estava mais ameaçado encorajou empresários, banqueiros e especuladores a avançarem descaradamente sobre parcelas cada vez maiores da riqueza social. O chamado neoliberalismo foi um verdadeiro festival de ataques contra os salários e as condições de vida. O direito à moradia, à saúde, à educação e ao tempo livre foi erodido para as grandes maiorias. Ficou evidente que o que os marxistas diziam continuava verdadeiro: esse sistema não consegue se sustentar sem transformar em fonte de lucro todas as dimensões da vida, convertendo qualquer serviço público fundamental em negócio privado — algo viabilizado pelas desregulamentações estatais pró-empresariais que marcaram essas décadas, além das burocracias das organizações de trabalhadores, como os sindicatos — agora muitas vezes estatizados — que, ao invés de resistirem aos ataques patronais, preferiram se alinhar aos seus interesses e conter as tentativas de enfrentá-los. Não é de se surpreender que o resultado tenha sido um aumento sem precedentes da desigualdade.
Claro, essa tendência não é linear: ela depende da correlação de forças entre as classes em cada país ou região. Mas essa disputa entre capital e trabalho por uma maior fatia da “torta” é, como dizia Marx, uma “guerra de guerrilhas” dentro do próprio capitalismo, em que a classe trabalhadora é o lado mais fraco, sempre tentando recuperar parte do que perdeu.
Mas será que o capitalismo não teria uma forma de resolver seus problemas sociais sem gerar novas crises, se lhe déssemos tempo e liberdade para operar? É o que ouvimos sempre que uma nova crise irrompe: que a luta de classes seria o problema, um obstáculo, e que, sem ela, o capitalismo poderia se desenvolver de forma mais equilibrada e pacífica.
Os marxistas, no entanto, sabem que é a própria lógica capitalista, com suas contradições internas, que leva a crises recorrentes. Elas não são acidentes isolados, nem resultado da ganância excessiva de um ou outro setor dominante. Estão inscritas no DNA do sistema.
Já dissemos: a única fonte real de criação de novos valores — novos produtos ou serviços que, vendidos no mercado, gerem lucros — é a exploração do trabalho assalariado. Mas quando cada capitalista lança suas mercadorias no mercado, encontra a concorrência de outros capitalistas. E nessa disputa, pode tanto aumentar seus lucros como ser engolido por outros capitais. Todos competem para ver quem fica com a maior fatia da mais-valia.
Uma forma de extrair mais mais-valia é estendendo a jornada de trabalho, mas isso tem limites físicos e biológicos: ninguém pode trabalhar o dia inteiro. Outra forma é investir em maquinário, tecnologias e formas de organização do trabalho que aumentem a produtividade ou reduzam custos — extraindo mais da força de trabalho que controla. Mas, como o lucro vem do novo trabalho humano incorporado no processo produtivo (e não das máquinas ou da organização), quanto menos trabalho humano incorporado em relação ao capital total investido, menor a taxa de lucro. Pode-se tentar compensar isso com maior volume de produção, mas nem sempre é possível vender tudo no mercado, e parte da produção acaba descartada. Essa lei não é linear — Marx descreve várias tendências contrárias —, mas, cedo ou tarde, ela se manifesta, atuando como um freio à expansão dos lucros e da produção capitalista.
Aqui está a contradição central do capitalismo: ele precisa empregar cada vez mais trabalhadores — fortalecendo, como disse Marx, a classe que pode ser sua própria coveira —, mas também precisa extrair mais produtividade do trabalho, o que reduz globalmente a quantidade de trabalho humano contida em cada mercadoria.
Em uma sociedade que não fosse regida pela lógica do lucro obtido com a exploração do trabalho alheio, a inovação tecnológica que reduzisse o tempo necessário para produzir bens seria uma boa notícia: significaria menos tempo de trabalho e mais tempo livre. Mas no capitalismo, o que poderia ser um benefício para todos se torna um problema para cada capitalista individual, e isso se manifesta nas crises. Por isso, o capitalismo é, até agora, o único sistema que transforma abundância em desgraça: nele, as pessoas morrem de fome não pela falta de alimentos, mas pela sua abundância.
O capitalismo já tentou vários mecanismos para contornar essa contradição estrutural. Mas como nenhum deles resolve a raiz do problema — a própria forma de explorar o trabalho alheio —, o que se viu foi a ampliação das crises em todos os sentidos: em escala, em intensidade e em alcance geográfico. Isso caracteriza o imperialismo, definido por Lênin como a fase superior do capitalismo: uma época de crises, guerras e, por suas consequências sociais, também de revoluções. O século XX está cheio de exemplos disso, com grandes maiorias sendo empurradas à miséria em intervalos quase regulares.
A crise de 1929 foi uma das maiores da história. Levou a falências em massa de bancos e empresas, jogando milhões na miséria — só nos EUA, o desemprego chegou a 25% — e o comércio internacional entrou em colapso. Muitos processos revolucionários surgiram nesse contexto. No fim, a “solução” capitalista foi levar o mundo à maior carnificina da história: a Segunda Guerra Mundial.
Outro exemplo: a crise da década de 1970, marcada pela “crise do petróleo” de 1973 (embora o processo tenha sido mais amplo). Apesar de enfrentar reestruturações produtivas e derrotas militares (como no Vietnã), o imperialismo dos EUA foi forte o suficiente para transferir parte da crise ao resto do mundo. Pouco antes, decretou o fim da conversibilidade do dólar em ouro — ou seja, passou a controlar a impressão da “moeda mundial” sem limites, baseado em seu poder econômico e militar. Esse é o ponto de partida da chamada “financeirização da economia”, um salto na criação de capital fictício sem lastro na produção. A década de 1980 viria com o neoliberalismo destruindo direitos dos trabalhadores e apertando as correntes dos países oprimidos.
Durante o ciclo neoliberal, o capitalismo conseguiu compensar aquela queda nas taxas de lucro em relação ao total investido em capital, graças à restauração do capitalismo em países onde, anteriormente, revoluções haviam expropriado a burguesia — sobretudo na China. Encontrou uma nova “selva virgem”, ou seja, um lugar onde, com menor investimento de capital, podia obter lucros maiores, graças aos baixos salários e ao atraso econômico. Ao mesmo tempo que, ao incorporar massivamente nova força de trabalho, pôde expandir as condições de exploração dos trabalhadores em todo o mundo.
Isso, no entanto, não impediu uma série de crises que, embora não tenham chegado a desestruturar o mercado mundial, tiveram consequências internacionais (a crise asiática, a mexicana de 1994, o calote russo em 1998, a queda das empresas “ponto.com” entre 1998 e 2001). E assim chegamos à crise global de 2008, que estourou quando ficou evidente que uma série de instrumentos financeiros nada mais eram do que capital fictício, sem valor real — revelando os limites da “financeirização da economia” como forma de fazer o capitalismo funcionar. Para piorar, alguns anos depois, a China — que fora a grande “selva virgem” do capitalismo mundial — passou a ser o oposto: uma concorrente ofensiva na disputa pelos mercados internacionais. Hoje, as centenas de milhões de trabalhadores que, em dado momento, foram incorporados ao mercado mundial para reduzir salários já não impedem a escassez de investimentos lucrativos. Tudo isso prepara o terreno para novas crises. O capitalismo não pode viver sem elas.
Por tudo isso, a única maneira de enfrentar essas crises periódicas, assim como a incerteza e a precariedade que são constitutivas das condições da classe trabalhadora, não é dar tempo, deixar acontecer ou, na melhor das hipóteses, regular melhor os “instintos selvagens” do capitalismo — algo que a história já mostrou ser impossível —, mas sim pôr fim ao trabalho assalariado e ao próprio sistema capitalista.
4. As mudanças ocorridas no capitalismo não acabaram com a força social e política da classe trabalhadora?
Apesar dos mitos da “globalização”, o capitalismo continua se alimentando da exploração do trabalho. Mesmo carregando o peso de toneladas de propaganda capitalista sobre o fim da classe trabalhadora, e das consequências das políticas neoliberais que aprofundaram suas divisões e enfraqueceram sua organização independente, hoje esta classe ensaia novas formas de resistência. Sem minimizar a complexidade e a magnitude dos obstáculos que terá de enfrentar, não há um muro intransponível entre o reconhecimento de seu potencial para parar a máquina capitalista e a luta decidida por fundar as bases de uma nova sociedade.
Um dos chavões mais repetidos do neoliberalismo é o de que a classe trabalhadora, como a conhecíamos, já não existe. Que a globalização tornou disfuncionais suas organizações sociais, sindicais e políticas nacionais. Que, no fim das contas, todos somos consumidores que, cedo ou tarde, poderão desfrutar da sociedade de consumo conforme a riqueza “pingar” de cima para baixo. Alguns “críticos” autoproclamados chegaram até a dizer que a classe trabalhadora se “aburguesou”, porque, à medida que grandes setores da população caíam no desemprego ou na precarização, ter um salário e estar registrado seria um privilégio.
Embora numericamente a classe trabalhadora tenha crescido nas últimas décadas a níveis nunca antes vistos na história — contrariando os que previram sua extinção como força social —, é verdade que sua configuração, organização e disposição para enfrentar o capitalismo sofreram mudanças desde a última onda revolucionária mais ou menos generalizada no mundo, nos anos 1970. Não porque enfim estivesse realizando os sonhos do consumismo, mas justamente porque, apesar da resistência, sofreu os efeitos da derrota que abriu espaço para o triunfalismo neoliberal: foi dividida como nunca antes entre empregados e desempregados; entre precarizados, falsos autônomos, terceirizados e assalariados formais com salários que estão abaixo ou mal superam a linha da pobreza; entre nativos e imigrantes. Foi “deslocalizada” para aproveitar condições de trabalho e salários mais desfavoráveis em outras regiões, o que, por sua vez, impôs piores condições onde ainda se mantinham algumas conquistas históricas. Na maioria dos casos, isso aconteceu com o aval ou a participação ativa das burocracias sindicais, que negociaram com os governos da vez reformas trabalhistas, previdenciárias etc, que desprotegeram cada vez mais a classe trabalhadora. O neoliberalismo não trouxe novas formas de capitalismo que permitissem obter lucros sem explorar o trabalho, mas sim uma política voltada a dividir e retirar conquistas dessa classe social que ousou desafiá-lo. Colocar os pobres para disputar com outros pobres foi condição indispensável para impor seus planos e abocanhar uma fatia maior da produção social.
Esses planos buscaram se legitimar socialmente com ideias velhas apresentadas como novas. Como a exaltação neoliberal do individualismo, segundo a qual cada um é responsável sozinho por seu sucesso — e culpado por seu fracasso. Nos grandes meios de comunicação, na cultura de massa e no debate público, espalharam-se versões de autoajuda, políticos transformados em “celebridades” e o consumismo vendido como promessa de felicidade “para todos”.
Contudo, há mais de uma década o neoliberalismo vem mostrando sinais de esgotamento, e alguns de seus supostos “triunfos” revelaram suas limitações: a “crise das hipotecas” de 2007-2008 demonstrou que a tão celebrada financeirização da economia precisa se confrontar com a realidade da produção; os deslocamentos e “cadeias de valor” espalhadas pelo mundo mostraram novos pontos fracos do sistema como um todo. Essas limitações resultaram em novos conflitos numa “aldeia global” onde os vizinhos já não parecem tão amigáveis — e também em novos processos de resistência e mobilização dos setores populares, que passaram a questionar, de baixo para cima, uma ordem social que por décadas parecia inabalável.
Como herança da ideologia neoliberal e de seu esforço para apagar a classe trabalhadora enquanto sujeito político — ou até social —, em muitos desses processos ela aparece com suas organizações enfraquecidas, às vezes apenas como “cidadãos isolados” ou, no máximo, como um movimento social com reivindicações sindicais legítimas, mas sem a capacidade de se organizar para desafiar e abalar o sistema — ou seja, sem consciência de classe. E é verdade que, após os golpes desferidos pela burguesia e pela cumplicidade de suas lideranças vendidas, a reorganização dessa força política pode, por vezes, parecer um recomeço do zero ou um processo político longo, que coloca mudanças mais radicais num horizonte distante. Os de sempre, os resignados, veem apenas esforços inúteis, explosões esporádicas, experiências locais isoladas ou meras provas de que “a correlação de forças não permite” — mesmo quando jovens chilenos questionam os pilares do modelo neoliberal na América Latina; quando trabalhadores da Amazon ou de redes de fast food nos EUA voltam a criar sindicatos democráticos; quando praças são tomadas e governos são derrubados durante os levantes da Primavera Árabe em 2011; nas mobilizações e greves em massa na França contra a reforma da previdência em 2023, que expressaram a insatisfação com a inflação, a precarização e um regime autoritário vendido como modelo de república; nas recorrentes greves multitudinárias da gigantesca classe trabalhadora chinesa; ou nos milhares de movimentos que denunciam o capitalismo como a causa do desastre ecológico.
Mas os marxistas sempre insistiram, ao longo da história das lutas do movimento operário, que não existe um muro separando a “espontaneidade” da consciência política — e que essas mudanças na forma de pensar e de se organizar não ocorrem por simples evolução. Ao enfrentar os próprios desafios colocados pelo sistema — como crises e guerras —, por meio de formas de resistência que surgem de maneiras novas e também retomam sua longa tradição de combate ao capital, com os novos organismos que constrói, os “sensos comuns” impostos pela derrota podem rapidamente se transformar em consciência sobre a necessidade e a possibilidade de acabar com este sistema. Depois de décadas de neoliberalismo e toneladas de propaganda capitalista, isso ainda pode parecer difuso para as novas gerações, que não viram a classe trabalhadora atuando com toda sua força na linha de frente. Mas toda a história mostra que, quando entra em movimento com seu potencial social, a classe trabalhadora não só é capaz de parar a engrenagem capitalista, como também de lançar as bases de uma nova sociedade.
5. Os socialistas só se interessam por libertar a classe trabalhadora? E as outras formas de opressão que existem?
Sabemos — e sentimos cotidianamente — que este sistema não é apenas explorador, mas também sustenta e multiplica múltiplas formas de desigualdade (de gênero, de raça, de nacionalidade, entre outras) para continuar se reproduzindo. Por isso, acreditamos que a luta contra a exploração não pode estar separada da luta atual contra todas as formas de opressão; e, ao mesmo tempo, que a única forma de evitar retrocessos nos direitos conquistados e de erradicar definitivamente as diversas formas de submissão promovidas por este sistema é acabar com o capitalismo e, sobre novas bases sociais, construir uma sociedade verdadeiramente igualitária.
Uma acusação comum é a de que os socialistas, ao enfatizarem a necessidade de acabar com a exploração da classe trabalhadora, deixam “para depois” — para quando o socialismo já tiver sido realizado — as lutas contra as diversas formas de opressão sustentadas por este sistema: de gênero ou orientação sexual, de raça ou de nacionalidade. Em versões mais brandas, diz-se que o marxismo seria bom para abordar os problemas da desigualdade econômica, mas não para compreender outras formas de opressão que não afetam apenas a classe trabalhadora.
É preciso dizer, antes de tudo, que qualquer olhar sobre a história das lutas contra essas formas de opressão encontra, entre seus primeiros defensores, os socialistas. Estes sempre afirmaram, por exemplo, que “nenhum povo pode se libertar se aceita a opressão de outro”, ou que “o nível de liberdade alcançado por uma sociedade pode ser medido pela liberdade das mulheres dentro dela”, como disseram respectivamente Lênin e Trotsky ao tratarem da opressão nacional e de gênero.
Também foram os marxistas que buscaram aprofundar a crítica a esses fenômenos: por que essas formas de opressão se mantêm em um sistema que afirma ter revolucionado todas as formas sociais tradicionais?
Tomemos o caso da opressão das mulheres, que na última década voltou ao centro dos debates impulsionada por uma enorme onda feminista internacional — a chamada “maré verde” — que esteve na vanguarda da denúncia da violência contra mulheres e oprimidos, conquistando novos direitos em países como a Argentina e demonstrando que é possível vencer lutando nas ruas. Por que o capitalismo, mesmo após toda a sua existência, não conseguiu acabar com o patriarcado, que é historicamente anterior a ele? Seriam resquícios do passado que o sistema irá eliminar com sua própria lógica? Ou, afinal, não daria no mesmo explorar a todos igualmente? Sim, o capitalismo precisa explorar a todos, mas não vê problema algum em se beneficiar dos preconceitos patriarcais, se puder moldá-los a seu favor: manter as mulheres como cidadãs de segunda classe.
O que o capitalismo não quer eliminar — ou, mais precisamente, não quer pagar — é o trabalho reprodutivo, que, nesta sociedade, é majoritariamente realizado pelas mulheres. São essas tarefas que o sistema precisa que “alguém” cumpra para que trabalhadores e trabalhadoras estejam alimentados, vestidos, cuidados, mesmo quando doentes… e prontos para trabalhar. Um trabalho indispensável para toda a produção, mas que, confinado ao espaço doméstico e privado, é invisibilizado e desvalorizado. É com base nessas condições materiais que se reforça, com velhos preconceitos, a imagem da mulher de que o capitalismo necessita: servil, submissa, dependente — e que sustenta uma cultura machista que impõe às mulheres múltiplas formas de desigualdade, discriminação e violência em todas as esferas da vida. Os debates dentro dos feminismos são, evidentemente, múltiplos, como são também as estratégias em qualquer movimento de massas; mas não por acaso muitas feministas discutem, se baseiam ou adotam o marxismo como perspectiva.
Reflexões críticas como essa, sobre as diferentes formas de opressão, sempre fizeram parte dos esforços teóricos e políticos do marxismo, porque este nunca acreditou que se tratava apenas de libertar a classe trabalhadora. É por isso que hoje, quando diferentes movimentos sociais e políticos vão às ruas para enfrentar o racismo — como a população negra nos Estados Unidos, os povos originários na América Latina ou os imigrantes na Europa — ou o patriarcado, os socialistas estão na linha de frente dessas lutas, da organização e dos debates que as atravessam.
O que dizemos é que, em nossa perspectiva, na medida em que o capitalismo sustenta e se aproveita dessas diferentes formas de opressão — muitas das quais o precedem —, não será possível acabar com elas se não acabarmos com o sistema em que estão enraizadas. Porque o nó que o capitalismo criou, por exemplo, entre as mulheres e o trabalho gratuito de reprodução, ou entre a nacionalidade ou cor da pele e os salários mais baixos, não se desfaz por completo mesmo que algumas conquistas sejam alcançadas com a luta. E para acabar de vez com essas formas de opressão, precisamos organizar a força dos trabalhadores e trabalhadoras: não porque suas demandas sejam mais importantes — como se fosse possível fazer um ranking entre opressões piores ou melhores —, mas porque é a classe trabalhadora que está estrategicamente localizada — justamente por causa do próprio sistema — para explodir seus mecanismos e reorganizar a sociedade sobre novas bases.
Pelo mesmo motivo, os socialistas também combatem qualquer forma de “obreirismo” ou “corporativismo” dentro do próprio movimento operário que despreze as lutas contra outras formas de opressão: não só porque o capitalismo as usa para nos dividir e enfraquecer, mas porque, se a classe trabalhadora quer ser hegemônica e reunir forças em seu avanço contra o capital, ela precisa assumir essas lutas como parte de uma perspectiva anticapitalista. Não fazê-lo é dar ao inimigo a chance de continuar nos dividindo ou nos iludir com mudanças cosméticas — ou restritas a poucos — em detrimento do conjunto dos explorados e oprimidos.
Por fim, se os socialistas afirmam que só acabando com o capitalismo poderemos acabar com todas as formas de opressão, não acreditamos que a revolução socialista, de forma imediata, vá eliminar de um dia para o outro o machismo, o racismo ou as diferentes formas de discriminação que foram inculcadas durante séculos em nossas sociedades. O que acreditamos, sim, é que ela é a única chance real que temos de remover, de uma vez por todas, a base onde essas opressões estão fincadas: a divisão em classes — e assim construir novas formas de nos relacionarmos, pessoal e socialmente.
6. O Estado pode controlar o capitalismo?
Não, porque o Estado não é neutro, é quem garante os negócios dos capitalistas. Por isso os ajustes e cortes de direitos sempre recaem sobre o povo trabalhador. Só quando a burguesia viu sua dominação ameaçada é que fez concessões — mas apenas para retomá-las depois que o perigo passasse. Por isso, nós, socialistas, lutamos por uma revolução que coloque de pé um Estado dos trabalhadores, que seja capaz de se extinguir à medida que avançamos no caminho rumo a uma sociedade sem classes.
Para alguns críticos da situação atual, mas defensores do capitalismo como algo “aperfeiçoável”, os excessos capitalistas deveriam ser regulados por um Estado que implemente impostos redistributivos, que tome medidas legais contra as manobras dos poderosos e que proteja os mais frágeis — um Estado considerado uma espécie de árbitro neutro que assegure o “jogo limpo”. Para outros, trata-se de reduzir o Estado à sua mínima expressão, para deixar o jogo livre às impessoais “leis do mercado” (salvo, é claro, quando se trata das forças de segurança que defendem a propriedade privada ou do aparato administrativo que garante seus negócios quando é necessário salvar bancos e corporações em crise).
Para os socialistas, ao contrário, o Estado não é um jogador neutro que possa conciliar, com maior ou menor energia, os interesses de classes em conflito. O Estado burguês é o garantidor de um campo de jogo inclinado ou, como disseram Marx e Engels, “o comitê executivo que administra os negócios da classe dominante”. Por isso, a identificação entre socialismo e estatismo é interessada: ou se usa para justificar a defesa de um “Estado forte”, ou para deturpá-lo, muitas vezes associando o socialismo ou o comunismo com o desvio burocrático da URSS.
Isso não significa que os socialistas não façam distinções entre setores, às vezes em conflito, dentro das classes dominantes, ou entre diferentes Estados burgueses: na medida em que o sistema baseado na exploração também implica a concorrência entre capitais, essas tensões existem e, de fato, podem levar a crises e confrontos (inclusive guerras), como vimos crescer nos últimos anos. Também sabemos que, para continuar dominando, a burguesia não se apoia apenas na repressão das vozes dissidentes, mas busca, na medida em que seus negócios permitam, manter certa hegemonia sobre os dominados, utilizando os meios de comunicação que controla ou instituições — como as igrejas — para apresentar seus valores particulares como universais e “naturais”, ou concedendo benefícios diante da ameaça de perder tudo: foi o caso, como mencionamos, do Estado de Bem-Estar implantado em muitos países após a Segunda Guerra Mundial. Mas sabemos que todos esses direitos ou garantias são os primeiros a serem ajustados, cortados ou “colocados em ordem” assim que uma nova crise ou uma nova oportunidade de obter lucros maiores assim o exigir — esse foi o motor das chamadas “reformas neoliberais” ao redor do mundo.
O que os socialistas acreditam, sim, é que uma revolução socialista deve colocar em pé um outro tipo de Estado. Ou seja, não se trata de a classe trabalhadora “ocupar” o Estado tal como foi construído pela burguesia para garantir sua dominação sobre sua própria população e sobre outras — como no caso das potências imperialistas —, mas sim de construir um Estado de outra classe, em que uma amplíssima maioria da população possa exercer o poder, definindo suas prioridades, seu plano econômico, o uso dos recursos, suas formas de representação.
Ao contrário dos que dizem que o Estado capitalista pode controlar o mercado, o que precisamos é de um Estado da classe trabalhadora, dos explorados e oprimidos, que, ao dispor dos meios de produção, possa planejar racionalmente a economia com base nas necessidades da maioria.
“Impossível”, dizem alguns: como seria possível gerenciar as decisões de milhões de indivíduos em diferentes lugares, com diferentes necessidades e preferências? O mais seguro, dizem, é deixar que o mercado regule essas relações, segundo as leis da oferta e da procura. Mas isso é uma ilusão interessada: no terreno da circulação, nenhum mercado funciona automaticamente — ele se baseia em legislações, espaços, normativas e outras intervenções de mãos nada invisíveis e muito menos desinteressadas. Menos ainda no terreno da produção capitalista. A verdade é que as grandes empresas capitalistas contam com altos níveis de planejamento em sua produção — hoje mais do que nunca. Gigantes multinacionais como Amazon ou Walmart utilizam enormes quantidades de informação, com base nas novas tecnologias, para estimar o quê, como e quanto de cada produto será vendido e, com base nisso, organizam todo seu estoque, sua logística e suas contratações.
Por que, então, milhares podem morrer de fome em uma região enquanto, em outra, se joga comida fora por falta de compradores? Porque esse planejamento interno das empresas, essas regulações estatais que mantêm o campo de jogo inclinado, servem para garantir a obtenção de lucros dos capitalistas — e não para atender às necessidades ou ao bem-estar da sociedade como um todo. Se a produção capitalista é anárquica, como definiu Marx, não é porque se produz ou se comercializa aleatoriamente ou sem regras, mas porque essas regras estão atreladas à obtenção de lucro — onde entram também todas as armadilhas com as quais os peixes capitalistas maiores devoram os menores. É anárquica porque não leva em conta as necessidades sociais; é anárquica porque a própria concorrência capitalista leva às suas crises, que tentarão resolver aprofundando os mesmos problemas. Mas o que não é aleatório é que, por meio dessa anarquia produtiva — na qual todos pareceríamos atuar segundo nossas capacidades e interesses e, portanto, os efeitos não seriam responsabilidade de ninguém —, os capitalistas, em conjunto, se apropriam constantemente da força da cooperação de milhões de trabalhadores, sem a qual seria impossível produzir a maioria das coisas que usamos.
Para os socialistas, ao contrário, trata-se de tornar consciente e organizar essa cooperação que a “mão invisível” do mercado tenta esconder — e colocá-la a serviço de outros objetivos, impulsionando formas mais plenas e livres de desenvolvimento coletivo e individual, libertas da luta de todos contra todos por aquilo que é necessário para viver.
Hoje, o desenvolvimento das novas tecnologias facilitaria muito a planificação racional da economia voltada para a satisfação das necessidades sociais. Além disso, um socialismo construído desde a base permitiria que existissem planos alternativos, nos quais os próprios trabalhadores pudessem decidir democraticamente qual seguir, levando em conta não apenas os que estão diretamente envolvidos, mas também sua relação com o meio ambiente — ao contrário do que ocorre atualmente, quando os planos das empresas, que têm grande impacto social, são definidos arbitrariamente por cada capitalista.
Mas, para tudo isso, é necessário um Estado de outra classe. A história da luta da classe trabalhadora deixou exemplos valiosos de como poderia ser organizado um outro tipo de Estado: o primeiro foi o da Comuna de Paris, onde a insurreição do povo trabalhador conseguiu substituir o exército permanente e a polícia pelo povo armado; onde se estabeleceu que nenhum funcionário político poderia ganhar mais do que um operário qualificado, e que poderia ser revogado a qualquer momento por seus eleitores; e onde se unificaram as funções legislativas e executivas, para que o “deliberar” dos representantes eleitos não estivesse separado da aplicação prática das decisões, nem fosse delegado a outra instituição com poder de veto. Outros exemplos viriam depois, como no caso da Revolução Russa. Retomaremos esses exemplos, mas é importante destacar aqui que o objetivo desse Estado — que por isso mesmo é transitório — é nada mais, nada menos do que a própria dissolução do Estado, porque sem classes sociais — que é a sociedade à qual aspiramos —, não será necessário um Estado que atue como árbitro entre elas.
7. Os socialistas são contra a democracia?
Muito pelo contrário, somos os que mais lutamos de forma consequente pelos direitos democráticos das grandes maiorias. Mas a democracia burguesa foi pensada para limitar ao máximo a soberania popular, pois tem um único “direito sagrado”: a propriedade privada capitalista. Queremos uma democracia efetiva, real, baseada na auto-organização das classes oprimidas. Naturalmente, a democracia é uma forma de regime estatal, mas aspiramos a ir além: a um momento em que não seja necessário nenhum Estado, nem “governantes” e “governados”.
É comum — e conveniente — a confusão entre “democracia” e os “regimes democráticos burgueses”; ou seja, tomar por democracia a forma mais ou menos republicana que foi adotada por países onde a burguesia se impôs sobre os regimes monárquicos, “garantindo” uma série de direitos políticos e sociais, como o direito ao voto. Por isso se fala da democracia burguesa como a forma mais igualitária de organização estatal, embora seja importante lembrar que as primeiras repúblicas só permitiam votar aos proprietários, e que só após longas lutas foram incorporados ao eleitorado as mulheres, os povos anteriormente escravizados e os imigrantes.
Os capitalistas demonstraram, repetidamente ao longo da história, que quando os povos se rebelam, não hesitam em suprimir suas próprias democracias para instaurar sangrentas ditaduras, desde que possam manter sua dominação. Na América Latina sabemos bem disso: nos anos 1970, proliferaram ditaduras brutais impulsionadas pelo imperialismo norte-americano, que visavam esmagar os movimentos de massas e proteger os negócios capitalistas. Essas ditaduras entraram em crise e foram derrotadas graças à mobilização popular. Diante disso, as próprias burguesias e o imperialismo que haviam apoiado os regimes militares passaram a apresentar a democracia burguesa como a única forma possível de democracia.
Se várias décadas depois essas democracias mostraram seus limites — e como consequência disso, muitos países passaram por crises políticas, e crescem os setores da população que se mostram desencantados com elas, mesmo em suas versões “ideais” —, é porque, de fato, segundo o cargo, votamos a cada 2, 4, 5 ou 6 anos (“o povo não governa nem delibera, senão por meio de seus representantes”, dizem diversas constituições “liberais”). Enquanto isso, os burgueses “votam” todos os dias no mercado, decidindo o que convém aos seus lucros, independentemente das necessidades da maioria. A “democracia” burguesa inclui mecanismos para limitar direitos e obrigações dos cidadãos, e instituições com poder de veto, como o Executivo ou o Senado — que pode representar minorias regionais —, e que têm poder para definir, com uma simples assinatura, o futuro de gerações inteiras. É o caso, por exemplo, de acordos que amarram nossos países por décadas aos desígnios do Fundo Monetário Internacional. E, sobretudo, a democracia no capitalismo anda de mãos dadas com o despotismo nas fábricas, onde é a força imposta pelos patrões que determina o que e como se faz. Pode haver liberdade e democracia se a única opção é trabalhar ou morrer de fome?
É nesse sentido que os socialistas afirmam que o regime democrático burguês é muitas coisas, menos verdadeiramente democrático. Não é verdade que sejamos contra toda oportunidade de conquistar direitos e garantias para as maiorias — estivemos sempre à frente dessas lutas democráticas. Mas sabemos que isso não basta: nenhuma de nossas conquistas está garantida se não a defendermos com a luta, e não avançaremos em novas conquistas se não questionarmos o Estado burguês.
O que queremos é mais democracia, mas uma democracia efetiva, real. Por isso lutamos por um Estado dos trabalhadores e trabalhadoras, baseado em sovietes ou conselhos — o que os marxistas chamaram de Estado operário. Já mencionamos algumas lições da Comuna de Paris, mas não são as únicas. A Revolução Russa deu origem aos sovietes; a Revolução Alemã, aos Räte; e outras revoluções também criaram organismos conselhistas que expressavam o poder das massas insurgentes. Eram novas instituições para unir forças, organizar a luta e a autodefesa contra os ataques do sistema, e, ao mesmo tempo, a base de uma nova forma de Estado transitório, onde as massas podiam participar da gestão dos assuntos políticos e econômicos.
Hoje não existem nem mesmo desculpas “técnicas”: a revolução nas comunicações permitiria facilmente levar informação a milhões de pessoas para deliberar sobre decisões políticas e econômicas, para planejar democraticamente os recursos econômicos, de modo a eliminar progressivamente a desigualdade e reduzir a jornada de trabalho, possibilitando que o conhecimento científico e cultural chegue a cada vez mais pessoas.
Dificilmente, com a participação efetiva da maioria nos assuntos públicos, prevaleceriam propostas como construir imóveis vazios onde ninguém mora, em vez de resolver o problema dos milhões que vivem em favelas e ocupações; ou permitir que um punhado acumule fortunas que não conseguirá gastar em gerações, enquanto centenas de milhões passam fome no mundo; ou ainda que se destrua o meio ambiente, comprometendo a vida futura no planeta, apenas para encher os bolsos de poucos.
Referindo-se ao Estado operário, Lenin dizia que “quanto mais democrático for o Estado, menos ele será um Estado no sentido estrito da palavra”, pois quanto mais as maiorias populares participarem efetivamente de todos os seus assuntos, mais rapidamente começa a extinção de qualquer forma de Estado.
8. Não seria mais fácil apostar em reformas cada vez mais amplas do que em uma revolução socialista?
A história mostra o contrário: os principais direitos conquistados foram sempre fruto direto ou indireto de grandes revoluções. Não existe uma acumulação evolutiva de reformas — o neoliberalismo está aí para provar isso. O capitalismo é crise, é desigualdade, é destruição do planeta, é guerra. A esquerda que se diz “realista” sempre acaba administrando os negócios do capital. O mais “realista” para alcançar uma existência digna e ampliar direitos é questionar a propriedade privada burguesa.
Não é incomum que os revolucionários recebam o “conselho bem-intencionado” de abandonar qualquer perspectiva de luta revolucionária e apostar na conquista gradual de reformas, em nome do bom senso e do “realismo”. Mas o primeiro ponto a destacar é que a maior parte das reformas conquistadas pela classe trabalhadora e pelos oprimidos só foi possível como subproduto de grandes lutas. A jornada de trabalho de 8 horas, por exemplo, exigiu um enorme movimento internacional desde o século XIX. O 1º de Maio lembra justamente os “mártires de Chicago”, executados pelo Estado norte-americano por essa luta. Em países como Alemanha e Rússia, a jornada de 8 horas só foi conquistada após grandes revoluções, sendo depois generalizada para outros países.
Um dos períodos de maior reforma no capitalismo veio após o massacre da Segunda Guerra Mundial, quando o sistema esteve à beira do colapso. O chamado Estado de bem-estar foi a resposta da burguesia ao medo do avanço do “comunismo”, num contexto em que os capitalistas haviam sido expropriados em um terço do planeta. O mesmo vale para o processo de “descolonização”, quando vários países africanos conquistaram sua independência por meio de processos revolucionários. A história mostra que os capitalistas só aceitam reformas quando estão diante do risco de perder tudo. Podemos até dizer que quanto mais distante estiver a revolução, mais distante estaremos de qualquer reforma substantiva.
Além disso, a ofensiva neoliberal mostrou que toda reforma conquistada é provisória enquanto existir o capitalismo. Quando a burguesia conseguiu restaurar a propriedade privada nos países onde havia sido abolida, como na Rússia ou na China, sentiu-se à vontade para desmantelar as reformas sociais do pós-guerra e reapertar os grilhões da opressão, especialmente nos países da periferia, com a aplicação das políticas neoliberais. Os ataques às antigas conquistas continuam até hoje: os protestos contra o aumento da jornada de trabalho na Grécia ou a luta dos trabalhadores franceses contra a reforma da previdência de Macron são exemplos disso — se dependesse dos capitalistas, trabalharíamos até morrer para que eles sigam lucrando.
Não há avanço evolutivo pela acumulação de reformas porque toda conquista parcial é, como já dissemos, provisória. Isso não significa que não lutemos por elas com toda a força. Estamos — e continuaremos — na linha de frente das lutas por cada demanda justa que se possa arrancar do capitalismo, e na defesa de cada direito ameaçado. Sabemos que a única via é a mobilização: o capitalismo nunca concedeu nenhuma conquista por bondade. Um exemplo recente: o movimento de mulheres conseguiu arrancar do Estado argentino o direito ao aborto legal com muita luta. Mas sabemos que é preciso manter-se em alerta — vimos esse direito ser atacado nos EUA, mesmo tendo sido conquistado décadas atrás.
Isso não é exceção — é a regra. Direitos como a jornada de 8 horas hoje são apenas uma lembrança para boa parte da classe trabalhadora precarizada. Como dizia Rosa Luxemburgo, os capitalistas querem nos condenar ao trabalho de Sísifo — aquele personagem mitológico forçado a empurrar eternamente uma pedra até o topo, apenas para vê-la rolar de volta toda vez. Estamos sempre tendo que reconquistar os mesmos direitos.
Dizem que se limitássemos nossas demandas ao que é possível dentro dos marcos do capitalismo, seríamos mais “realistas”. Mas essa lógica é que se mostrou ilusória: basta olhar os últimos anos — apesar de enormes mobilizações em diversos países desde 2010 (Egito, Tunísia, Grécia, França, EUA, Chile, Peru, Colômbia, entre outros), poucas ou nenhuma reforma estrutural foi conquistada. A realidade mostra que não há separação entre as demandas básicas — como os direitos democráticos ou o direito a uma vida digna — e a necessidade de questionar a propriedade privada capitalista, em um sistema cada vez mais predatório, que produz desigualdade, destrói o planeta e gera novas guerras.
Vejamos um exemplo central: o problema do trabalho. Metade da classe trabalhadora mundial vive em condições de precariedade. De um lado, há quem trabalhe em jornadas muito acima das 8 horas. De outro, há quem sofra com desemprego, subemprego ou trabalho temporário. Diante disso, hoje existem três propostas principais.
A primeira, promovida pelo grande capital, é usar a crise (e até a ameaça do “desemprego tecnológico”) como forma de disciplinar e explorar ainda mais os trabalhadores. Isso se expressa nas “reformas trabalhistas” que aumentam a exploração e retiram direitos.
A segunda, reformista, é a renda básica universal ou “salário cidadão” — ou seja, um valor pago pelo Estado a todas as pessoas, independente de estarem trabalhando ou não. Descartando a ilusão da boa vontade da burguesia, esta política implicaria duas opções: ou isso se limita a uma versão ampliada dos programas sociais promovidos por organismos como o Banco Mundial, para mitigar a miséria e manter o sistema funcionando, transformando grandes massas da população em “clientela” do Estado; ou estaríamos falando de um salário propriamente digno e suficiente para cobrir as necessidades. Mas, nesse caso, ninguém aceitaria trabalhar para enriquecer patrões, se já tivesse todas as necessidades garantidas. Ou seja, para impôr um salário real e não um paliativo parco, seria preciso enfrentar os capitalistas diretamente. E então, por que parar por aí? Por que deixar os meios de produção nas mãos da burguesia?
A terceira proposta é a dos socialistas: redução da jornada e divisão do trabalho existente, junto com uma escala móvel de salários. Ou seja: redistribuir o trabalho entre todos para eliminar o desemprego e o excesso de jornada, e garantir um salário que cubra as necessidades sociais, corrigido automaticamente conforme a inflação. Essas medidas, é claro, atacam diretamente o “direito sagrado” da propriedade privada, pois colocam os meios de produção e o trabalho a serviço da sociedade, e não do lucro de poucos. Mas são a única solução real e duradoura para a crise do trabalho enfrentada pelas grandes maiorias.
Em resumo, ao mesmo tempo em que lutamos por cada demanda parcial concreta, procuramos ligar essas lutas a uma solução de fundo, que vá além da miséria capitalista e caminhe para a organização racional da produção sob controle dos trabalhadores — uma perspectiva socialista. Isso é o que chamamos de programa transicional: um conjunto de propostas que serve como ponte entre a consciência atual de quem luta e a necessidade real de superar o sistema.
A divisão das horas de trabalho e redução da jornada de trabalho são só o primeiro passo rumo a um objetivo maior: diminuir ao mínimo o trabalho necessário com o uso dos avanços da ciência e da tecnologia, até que o trabalho seja apenas uma pequena parte das ocupações humanas. Assim, poderíamos dedicar nossa energia ao ócio criativo, à ciência, à arte ou ao que quisermos, desenvolvendo plenamente nossas capacidades e estabelecendo uma relação mais harmoniosa com a natureza.
9. O socialismo não seria pensado para os “países ricos” ou “avançados”?
Quando nós, socialistas, dizemos que não queremos “repartir a escassez”, não estamos dizendo que apenas os países ricos — que, no capitalismo em que vivemos, são as potências imperialistas — teriam a possibilidade de construí-lo, enquanto os países mais pobres deveriam esperar que a abundância transborde. Tampouco afirmamos que estes últimos devam, necessariamente, seguir o mesmo caminho de desenvolvimento das potências, que avançaram justamente saqueando outras regiões do planeta. Por isso, defendemos que, onde quer que triunfe a revolução operária, com todas as suas particularidades, vantagens e desvantagens, é obrigação dos revolucionários buscar desenvolver e estender internacionalmente essa luta, como parte da libertação de todos os povos das garras do imperialismo e da luta anticapitalista. O capitalismo é um sistema global, e os seus males se expressam internacionalmente; a luta contra ele também precisa ser internacionalista.
Frequentemente, quando falamos em igualdade, socialização, coletivização, os defensores do capitalismo nos acusam de querer “repartir a escassez” ou “igualar por baixo”. Mas o socialismo não se baseia na escassez generalizada, e sim no desenvolvimento das forças produtivas, que possibilite satisfazer as necessidades sociais e estabelecer uma relação harmônica com a natureza. Também não é verdade, como apressadamente afirmam alguns críticos, que os marxistas acreditem que todos os países devam seguir exatamente o mesmo caminho percorrido pelos países onde o capitalismo se desenvolveu originalmente. Na verdade, as condições de vida relativamente melhores em determinados países imperialistas — por exemplo, os europeus em comparação com os africanos ou latino-americanos — estão diretamente ligadas a essa desigualdade histórica. O capitalismo não surgiu ao mesmo tempo em todos os lugares: ele teve origem na Europa e, a partir dali, foi se expandindo e se impondo sobre culturas e sociedades preexistentes.
Esses países nunca representaram um modelo real de desenvolvimento capitalista para os demais. Pelo contrário, a expansão do modo de produção capitalista impôs aos países atrasados o avanço forçado, impulsionado pelas necessidades materiais. Isso gerou — e ainda gera — um tipo de desenvolvimento desigual e combinado, onde formas produtivas arcaicas convivem com tecnologias de ponta, como descreveu o revolucionário russo León Trotsky.
Sem o saque colonial da África, da América Latina e da Ásia, o capitalismo dos países centrais não teria se desenvolvido como se desenvolveu. No final do século XIX, um punhado de potências já havia “repartido” o planeta para explorá-lo. Nesse contexto, e com a primazia do capital financeiro, começa o que os marxistas chamam de época imperialista. Burguesias como as dos Estados Unidos, Inglaterra, França e Alemanha passaram a disputar zonas de influência pelo mundo. Dessa disputa surgiram, entre outras, duas guerras mundiais, que foram as maiores matanças da história, com dezenas de milhões de mortos — incluindo os bombardeios atômicos dos EUA sobre Hiroshima e Nagasaki. Esses eventos não pertencem apenas ao passado: com a guerra na Ucrânia e o conflito crescente entre Estados Unidos e China, o belicismo imperialista voltou às manchetes.
Nós, socialistas, somos anti-imperialistas, lutamos pela libertação de todos os povos oprimidos do mundo. É essa opressão que permite ao capital financeiro internacional mandar e desmandar como quiser nos países dependentes, semicoloniais e coloniais. Para isso, contam com instituições “globais” como o FMI, o Banco Mundial, entre outros, que se garantem o direito de ditar a política econômica desses países. Eles nos exploram até a última gota de sangue, mergulhando nossas sociedades em crises que resultam em enormes sofrimentos para as maiorias — e das quais, naturalmente, os grandes capitalistas sempre lucram.
Mas, para combater o imperialismo de forma consequente, é preciso combater o capitalismo, pois ele está na raiz da forma como o mundo foi dividido — à força. Ontem como hoje, o anti-imperialismo está intrinsecamente ligado à luta pelo socialismo.
As grandes revoluções — começando pela Revolução Russa — que triunfaram no século passado ocorreram em países atrasados, coloniais ou semicoloniais. O século XX já demonstrou a inviabilidade da utopia reacionária de construir o “socialismo em um só país”. A burocracia que se formou acima da classe trabalhadora em muitas dessas revoluções foi, em última instância, consequência dessa política de isolamento e do atraso histórico. O comunismo, propriamente dito, não pode surgir nos limites dos países atrasados, pois não se trata apenas de distribuir melhor a escassez, o que acabaria apenas reacendendo a luta pela sobrevivência e o “cada um por si” característico do capitalismo.
Curiosamente, no capitalismo que se gaba de ser a grande via do “desenvolvimento”, apenas dois países passaram de situações atrasadas para potências mundiais no século XX e XXI: Rússia e China — justamente onde ocorreram revoluções que expropriaram os meios de produção da burguesia. Dito isso, podemos nos perguntar: se mesmo sob o domínio das burocracias stalinistas, a substituição da propriedade privada e da anarquia capitalista por propriedade estatal e planejamento (ainda que burocrático) permitiu que URSS e China deixassem de ser países semifeudais e se tornassem potências, quão maiores não seriam as possibilidades hoje se os trabalhadores tomassem em suas mãos o aparato tecnológico e a enorme riqueza dos Estados Unidos, Alemanha ou Japão?
A história mostra que, na periferia, é mais fácil para a classe trabalhadora tomar o poder porque os Estados são mais fracos. Mas, após derrotar a burguesia, é mais difícil avançar rumo ao socialismo por conta do atraso estrutural dessas sociedades. Nos países imperialistas, ocorre o contrário: é mais difícil conquistar o poder, já que são Estados altamente desenvolvidos tanto nos mecanismos de “consenso” quanto de repressão. Porém, uma vez conquistado o poder, seria muito mais fácil avançar rumo ao socialismo, pois as forças produtivas já estão altamente desenvolvidas e aptas a satisfazer as necessidades sociais. Além disso, por serem os países que oprimem outros povos, uma classe trabalhadora no poder poderia libertá-los imediatamente. Em resumo, a revolução socialista pode começar pela periferia, mas precisa vencer nos centros imperialistas para colocar a tecnologia e a produção a serviço da libertação humana e da preservação do planeta.
Muitos desses aspectos foram sintetizados por León Trotsky em sua teoria-programa da revolução permanente, em oposição à ideia de “socialismo em um só país”. Essa teoria não trata apenas da dinâmica da revolução nos países atrasados e da ligação entre revolução democrática (inclusive a luta contra o imperialismo) e revolução socialista, mas propõe uma estratégia global. Ela liga o início da revolução em nível nacional com o desenvolvimento da revolução internacional e sua culminância em escala mundial, assim como a tomada do poder pela classe trabalhadora com as transformações na economia, na ciência e nos costumes — tudo isso voltado para o objetivo fundamental dos socialistas: a construção de uma sociedade de “produtores livres e associados”, o comunismo.
10. O projeto socialista não termina sempre em ditadura?
As revoluções socialistas que ao longo do século XX se espalharam pelo mundo e abriram, com sua força, novos horizontes, foram derrotadas pelo desgaste e pelo isolamento impostos pela resistência do capital, o que permitiu o desenvolvimento da burocracia e da contrarrevolução nos lugares onde os povos haviam infligido uma primeira grande derrota ao sistema. Mas nada disso era inevitável. Revolucionários em todo o mundo combateram esses desvios e deixaram experiências e lições inestimáveis para enfrentar os obstáculos e desafios que surgirem em uma nova ofensiva revolucionária no século XXI. A única garantia de que o capitalismo volte a se impor é se escolhermos nos resignar e não lutar por uma oportunidade de construir uma sociedade sobre novas bases.
Todos os inimigos do marxismo, depois da experiência stalinista, acusam o socialismo de levar, inevitavelmente, a uma ditadura. Os que propagam essa ideia a partir da direita, muitas vezes, defendem ao mesmo tempo todo tipo de ditaduras que lhes convêm; as atrocidades do capitalismo não os incomodam. Mas há também aqueles que, resignados com a ideia de que “não há alternativa”, usam esse argumento para se justificar, assumindo que as revoluções sempre “devoram seus próprios filhos”. A conclusão é que melhor não sonhar tão alto e se contentar com o que temos. A verdade é que o projeto socialista foi deturpado durante grande parte do século XX nas mãos do stalinismo, que tentou identificá-lo com ditaduras parasitárias em Estados onde os capitalistas haviam sido expropriados, mas que passaram a ser dirigidos por burocracias que, no fim das contas, acabaram restaurando o capitalismo nesses países.
Mas o stalinismo não foi o nome da revolução, e sim da contrarrevolução. Originalmente, a Revolução Russa fundou a primeira república de trabalhadores da história. As classes exploradas e oprimidas, privadas do poder econômico e do acesso à cultura, tornaram-se classes dominantes por meio dos conselhos de deputados operários e camponeses (sovietes), que expressavam uma inédita capacidade de auto-organização das massas. O Partido Bolchevique, que reunia seus setores mais conscientes e decididos, conseguiu conduzir com sucesso a tomada do poder, e esses conselhos se tornaram o pilar de uma democracia de classe distinta, onde os deserdados agora eram chamados a definir não só o rumo político da sociedade, mas também a planificação da economia com base na propriedade estatal dos meios de produção.
A “Declaração dos direitos do povo trabalhador e explorado”, transformada em texto constitucional da nova república soviética em 1918, proclamava como missão essencial “abolir toda exploração do homem pelo homem”, “fazer triunfar o socialismo em todos os países”; declarava “patrimônio de todo o povo trabalhador toda a terra”; ratificava “a estatização de todos os bancos pelo Estado operário e camponês” e propunha a “ruptura completa com a bárbara política da civilização burguesa, que baseava a prosperidade dos exploradores de algumas poucas nações eleitas na escravidão de centenas de milhões de trabalhadores” em todo o mundo.
Não eram apenas palavras: se a Rússia czarista mantinha sob seu jugo centenas de povos num território que abrangia quase um continente, a revolução também estabeleceu o direito desses povos à autodeterminação, caso assim o desejassem, além de garantir respeito à sua cultura, língua e tradições. Por sua vez, sob a nova união de repúblicas, os direitos deixaram de ser “do homem”: foi instituída igualdade legal entre homens e mulheres, reconhecidas uniões de fato; estabelecido o direito ao divórcio e ao aborto; criadas creches, lavanderias e refeitórios comunitários; eliminada a criminalização da homossexualidade e a perseguição a mulheres em situação de prostituição. Muitos desses direitos, já presentes na Rússia revolucionária, ainda estamos lutando para conquistar um século depois.
Inúmeros ideólogos da burguesia afirmaram que a burocratização do Estado soviético era inevitável. Mas essa burocratização não pode ser compreendida sem considerar os anos de guerra civil em que os revolucionários tiveram de enfrentar 14 exércitos imperialistas aliados às forças contrarrevolucionárias da velha sociedade. Tampouco é compreensível sem a derrota da onda revolucionária internacional despertada pela simpatia à Revolução Russa, cujo centro principal foi a Revolução Alemã — onde grandes líderes como Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht foram assassinados pela social-democracia, que alegava defender “valores” democráticos. A derrota do longo processo revolucionário alemão, que durou anos, só se consolidou com a chegada de Hitler ao poder em 1933.
O isolamento internacional decorrente dessa derrota foi um duro golpe para a República dos Sovietes. Como dissemos, o socialismo não consiste numa simples melhor distribuição da escassez. A ascensão da burocracia stalinista foi, em última análise, resultado dessa luta pela sobrevivência em meio ao atraso e ao isolamento. O triunfo de novas revoluções poderia ter poupado a humanidade da barbárie dos campos de concentração e do trabalho forçado, tanto do fascismo quanto do stalinismo, e evitado o massacre em escala global da Segunda Guerra Mundial. Mas o capitalismo, para desgraça da humanidade, sobreviveu. As novas revoluções que triunfaram após a guerra foram politicamente expropriadas por variantes do stalinismo, burocracias que usaram o controle dos novos Estados para defender interesses nacionais estreitos, em constante conflito com o desenvolvimento internacional da revolução socialista.
Nada disso era um destino inevitável da História com H maiúsculo. Foi o resultado de grandes lutas protagonizadas por milhões de trabalhadores e camponeses em diversas partes do mundo, que foram derrotadas. Na própria URSS, Lenin passou os últimos anos de sua vida lutando contra a burocracia que começava a se entrincheirar no Estado soviético e no Partido Bolchevique. Trotsky continuaria essa luta, tornando-se símbolo da batalha implacável contra o stalinismo para recuperar o poder para os sovietes e estender a revolução em nível internacional.
Contra a ilusão da homogeneidade totalitária, Trotsky defendeu a necessidade de uma “revolução política” dentro da URSS, que, ao mesmo tempo em que preservasse as conquistas da Revolução de Outubro, derrubasse a burocracia e recuperasse a democracia soviética — substituindo o regime de “partido único” por um pluripartidarismo soviético (isto é, a liberdade de todas as tendências operárias que defendessem a revolução participarem dos organismos de poder das massas). Nessa nova democracia, os trabalhadores retomariam o controle do governo e reformulariam o planejamento econômico em benefício das maiorias.
Vários processos de “revolução política” ocorreram na segunda metade do século XX: a insurreição de Berlim em 1953, Hungria e Polônia em 1956, a Primavera de Praga em 1968, até o processo polonês de 1980-1981. O colapso repentino da URSS em 1989-1991 e seu retorno ao capitalismo não pode ser compreendido sem considerar a derrota de todos esses processos.
Para essas batalhas, Trotsky e muitos outros revolucionários organizaram ao longo das décadas diversos agrupamentos, desde a primeira Oposição de Esquerda até, finalmente, a fundação da IV Internacional em 1938. O socialismo revolucionário pelo qual lutamos no século XXI é continuidade dessas lutas, que têm como perspectiva a libertação da classe trabalhadora e, com ela, de todos os oprimidos.
A experiência do século XX não foi em vão. Basta um pouco de imaginação histórica para projetar, com o atual nível da ciência, da tecnologia e das forças produtivas, o enorme potencial para libertar as capacidades criativas do ser humano, os mecanismos democráticos que hoje poderiam ser implementados com os meios de que dispomos e conquistar uma relação mais harmônica com a natureza. É isso que torna atual a perspectiva internacionalista da revolução socialista.
11. Se todos tivéssemos nossas necessidades satisfeitas, não acabaríamos esgotando ainda mais o planeta?
É o capitalismo, em seu afã por obter lucros, que considera que a “riqueza social” é produzir mercadorias a qualquer custo, que felicidade é sinônimo de consumismo e que a natureza é apenas um reservatório de recursos. Nós, socialistas, que defendemos as lutas atuais em defesa dos bens comuns naturais, sabemos que as consequências de séculos de espoliação capitalista da natureza trarão novos desafios. No entanto, consideramos que acabar com esse sistema é um passo necessário para que uma sociedade de produtores livremente associados possa tomar decisões coletivas sobre suas formas de produção e de vida, tendo sempre em mente a necessidade de estabelecer um metabolismo racional e em harmonia com a natureza, da qual somos parte.
Para obter lucros explorando o trabalho dos outros e vencer a concorrência entre si, os capitalistas precisam produzir cada vez mais mercadorias, sejam ou não “socialmente necessárias”. Mas, ao mesmo tempo em que cresce exponencialmente a quantidade de bens e serviços de todo tipo lançados no mercado e se promove o consumismo como modelo aspiracional de felicidade, o capitalismo mantém milhões de pessoas na pobreza. Enquanto se constrói para expandir o negócio imobiliário, milhões permanecem sem teto e são expulsos de suas casas; enquanto as indústrias alimentícias, têxteis e de outros bens essenciais produzem cada vez mais e descartam boa parte da produção que não é vendida – com riscos atuais e potenciais ao ecossistema e à saúde das pessoas –, milhões passam fome ou frio. O aumento da produtividade em determinados setores é acompanhado por trabalhos cada vez mais precários, comparáveis aos de séculos passados, quando ainda não havia tecnologia para realizá-los. A tão celebrada “inovação tecnológica permanente” anda de mãos dadas com a obsolescência programada.
Mas, além da nossa vida cotidiana, essa irracionalidade do sistema capitalista se manifesta diariamente na multiplicação dos chamados “desastres naturais” – que não são exatamente obra da natureza, mas sim infligidos a ela – resultantes de alterações no metabolismo natural em diferentes escalas: contaminação de aquíferos por atividades industriais, mineradoras e outras; inundações provocadas pelo avanço sobre áreas úmidas – o que também gera, às vezes, a multiplicação de incêndios; efeitos sísmicos causados por técnicas de fraturamento hidráulico (fracking); desmatamento, destruição de habitats fundamentais para certas espécies. Essas são algumas manifestações locais da lógica capitalista de converter a natureza em mero objeto de exploração para obtenção de lucros. Em escala planetária, o aquecimento global, provocado pela emissão de gases de efeito estufa, é um filme – em câmera lenta, mas cada vez mais acelerado – de catástrofe em curso: temperaturas extremas no globo, degelo irreversível, incêndios cada vez mais descontrolados. E ainda que o sistema coloque, num horizonte não tão distante, todos os habitantes do planeta em risco, os mais afetados são, claro, aqueles que têm menos recursos para lidar com essas mudanças, aprofundando as condições de vida cada vez mais precárias de milhões.
O sistema, que se orgulha da sua grande capacidade de criar riqueza, há décadas coloca a humanidade diante de uma perspectiva cada vez mais sombria. Os hoje populares “novos acordos verdes” (Green New Deal), os mercados de carbono e outras formas de “maquiagem verde” (greenwashing) promovidas pelas empresas são meramente discursos que buscam criar a ilusão de que se pode combater os danos ambientais sem eliminar suas causas. É a própria dinâmica do modo de produção capitalista que é ecologicamente insustentável, e compartilhamos uma conclusão à qual muitos jovens que lutam em movimentos ecológicos estão chegando cada vez mais: é preciso ir à raiz do problema, acabar com o capitalismo.
Isso não significa, no entanto, que devemos renunciar à perspectiva de alcançar a plena satisfação das necessidades para todas as pessoas. Essa plenitude ou abundância não significa extrapolar os padrões de consumo do 1% mais rico – com seus iates, mansões, jatos particulares e carros de luxo – para os 8 bilhões de habitantes do planeta, ou seja, não se trata de acumular bens suntuosos como única medida de “bem-estar”. Uma sociedade comunista, de produtores livremente associados, como a que aspiramos construir, implica um profundo repensar de como se produz, mas também uma crítica à forma mesquinha e limitada com que a satisfação das necessidades é tratada nesta sociedade.
Nós, socialistas, não confundimos abundância ou superprodução de mercadorias com “riqueza social”. Trata-se de buscar um desenvolvimento mais pleno para todas as pessoas em suas múltiplas dimensões. Por isso, um ponto de partida fundamental é reduzir o tempo de trabalho dedicado à produção das necessidades, para conquistar mais tempo livre. Ao mesmo tempo, é essencial transformar o próprio trabalho, superando as divisões entre planejamento e execução, trabalho intelectual e trabalho manual, nas quais o capitalismo baseou o aumento da exploração e a redução dos tempos de produção à custa das capacidades, da saúde mental e física da força de trabalho.
Ao contrário do que ocorre no capitalismo, onde cada empresa ignora os danos ambientais por eles não entrarem na sua lógica de lucros, e onde os Estados capitalistas competem entre si e são incapazes de coordenar políticas sérias contra a catástrofe – inclusive utilizando o discurso da sustentabilidade para praticar o chamado “imperialismo ambiental”, exportando seus resíduos para países oprimidos ou promovendo nestes formas de extração que não podem praticar em seus próprios territórios –, no socialismo as decisões coletivas sobre o que e como produzir poderiam ser tomadas com o objetivo de compatibilizar duas metas: alcançar a satisfação plena das necessidades fundamentais e produzir de forma não alienada. E em uma sociedade de produtores livremente associados, todas essas decisões coletivas deverão ter sempre em vista a necessidade de estabelecer um metabolismo racional com a natureza.
Sabemos que o problema ecológico não tem uma solução simples nem imediata. Mesmo com um debate democrático e sem interesses mesquinhos, mesmo colocando toda a decisão política e as capacidades científicas e técnicas disponíveis para reverter os danos já causados, serão necessárias decisões difíceis e imperfeitas, pois o socialismo terá de lidar com a herança deixada pelo capitalismo nesse campo. Mas estamos convencidos de que só livres das medidas estreitas de “riqueza”, “bem-estar social” e “necessidades humanas” impostas por este sistema é que poderemos propor um modelo em que a satisfação das nossas necessidades não entre em contradição com a sustentabilidade ambiental — e pensar novas formas produtivas em harmonia com a natureza, da qual, em última instância, fazemos parte.
12. Os socialistas são pacifistas ou, ao contrário, apenas confiam em uma revolução violenta?
No capitalismo imperialista em que vivemos, as guerras não são incidentes infelizes ou excepcionais, mas sim um recurso ao qual as classes dominantes recorrem para defender seus interesses sempre que necessário, à custa de destruição e violência que, em sua maioria, recaem sobre as massas. Por isso, nos colocamos contra elas. Mas sabemos, por experiência, que os capitalistas não estão dispostos a entregar seus privilégios pacificamente, e por isso não confundimos a violência dos exploradores com as tentativas legítimas dos oprimidos de se defenderem ou de lutarem por sua libertação. Apenas se essas lutas vencerem será possível erradicar, definitivamente, as tendências bélicas e destrutivas que esse sistema social engendra.
É muito comum que, por meio do Estado e da grande mídia, se classifique como “violentos” aqueles que bloqueiam uma estrada ou fazem piquetes para reivindicar seus direitos, que ocupam uma fábrica ou entram em greve, ou ainda qualquer ação de setores populares que se recusam a abaixar a cabeça e “obedecer”. Nos processos de luta de classes dos últimos anos, vimos essa mesma lógica sendo aplicada em escala ampliada em diversos países. Na França, com os Coletes Amarelos, dezenas de manifestantes perderam a visão de um olho devido à repressão policial, com centenas de feridos e milhares de presos — mas os “violentos” eram os manifestantes. No Chile, em 2019, o governo mobilizou os carabineiros e o exército para reprimir um legítimo protesto popular; houve mortos pela repressão, feridos, presos e casos de violência sexual por parte das forças “da ordem”, mas os “violentos”, os “bárbaros”, eram aqueles que se mobilizavam e resistiam. Argumentações semelhantes em nome da chamada “paz social” — que nada mais é do que a tranquilidade para seguir explorando e oprimindo as maiorias — se repetiram nas revoltas no Peru e no Sri Lanka.
Isso não é novidade: os capitalistas e seus Estados sempre agiram assim. Claro, o fizeram sob ditaduras, mas também em regimes democrático-parlamentares. O povo é considerado “soberano” apenas enquanto não se levanta contra os ditames das classes dominantes, e sobretudo, enquanto não questiona o “direito divino” à propriedade privada dos capitalistas. Ainda que em situações “normais” isso fique em segundo plano, o verdadeiro respaldo do Estado capitalista são os corpos armados especiais (polícia, forças de segurança, exército): uma força pública organizada para a dominação social, uma verdadeira máquina de despotismo de classe. Isso ocorre porque o Estado nasce da divisão da sociedade entre classes inconciliáveis, entre exploradores e explorados.
A guerra também está historicamente ligada ao desenvolvimento do Estado. Hoje, a guerra na Ucrânia, o salto no armamentismo e no militarismo das grandes potências, as tensões militares entre Estados Unidos e China no Oriente demonstram que, ao contrário da ideologia da “globalização pacífica”, a guerra e o capitalismo seguem como irmãos de sangue. Muitas das grandes revoluções da história surgiram frente à barbárie da guerra e aos sofrimentos que ela impõe: a Comuna de Paris, a Revolução Russa de 1905 e de 1917, a Revolução Alemã de 1918-19, a Revolução Chinesa de 1949, entre outras. E para evitar levantes revolucionários na Alemanha, o imperialismo norte-americano lançou toneladas de bombas explosivas e incendiárias sobre a população civil.
Igualar a violência do escravo que se levanta para romper suas correntes com a do escravocrata que tenta impedir isso é uma das operações mais falsas do discurso das classes dominantes — não apenas da direita, mas também de certos setores “progressistas”. Mas não, não são a mesma coisa. Friedrich Engels, ao ser questionado se seria possível abolir pacificamente a propriedade privada, respondeu: “Seria desejável que fosse assim, e os comunistas, logicamente, seriam os últimos a se opor”. No entanto, ele acrescentava que os comunistas sabiam, por experiência, que as revoluções não são feitas de forma arbitrária e premeditada, que não dependem da vontade de um partido ou de uma classe inteira, mas são uma “consequência necessária das circunstâncias”. E que, na medida em que o desenvolvimento do proletariado era reprimido com violência em diversos países, eram os próprios “inimigos dos comunistas” que pareciam estar trabalhando “com todas as suas forças para a revolução”. Concluía então: “Se tudo isso, no fim das contas, empurrar o proletariado subjugado para a revolução, nós, os comunistas, defenderemos com ações, assim como fazemos agora com palavras, a causa do proletariado.”
Nós socialistas do século XXI podemos adotar essas palavras de Engels como nossas, apoiados por toda a experiência do século passado. As estratégias que propuseram uma “via pacífica ao socialismo” fracassaram; o golpe de Estado de Pinochet no Chile, apoiado pela CIA em setembro de 1973, logo após ser nomeado comandante-em-chefe do Exército por Salvador Allende, está aí para nos lembrar disso.
Para nós, o desenvolvimento da autodefesa frente aos aparatos armados da burguesia está intimamente ligado à auto-organização da classe trabalhadora. Sabemos que, quanto mais forte for sua luta, mais intenso será o contra-ataque do capital. A perspectiva de avanço da ação independente da classe trabalhadora e do movimento de massas não é pacífica, pois envolve um nível crescente de enfrentamento ao poder estatal. É impossível interromper voluntariamente a luta política quando, pela força das circunstâncias, ela se torna uma luta física. Por isso, defendemos que os meios de autodefesa devem acompanhar o desenvolvimento da mobilização, impulsionando a criação de destacamentos de autodefesa — desde piquetes de greve em lutas específicas até milícias operárias quando o conflito se generaliza. A partir dessa concepção estratégica, também não compartilhamos as estratégias guerrilheiras que recorreram à “luta armada” desvinculada da organização da classe trabalhadora, concebendo a luta contra o Estado como separada da luta de classes protagonizada pelas massas. Só assim será possível derrotar os guardiões da propriedade privada capitalista e conquistar o governo sobre os nossos próprios destinos.
Da mesma forma, combatemos as guerras imperialistas. Sabemos que a burguesia, apesar dos discursos, não é de forma alguma “humanitária”; se não utiliza mais meios militares, é porque considera que isso pode pôr em risco sua própria dominação — e, mesmo assim, em certo momento, o faz. Por isso, apelar ao pacifismo para enfrentar essas guerras é inútil. Lutamos contra as guerras imperialistas com uma perspectiva revolucionária, para que o novo século não repita o cenário de guerras e barbárie capitalista que foi o século XX. Lutamos por uma sociedade socialista, pois ela é a única alternativa capaz de reorganizar a produção de maneira nova, com base na associação livre de produtores iguais — e, assim, enviar toda a máquina do Estado, e com ela a própria guerra, para o seu devido lugar:
“ao museu das antiguidades, ao lado da roca de fiar e do machado de bronze”, como disse Engels.
13. Para os socialistas, as revoluções são feitas pelos partidos revolucionários?
As revoluções não são conspirações, complôs ou golpes de Estado, mas sim a mobilização de setores das massas que lutam para pôr fim à opressão e forjar seus próprios destinos. No entanto, a revolução é um processo, não um ato isolado, e nele haverá momentos de avanço e retrocesso, setores de vanguarda e de retaguarda, diferentes alternativas políticas. Para enfrentar a resistência dos inimigos, superar suas manobras e conquistar novos aliados entre os oprimidos, é necessário construir um partido revolucionário. Esse partido deve, com base na experiência e nas lições das lutas passadas, lutar por promover a auto-organização independente das massas, permitindo que elas desenvolvam sua força, e seja capaz, nos momentos decisivos, de definir uma estratégia para vencer.
Os inimigos da revolução, seja por falta de imaginação histórica ou por não conseguirem ir além dos limites impostos pelo sistema, gostam de compará-la a manobras usadas no topo pelas frações dominantes para se enfrentarem: golpes de Estado, conspirações, complôs, etc. Mas, a menos que se esvazie completamente o sentido do termo, as revoluções são justamente o oposto. Mesmo que tensões sociais crescentes tornem sua aparição possível, as revoluções não podem ser previstas ou provocadas artificialmente. Isso porque não estamos falando de mudanças de governo, crises ministeriais ou de regime, mas sim de uma explosão de iniciativa e ação de parcelas massivas da população. As revoluções são feitas pelas massas — de fato, Trotsky as definiu como “a irrupção violenta das massas na condução de seu próprio destino”.
Mas os processos revolucionários não são feitos apenas de espontaneidade. Neles surgem vanguardas forjadas na luta, retaguardas que ainda hesitam em entrar em combate, alianças e rupturas, disputas sobre quais instituições novas as massas devem criar, para decidir quais rumos tomar, que prioridades adotar, como se defender da resposta do sistema, como avançar. Em resumo, haverá disputa política e estratégica. Isso ocorre não apenas pela magnitude das tarefas envolvidas, mas também porque a própria classe trabalhadora não é homogênea: nela convivem diferentes tradições políticas e nacionais, experiências e lições anteriores, instituições próprias, mas muitas vezes influenciadas pela política burguesa, como sindicatos burocratizados e estatizados, partidos de base popular, mas reformistas, que buscarão reencaminhar as massas de volta ao sistema estabelecido.
É verdade que uma das características de toda revolução são mudanças bruscas e aceleradas na consciência coletiva: a dominação antes aceita como natural e a ideologia da classe dominante, que parecia “universal”, podem em poucos dias começar a ruir, dando espaço para que os oprimidos reconheçam sua força comum, desafiem o estabelecido e comecem a imaginar outros futuros possíveis, distinguindo seus aliados e inimigos. Mas a revolução não é um único ato e as instituições que foram forjadas por gerações não cedem automaticamente, mesmo quando as condições que lhes deram origem entram em colapso. Elas podem sobreviver em crise ou paralelamente às novas instituições sociais criadas pelas massas, até que a luta de classes, em seu sentido mais concreto — o confronto entre revolução e contrarrevolução — decida o rumo da história.
É justamente para esses momentos decisivos de choque entre as classes que se coloca a necessidade de um partido revolucionário capaz de definir uma estratégia de vitória. Mas esse partido não pode ser construído da noite para o dia, ainda que, como dizia Trotsky, entre um e outro esteja “a noite da revolução”. Por isso, os socialistas acreditam que um partido revolucionário deve se preparar com antecedência, se organizando, reunindo forças e transformando a experiência da luta de classes em teoria e estratégia. Não vemos isso como uma “etapa evolutiva” separada: o desenvolvimento da teoria e do programa, os debates estratégicos e a formação de quadros devem estar imersos nas experiências concretas das massas e em suas lutas.
A prática voltada para conquistar influência entre setores do movimento operário não está isenta do debate ideológico e teórico, nem de novas lições políticas que a luta de classes exige que o partido assimile continuamente. Se há diferentes momentos no desenvolvimento de um partido revolucionário, eles têm mais a ver com o contexto geral da correlação de forças entre as classes, que abre ou fecha possibilidades que o partido deve saber aproveitar e avaliar com precisão — algo que Lenin já havia apontado, contra visões mecanicistas e de aparato dentro do próprio partido bolchevique, quando surgiram os primeiros sovietes.
Tampouco se trata de elaborar um programa e depois oferecê-lo às massas. A defesa e a promoção das instâncias de auto-organização das massas são tarefa fundamental dos revolucionários antes, durante e depois da revolução — não em oposição à construção de um partido, mas como espaços onde as massas sejam protagonistas e possam debater, lutar e conquistar a força para aplicar a melhor política possível. Muitos dos processos mencionados anteriormente — tanto revoluções do século XX quanto revoltas do novo século — demonstram que essa é uma tarefa urgente, se não quisermos que a força e o sacrifício das massas se percam com o cansaço ou pelas manobras do sistema para restabelecer a “normalidade”.
O que dizemos nós, socialistas, é que assim como a classe dominante tem seu Estado-Maior — seus think tanks, seus estrategistas, seus generais —, a revolução operária e socialista também precisa do seu próprio Estado-Maior: um partido revolucionário que, estreitando laços com as massas operárias e propondo a elas tarefas cada vez mais importantes, consiga superar as armadilhas do regime, unir o que a burguesia divide, e conquistar a hegemonia sobre o conjunto dos oprimidos para avançar na derrubada da burguesia.
Um partido revolucionário não deve ser apenas um grupo que “engorda” lentamente até representar toda a classe. Ele deve procurar fazer com que sua experiência — transformada em teoria — se enraíze em um setor da classe trabalhadora, que, por meio de instrumentos como sindicatos recuperados, comissões, conselhos, conquiste outros setores do movimento operário e das demais classes exploradas e oprimidas. Ou seja, o partido deve buscar conscientemente ser parte (extraindo as melhores conclusões possíveis) das vitórias e derrotas das massas, para construir uma base material forte e ganhar o direito de dirigir as grandes “manobras” das massas nos momentos de mudanças abruptas na luta de classes.
Um partido revolucionário também deve tirar lições dos principais acontecimentos mundiais e vibrar com a luta de classes em escala internacional, identificando onde há condições para levantar uma nova internacional da revolução socialista. Porque, como mostramos nestas páginas, o sistema que combatemos é internacional, e nosso desafio deve estar à altura disso. Sabemos que, embora as revoluções comecem em um determinado espaço nacional, nenhum partido pode se limitar às suas fronteiras e ignorar o desenvolvimento da revolução fora delas. A revolução precisa se expandir internacionalmente e a vitória definitiva de uma nova sociedade só pode ocorrer em escala mundial.
Em resumo, um partido revolucionário não garante a vitória — mas, acreditamos, é a única forma de torná-la possível.
14. No socialismo seremos todos iguais?
Em uma sociedade sem exploração nem opressão, a igualdade significará que todas as pessoas tenham suas necessidades básicas atendidas e as mesmas possibilidades de se desenvolverem — não que todas façam as mesmas coisas ou desejem as mesmas coisas. O desenvolvimento do comunitário e coletivo não significa uniformidade, nem se opõe ao desenvolvimento da individualidade; ao contrário, é a base necessária para que cada um possa exercer verdadeiramente sua liberdade, expressando seus talentos, criatividade e paixões.
Como os socialistas apelam à força do coletivo, do comunitário, da igualdade, muitos tentam contrapor o socialismo e o comunismo ao desenvolvimento da “individualidade”, como se estivéssemos propondo uma sociedade padronizada e cinzenta, que não valeria a pena ser construída.
Mas os socialistas não confundem o “salve-se quem puder” do individualismo capitalista com o verdadeiro desenvolvimento do indivíduo. Ao contrário: acreditamos que é justamente o egoísmo, a competição e o critério mesquinho do lucro capitalista que limitam ou negam por completo as possibilidades de desenvolvimento livre dos desejos e capacidades, tanto coletivas quanto individuais.
O objetivo do socialismo é acabar com a sociedade de classes para conquistar o comunismo — ou, como diziam Marx e Engels, “passar da pré-história à história da humanidade”, no sentido de superar a luta pela sobrevivência imposta pelo capital, para então liberar as enormes possibilidades da criatividade humana. Socialismo e comunismo visam construir uma sociedade onde o desenvolvimento coletivo permita, de forma efetiva e plena, o desenvolvimento individual.
Os marxistas revolucionários sempre foram bastante contundentes em denunciar os males do capitalismo, mas relativamente comedidos em descrever como seria uma sociedade comunista. E isso se deve justamente ao fato de que a verdadeira dimensão da criatividade humana, liberta da necessidade de apenas comer, vestir-se e ter onde morar, ainda está por ser vista. Não sabemos plenamente o que se tornará possível quando acabarmos com a separação entre trabalho manual e intelectual — herança das sociedades de classe — ou quando as pessoas tiverem o tempo ao seu favor, e não contra si: o que poderiam imaginar, criar, descobrir, pensar, viver ou desfrutar?
Marx, antecipando elementos do comunismo, o descrevia como uma sociedade em que se exigisse “de cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo sua necessidade”, em que uma pessoa poderia ser “pescador pela manhã e poeta à noite”. Trotsky, respondendo a filósofos que acreditavam que, sem competição e sem dominadores e dominados, a sociedade seria apática, dizia que no comunismo não haveria menos paixão, e sim mais. E ainda que os partidos políticos deixassem de existir — porque as classes deixariam de existir —, surgiriam partidos estéticos, filosóficos, científicos.
É o capitalismo que uniformiza a riqueza social e os talentos humanos, reduzindo-os a meras mercadorias intercambiáveis. É ele quem condiciona nossas formas de nos relacionarmos, sempre por meio da competição e da luta pela sobrevivência. Se queremos acabar com toda forma de opressão e exploração, se queremos novas formas de relações pessoais e coletivas baseadas em amizade e solidariedade, se queremos desenvolver nossas capacidades e talentos, se queremos que nossas vidas não impliquem na destruição do planeta, então precisamos pôr fim ao capitalismo e construir coletivamente uma sociedade baseada em novos fundamentos.
É por isso que lutamos nós, os revolucionários socialistas.
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Os autores agradecem às companheiras e aos companheiros que colaboraram com valiosas leituras, comentários e sugestões para estas páginas, que, além disso, se alimentam e fazem parte da elaboração e discussão coletiva dos nossos anos de militância no PTS – Partido dos Trabalhadores Socialistas [organização-irmã do MRT na Argentina].
Para seguir lendo
Aos que queiram ampliar e aprofundar os temas abordados e as definições feitas por diferentes autores marxistas, deixamos a seguir as referências bibliográficas dos textos que citamos ou parafraseamos ao longo dos artigos.
- Engels, Friedrich: A origem da família, da propriedade privada e do Estado, Buenos Aires, Ediciones Luxemburg, 2008.
- Engels, Friedrich: “Princípios do comunismo” em Marx, Karl e Engels, Friedrich: O manifesto comunista, Buenos Aires, Ediciones IPS, 2023.
- Lênin, Vladimir I.: O Estado e a revolução, Buenos Aires, Ediciones IPS, 2019.
- Lênin, Vladimir I.: “O imperialismo, fase superior do capitalismo”, em Obras Selecionadas, Buenos Aires, Ediciones IPS, 2014.
- Lênin, Vladimir I.: “Nossas tarefas e o Soviet de Deputados Operários”, em Obras Selecionadas, Buenos Aires, Ediciones IPS, 2014.
- Marx, Karl: Salário, preço e lucro, Buenos Aires, Ediciones IPS, 2010.
- Marx, Karl e Engels, Friedrich: O manifesto comunista, Buenos Aires, Ediciones IPS, 2023.
- Luxemburg, Rosa: “Reforma social ou revolução?”, em Socialismo ou barbárie, Buenos Aires, Ediciones IPS, 2021.
- Trotsky, Leon: “Classe, partido e direção” em A vitória era possível. Escritos sobre a Revolução Espanhola, Buenos Aires, Ediciones IPS, 2012.
- Trotsky, Leon: História da Revolução Russa, 2 volumes, Buenos Aires, Ediciones IPS, 2017.
- Trotsky, Leon: A teoria da Revolução Permanente, Buenos Aires, Ediciones IPS, 2023.
- Trotsky, Leon: Literatura e revolução, Buenos Aires, RyR, 2013.